Coluna

Os massacres nossos de cada dia e a banalização da indiferença

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Essas quase mil vidas subtraídas pelas forças policiais do Rio de Janeiro, sob a vigência da decisão do Supremo Tribunal Federal não são vidas humanas? - Mauro Pimentel/AFP
A região metropolitana do Rio de Janeiro é palco de crime contra a humanidade

Por Cláudia Maria Dadico*

 

O Brasil acordou, na manhã de 25 de maio de 2022, com a notícia de mais um massacre.

Uma operação conjunta do Batalhão de Operações Policiais (BOPE) da Polícia Militar, da Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal na Vila Cruzeiro, na zona norte carioca, resultou em 25 pessoas mortas, a segunda mais letal da história do Rio de Janeiro.

A pretexto de cumprir mandados de prisão expedidos contra lideranças do tráfico de entorpecentes, as forças da segurança pública carioca protagonizaram mais uma ação de extermínio.

A altíssima letalidade da ação policial é chocante.

A um só tempo, a ação estatal na Vila Cruzeiro reduziu a pó um conjunto de direitos fundamentais: o direito à vida – tido como o mais caro de todos os direitos fundamentais -, a proibição constitucional da pena de morte, o direito à presunção de inocência e ao devido processo legal.

Mas a ação policial é também chocante por uma série de outras circunstâncias.

As informações são de que as ações se iniciaram às 4 da madrugada ao arrepio da garantia constitucional da inviolabilidade do domicílio. Há fundadas dúvidas acerca da legalidade da atuação da Polícia Rodoviária Federal na referida operação, já que suas atribuições constitucionais se restringem ao “patrulhamento ostensivo das rodovias federais” (art. 144, § 3º da CF).

Tudo isso exige a atuação firme dos representantes do Ministério Público Federal e Estadual do Rio de Janeiro, encarregados que são do controle da atividade policial.

Todavia, a ocorrência de mais uma chacina na região metropolitana do Rio de Janeiro deveria deixar em alerta, não apenas as instituições do sistema de justiça, mas toda a sociedade brasileira.

Até as pedras do Cais do Valongo sabem que o extermínio ocorrido na madrugada de hoje Vila Cruzeiro não é um fato isolado.

No mesmo local, há três meses, outras oito pessoas foram mortas pela polícia em circunstâncias semelhantes, aponta o Ministério Público Federal.

Há um ano, outra “operação” dessa vez da Polícia Civil do Rio de Janeiro, na comunidade do Jacarezinho, resultou em 28 pessoas mortas. Os fatos ocorridos no Jacarezinho são igualmente chocantes, pela violência real e simbólica.

Além do arquivamento da maior parte dos inquéritos abertos para apurar as responsabilidades pelas mortes ali ocorridas, são igualmente chocantes as cenas em que o memorial construído pela comunidade foi derrubado por um veículo policial blindado. Impunidade, negação do direito à memória, impedimento à celebração comunitária do luto, todas essas violências se somam, numa espiral que parece não ter fim.

A condenação do estado brasileiro pela CIDH no caso “Favela Nova Brasília” e a necessidade de monitoramento recorrente para o cumprimento da referida decisão demonstram a gravidade do problema e a insuficiência das respostas institucionais dadas até o momento.

Não é demais recordar que todas essas ações policiais ocorrem ao arrepio da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 635/2019, que restringiu as operações em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. No entanto, ao menos 944 pessoas foram mortas por forças policiais desde que a decisão passou a ter vigorar.

Nesse aspecto, constata-se evidente tensão entre as forças de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro e o Supremo Tribunal Federal.

Afinado com a promessa eleitoral de distribuir “tiros na cabecinha”, o atual governo do Rio de Janeiro, em apenas um ano de gestão já contabiliza 181 mortes em 39 chacinas. Não é de se estranhar, portanto, o teor da postagem do Governador ao qualificar a Vila Cruzeiro como “hotel de luxo para chefes de facções criminosas de outros Estados do Brasil”. Além de assumir sem rodeios um projeto político que banaliza a morte, sendo por isso qualificado por muitos como necropolítico, a afirmação tem o claro objetivo de subtrair-se da responsabilidade pelo “estado de coisas inconstitucional” na segurança pública do RJ e atribuí-la ao próprio Supremo.

O Presidente da República, por sua vez, parabenizou a conduta dos agentes de segurança, o que também não destoa de outras declarações e atuações governamentais que denotam pouco apreço à vida humana.

Em meio ao embate entre instituições e poderes da República, encontra-se uma população em pânico.

Escolas e unidades de saúde do Complexo da Penha, onde fica a Vila Cruzeiro, ficaram fechadas durante o dia. Linhas de ônibus foram interrompidas e muitas pessoas não puderam ir trabalhar.

Dessa forma, passo a passo, dia a dia, o estado policial atualiza o projeto colonial.

O medo, o ódio, a violência e o terror produzem as barreiras tangíveis e intangíveis que classificam, agrupam e cercam a população dita periférica em campos caracterizados pelo estado de exceção.

Achille Mbembe recorda que a origem dos campos de concentração ocorre no contexto colonial, na passagem do século XIX para o século XX, nos contextos das guerras coloniais em Cuba, nas Filipinas, na África do Sul e no Sudoeste Africano. Na raiz desse empreendimento colonial está um projeto de partição dos seres humanos: entre aqueles que podem receber o tratamento de seres humanos e os “outros”.

Seguindo-se o raciocínio de Mbembe, cabe a pergunta: seria concebível uma “operação”, nos moldes das que ocorreram na Vila Cruzeiro ou no Jacarezinho, no Leblon? Ou em Copacabana?

Essas quase mil vidas subtraídas pelas forças policiais do Rio de Janeiro, sob a vigência da decisão do Supremo Tribunal Federal não são vidas humanas?

Ou as favelas, à semelhança dos campos de concentração coloniais, abrigam outra espécie de seres que não merecem ser classificados como humanos?

A sociedade brasileira precisa reagir contra a banalização da indiferença.

O projeto necropolítico em curso precisa ser detido.

Dos 1.245 óbitos durante ações policiais no Rio de Janeiro, no ano de 2020, 86% foram de pessoas negras, num universo em que apenas 51,7% se autodeclaram como negras.

O absurdo dessa conjuntura ofusca a visão quando se constata que o “bem jurídico” tutelado pelos crimes de tráfico de entorpecentes é a saúde pública.

Ou seja, para proteger a “saúde” de alguns, a contabilidade macabra da necropolítica banaliza a morte e o sofrimento de milhares.

Diante disso a conclusão é uma só: a região metropolitana do Rio de Janeiro é palco de crime contra a humanidade e o nome correto para tal prática criminosa é genocídio.

 

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rebeca Cavalcante