Impunidade

Investigações da chacina de Pau D’Arco, no Pará, foram encerradas sem apontar mandantes

Massacre completa 5 anos nesta terça (24) como ‘mais um caso de impunidade;’ pesquisadora apontam falhas nos inquéritos

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Investigação da PF apontou dois policiais civis e 14 militares como executores da chacina, mas não indicou quem seriam os mandantes das execuções - Lunaé Parracho/Repórter Brasil)

Duas investigações que poderiam revelar os mandantes do maior massacre no campo dos últimos 25 anos – o caso Pau D’Arco – foram encerradas sem apontar os responsáveis pelo crime. É o que revelam dois inquéritos, que correm em sigilo mas foram obtidos com exclusividade pela Repórter Brasil.  

Na chacina, que completa cinco anos nesta terça-feira (24), policiais executaram brutalmente dez trabalhadores sem-terra que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, no município de Pau D’Arco, no sul do Pará. Dois policiais civis e 14 militares foram acusados como executores e aguardam julgamento por júri popular, mas, apesar de réus, continuam soltos e em atividade nas corporações. 

Uma das investigações à qual a reportagem teve acesso foi a da Polícia Civil do Pará, que apurava o assassinato da principal testemunha do massacre – um dos poucos que sobreviveu ao ataque. O inquérito foi concluído em dezembro sem sequer ouvir os policiais suspeitos de terem ameaçado Fernando Araújo dos Santos, morto em janeiro de 2021. O sem-terra vinha relatando sofrer intimidações dos acusados pelo massacre. A polícia descartou relação entre a chacina e a execução da testemunha.

O segundo inquérito, sob responsabilidade da Polícia Federal, investigava os mandantes da chacina e foi encerrado, também no ano passado, sem apontar os culpados nem fazer nenhum indiciamento.

“É preocupante que a investigação do massacre tenha se restringido aos executores do crime, sendo que havia condições materiais de as investigações avançarem e levarem aos mandantes”,  diz a pesquisadora Carla Benitez Martins, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Ela faz parte de um grupo de mais de 40 pesquisadores que estão analisando os 51 massacres de trabalhadores do campo desde 1985, em uma parceria entre a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais.

No caso da chacina de Pau D’Arco, os pesquisadores concluíram não haver provas que sustentem a tese de confronto entre policiais e sem-terra, alegada pelos acusados, mas sim de uma ação coordenada de execução, planejada com antecedência por um grupo de extermínio. Um dos fatos marcantes do processo são os resultados da perícia dos corpos das vítimas, que estavam agachadas ou cobrindo o rosto, além de não possuírem resíduos de pólvora nas mãos, o que descarta o confronto. Sem avançar nesses pontos, segundo os pesquisadores, o resultado é a impunidade.

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Ainda sobre a falta de continuidade da investigação, Martins ressalta que a atuação dos seguranças privados da fazenda Santa Lúcia “pouco a pouco foi desaparecendo da investigação”, mesmo diante do fato de esses agentes estarem presentes no momento do massacre.

‘Não há testemunha, não há julgamento’

Os policiais indiciados por participação na chacina de Pau D’Arco alegaram que agiram em legítima defesa. Além do depoimento de Fernando Santos e de outros sobreviventes, o indiciamento foi baseado também na delação premiada de dois policiais. No local do crime, foram encontrados indícios de execução e tortura dos camponeses. 

Principal testemunha do massacre, Fernando Araújo dos Santos foi executado na porta de casa em janeiro de 2021, após relatar ameaças dos acusados pela chacina (Foto: Cauê Angeli/Repórter Brasil)

Santos era quem tinha na memória detalhes da chacina. Ele narrava como, em 24 de maio de 2017, a polícia rendeu, humilhou e torturou seus colegas antes de executá-los com tiros à queima-roupa. Em janeiro do ano passado, ele foi morto na porta de sua casa com um tiro na nuca. Apesar das ameaças que o sobrevivente vinha relatando sofrer dos réus, os policiais sequer foram ouvidos no inquérito da Polícia Civil sobre sua execução.

“Isso é gravíssimo. Por que essa linha de investigação [sobre a morte da principal testemunha] foi abandonada?”, questiona Deborah Duprat, ex-procuradora Federal dos Direitos do Cidadão e ex-subprocuradora Geral da República, que acompanhou a investigação do caso Pau D’arco quando estava no Ministério Público Federal.

Semanas antes de ser morto, Santos afirmou em entrevista à Repórter Brasil que recebera três ameaças nos meses anteriores. “Os policiais estão pensando em vir aqui dar um jeito de não haver mais testemunha antes do julgamento. Não há testemunha, não há julgamento”, contou na época. Uma das pessoas que levou o recado, segundo relatou, afirmou que quem o estava ameaçando “era covarde e faz [mata] mesmo, e quando não faz manda qualquer um fazer por qualquer dez real”.

No depoimento à reportagem, Santos cita o nome de um dos policiais que teria enviado os recados e descreve as pessoas que repassaram as mensagens. Esse relato foi entregue à Polícia Civil do Pará, mas sequer foi incluído no relatório final do inquérito sobre sua morte. Segundo o documento, a única diligência tomada para averiguar o possível envolvimento dos policiais na morte da testemunha foi a apreensão e análise do celular da vítima, que não resultou em “nenhuma informação que interesse à investigação”. 

Contudo, horas antes de ser assassinado, Santos trocou mensagens com a equipe da Repórter Brasil, informando que deixaria o assentamento na Santa Lúcia em razão das ameaças. Questionado se se referia às ameaças de policiais que havia relatado anteriormente, confirmou que sim. Horas depois, foi executado.

A reportagem perguntou ao delegado Antônio Mororó Júnior, da Delegacia Especial de Conflitos Agrários de Redenção (PA), responsável pelo inquérito, se os policiais e as pessoas citadas pela vítima foram procuradas durante a investigação, e a autoridade informou que “diligências foram realizadas” e nada foi comprovado, mas não detalhou as ações.

“A gente não pode afirmar que as ameaças não ocorreram. Mas em momento algum a prova testemunhal ou documental e a análise do celular da vítima demonstraram, ainda que de forma rasa, que as ameaças tenham ocorrido. Fizemos um levantamento aprofundado, diversas diligências presenciais acompanhadas por mim, e não há indícios [de envolvimento dos policiais]. Não se pode querer que alguém seja [o culpado] só porque alguém quer”, disse o delegado Mororó Júnior.

Inquérito questionado

Apesar de não detalhar as investigações sobre os policiais que Fernando Santos acusava, a Polícia Civil e o Ministério Público Estadual do Pará prenderam uma pessoa pelo seu assassinato. A tese é que o homicídio aconteceu por uma tentativa de roubo (latrocínio). No entanto, no dia do crime, nada foi levado da casa do Fernando. O preso nega.

“Não aparece nada no inquérito que aponte para motivação patrimonial”, diz a advogada Andréia Silvério, da CPT, que acompanha o caso como representante da família.

Um ano após o massacre de Pau D’Arco, familiares se reuniram no cemitério de Redenção para homenagear as vitimas (Foto: Lunaé Parracho)

Além do depoimento em vídeo, entregue pela equipe da Repórter Brasil, Silvério também enviou à Polícia Civil áudios, gravações e outros relatos das ameaças recebidas por Santos. “A gente acreditava que as ameaças seriam uma das linhas de investigação, já que o Fernando citava o nome das pessoas. Mas tudo foi ignorado”, diz. “Infelizmente há chances de ser mais um caso de impunidade no Pará.”

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A advogada diz ainda que o inquérito apresentou falhas desde o início. “Não foi feita perícia no local do crime logo após o assassinato, e a necropsia foi realizada somente após ele sair do necrotério. O corpo teve de ser retirado no meio do velório.” 

Para a procuradora aposentada Deborah Duprat, devido aos indícios de envolvimento da polícia com o caso, a responsabilidade pela investigação deveria ser do Ministério Público, o que evitaria um conflito de interesses. “Já há uma compreensão de que, quando as forças policiais estão envolvidas em violação de direitos humanos, essa obrigação de investigação passa para o Ministério Público”. 

Ela diz que esse entendimento foi formado em 2017 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, a partir do julgamento do caso da favela Nova Brasília, no Rio de Janeiro, no qual 26 pessoas foram executadas por forças policiais entre 1994 e 1995.

Procurado pela Repórter Brasil, o promotor Luiz da Silva Souza, do Ministério Público do Estado do Pará, declarou que as investigações ocorreram “de forma isenta e independente”, sem interferências, culminando na prisão do suposto autor do crime.

“Nestes autos, não vieram elementos que indicassem a participação dos envolvidos no denominado ‘Caso de Pau D’arco’ no homicídio de Fernando. Ao contrário disso, restou demonstrada a incontestável autoria” do acusado, “motivo pelo qual o Ministério Público o denunciou”, disse Souza. Após questionamento da reportagem, em fevereiro, o promotor decidiu abrir uma investigação própria sobre o assassinato para “total elucidação dos fatos”.

E os mandantes?

A investigação da Polícia Federal, sobre quem encomendou a chacina, também é criticada pela advogada Andréia Silvério. “Desde o início, encontrar os mandantes esteve em segundo plano, apesar dos indícios de envolvimento de fazendeiros da região como financiadores das execuções”. 

Segundo a representante da CPT, o inquérito foi concluído com atraso, mais de quatro anos após o massacre, com risco de perda de provas. A substituição do delegado que havia investigado os executores do crime também prejudicou a apuração, ela diz. “A não identificação das motivações e eventuais mandantes de crimes no campo é uma realidade constante no Pará”, completa.

“Finalizar este inquérito sem apontar os mandantes é extremamente grave, porque o caso Pau D’Arco deveria servir de partida para uma investigação sobre o crime organizado no campo”, afirma Duprat. Há indícios de que polícias e empresas de segurança privada que trabalham para fazendeiros estejam atuando de forma coordenada no Norte do Brasil. A ex-procuradora diz que isso ocorre “muito fortemente em Pará e Rondônia, não por acaso os dois estados campeões de mortes de trabalhadores rurais, sem-terra, indígenas e quilombolas”.

Segundo Duprat, que esteve em Pau D’Arco poucos dias após a chacina, esse “padrão” também foi identificado neste caso: policiais e seguranças privados vistoriaram o terreno na véspera da morte dos sem-terra e estavam juntos no momento do massacre.  

A execução de dez trabalhadores rurais em 24 de maio de 2017 em Pau D’Arco (PA) foi a maior chacina no campo desde o massacre de Eldorados dos Carajás (PA), em 1996 (Foto: Repórter Brasil)

A suspeita de uma possível articulação entre a polícia e empresas de segurança chegou a ser levantada no inquérito que resultou no indiciamento dos policiais, “mas essa linha de investigação foi abandonada no inquérito dos mandantes”, diz outro advogado, que acompanha o caso e prefere não ser identificado.

A investigação dos possíveis mandantes do massacre se concentrou em buscar laços entre os supostos donos da fazenda ocupada pelos sem-terra (família Babinski) e os policiais que participaram da ação. A PF apreendeu celulares dos Babinski, quebrou seus sigilos telefônico e bancário, mas não conseguiu identificar relação entre os grupos.

“Foram extraídos dos celulares conversas, imagens, verificados contatos, ligações e outros, não tendo sido encontrada nenhuma prova de ter havido acerto, conluio, entre os principais atores do fatídico episódio e os proprietários do imóvel e seus advogados, que indicassem ter havido acerto prévio”, diz o relatório da PF. Os dados bancários dos proprietários do imóvel não revelaram “movimentações atípicas, que denotassem algum pagamento ou transferência, prévia ou posterior ao episódio Pau D’Arco, para que agentes do estado cumprissem determinações de interesse meramente privado”, continua o documento.

A principal linha de investigação no início das apurações do massacre envolvia a família Babinski, “mas depois surgiram outras evidências que precisavam ter sido investigadas”, diz o advogado ouvido pela Repórter Brasil sob a condição de anonimato.

A reportagem fez diversos contatos com a Superintendência da Polícia Federal no Pará, mas não recebeu retorno. A família Babinski foi procurada por meio de seu advogado e também não respondeu.

Nas vésperas do ato que marca 5 anos da chacina, os assentados levaram um susto ao descobrir tiros cravejados na placa da ocupação. As balas atravessaram a foto de Jane Júlia, líder do grupo que foi assassinada e que hoje dá nome ao assentamento. É nesse clima de impunidade que vivem as 200 famílias acampadas no local, sob o risco permanente da ameaça de despejo, decretado pela Justiça desde antes do massacre.

“A ausência de punição incrementa a violência e a morte, incrementa crimes como esse, então é muito importante a vigilância da sociedade, afinal, se trata de evidenciar que se morre muito no campo e por conta das forças policiais”, afirma Duprat.

Violência assombra os moradores do assentamento Jane Júlia, que foram surpreendidos ao ver a placa do local cravejada por tiros, especialmente na foto da líder do grupo, que foi assassinada e que hoje dá nome ao assentamento. (Foto: Rafa Batista/Repórter Brasil)

 

 

 


Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil