ENTREVISTA

"Cuidado é em liberdade e nos territórios", afirma militante da luta antimanicomial

No mês da luta antimanicomial, a psicóloga Anny Souza fala sobre os desafios nos cuidados à saúde mental no Nordeste

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Militantes da luta antimanicomial defende que o cuidado de pessoas com transtornos psiquiátricos deve ser feito em liberdade - Gabriela Barros

Ao aprovar a conhecida "Lei Antimanicomial", em abril de 2001, o Brasil se tornou o primeiro país da América Latina a adotar uma política nacional de saúde mental. O marco significou o início da reforma psiquiátrica que abandonava uma lógica de tratamentos centralizada em hospitais, longas internações e isolamento social das pessoas com transtornos mentais. 

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Passados 21 anos dessa conquista, que foi fruto da luta de trabalhadoras e trabalhadores da saúde mental, os desafios para implementação dessa reforma ainda são muitos. E ganham destaque no mês de maio, que é um marco para quem luta em defesa da saúde mental por causa do 18 de maio, que é o Dia Nacional da Luta Antimanicomial em homenagem à luta dos profissionais.

Em alusão à data, o Brasil de Fato Pernambuco conversou com Anny Souza, que é psicóloga e militante da Frente Pernambucana em Defesa da Saúde Mental para o programa Trilhas do Nordeste.

Brasil de Fato Pernambuco: Anny, passados 21 anos da conquista da Lei Antimanicomial, a gente pode dizer que a reforma psiquiátrica de fato foi consolidada no Brasil? 

Anny Souza: Não. Nós temos vários avanços ao longo desses anos e muitas conquistas, mas ainda temos muito o que avançar e muitos desafios pela frente. Sobretudo nesses últimos anos - principalmente de 2016 para cá, nós temos enfrentado diversos retrocessos, inclusive colocando a própria Lei da Reforma Psiquiátrica, que é a Portaria nº 3.588 em questão, quando a gente tem mudanças como a Política de Redução de Danos saindo de cena e entrando novamente a Política de Abstinência como norte do cuidado, da atenção, à saúde mental.

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Então, enquanto essas conquistas que são importantes nesse cenário, mas em um modelo de um sistema político e econômico que é voltado para o capital, em momentos em que a burguesia vai perdendo seus espaços, essas questões vêm à tona novamente e a gente vai perdendo muitos desses direitos.
 
O Ministério da Saúde emitiu uma nota técnica que faz um aceno positivo aos manicômios e ao eletrochoque como tratamentos. O que isso representa para as políticas de saúde mental?

Isso representa um grande retrocesso para as políticas de saúde mental do nosso país. Nós tivemos esses diversos avanços, mas a gente entende que a ampliação desse tipo de ‘cuidado especializado’ nessa perspectiva reproduz ainda um modelo de exclusão, violência e medicalização da vida.

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Enquanto a nossa defesa é por um cuidado territorial, em liberdade, buscando atender o que tem de singular naquele sujeito, a partir também daquilo que nós compartilhamos da sociedade que a gente vive. Então considerando tudo isso a gente entende que é um retrocesso que vai completamente de encontro a tudo aquilo que a gente vem reivindicando durante todos esses anos. Para nós, cuidado é em liberdade e nos territórios.

Como se configura essa realidade relacionada à reforma psiquiátrica na nossa região Nordeste?

A gente fala muito em nível nacional quando fala da luta antimanicomial e esses retrocessos, mas, em nível local, nas gestões estaduais e municipais, existem peculiaridades. Uma delas, na região Nordeste, é um avanço ainda maior quando a gente compara com outras regiões, ainda que reflita o cenário nacional das investidas com as comunidades terapêuticas. Existe um cenário que se desdobra a partir do governo federal e que facilita e cria um contexto bem favorável para que determinados elementos à nível local avancem.

Como a as comunidades terapêuticas, que muitas vezes estão ligadas a entidades religiosas e a figuras públicas religiosas entram nesse debate da saúde mental?

Bom, as comunidades terapêuticas já estão previstas desde as experiências de reforma psiquiátrica na Itália e diversos outros países, mas com o tempo e o modo que elas foram sendo desenvolvidas e aplicadas no nosso país, elas tiveram um caminho muito particular. Elas hoje se apresentam de uma maneira que não são nem comunitárias e nem terapêuticas. 

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Mas a gente tem relatórios, como o último relatório do Ministério Público com o Conselho Federal de Psicologia, que aponta diversas práticas de violência, inclusive abuso sexual, abuso moral e trabalhos forçados nesses espaços ao longo do país, em todo território nacional.

A gente entende que esse tipo de estratégia tem um interesse de cunho moral, de cunho religioso; mas que está diretamente relacionado a um modelo de fazer política; a um modelo de compreensão da vida e do cuidado, mas que está atravessado pelas articulações políticas e por isso tem ganhado tanto espaço”.

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga