entrevista

Associação Vida e Justiça afirma que há invisibilidade sobre o problema das sequelas da covid

Coordenador executivo da associação, Renato Simões relata luta em apoio e defesa dos direitos das vítimas no país

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Coordenador executivo da Associação, Renato Simões diz que entidade visa defender o direito à memória, à verdade e à justiça das famílias atingidas pela pandemia por responsabilidade do Estado - Foto: Arquivo pessoal

A realidade brasileira de desamparo das milhares de vítimas da covid-19 que sofrem as mais variadas sequelas – desde problemas crônicos de saúde a dificuldades econômicas e sociais como a orfandade resultante de vidas perdidas – levou a sociedade a organizar redes para lutar por direitos. A Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 Vida e Justiça nasceu em abril de 2021 a fim de reunir essas vozes.

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Formada por uma coordenação colegiada nacional de 13 membros, sob coordenação geral da sanitarista Lucia Souto, da Fiocruz, a entidade é composta por defensores de direitos humanos, lideranças sociais e políticas de todo o país. Com atuação em diversos estados e forte presença no Congresso Nacional, já protocolou projetos prevendo aumento de impostos para super-ricos a fim de buscar recursos para combater a crise sanitária da pandemia.

O coordenador executivo da Associação Vida e Justiça, Renato Simões, explica que a organização visa defender o direito à memória, à verdade e à justiça das famílias atingidas diretamente pela covid, bem como políticas de Seguridade Social, "como reparação do Estado brasileiro pelas consequências na vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras”. Segundo ele, há uma “estratégia articulada pelos setores negacionistas, que dirigem a vida política e os serviços públicos de saúde no país”, para invisibilizar o problema das sequelas causadas pelo abandono das políticas de enfrentamento da pandemia pelo governo Bolsonaro.

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Nesta segunda-feira (30), a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul realiza a primeira de sete audiências públicas para tratar deste tema no estado, organizadas pela Frente Parlamentar em Defesa das Vítimas da Covid. Atividade que a Vida e Justiça, ao lado de outras entidades, tem ativa participação. “É uma experiência piloto que nós queremos expandir pelas várias casas legislativas estaduais”, afirma o coordenador executivo.

Em conversa com o Brasil de Fato RS, Renato Simões relata a luta da Vida e Justiça para colocar em debate o tema das vítimas da covid com a sociedade, destacando a responsabilidade do Estado brasileiro com sua “descoordenação nacional dos esforços de enfrentamento à pandemia”. Fala ainda das alternativas e iniciativas propostas pela rede de pessoas dedicadas ao tema.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato RS - Quando surgiu a Associação Vida e Justiça, quem ela representa e quais as principais demandas que ela atende?

Renato Simões - A Vida e Justiça é resultado da união de muitas redes que lidavam separadamente, até abril do ano passado, com as consequências da covid, e se uniram para criar uma associação que representa uma aliança estratégica entre vítimas da covid e seus familiares e entidades da sociedade civil das mais variadas áreas que reivindicam os direitos das vítimas como consequência da responsabilização pelos crimes e omissões que o Estado brasileiro cometeu ao longo da pandemia. São redes de saúde, de defesa dos direitos humanos, movimentos sociais, grupos de várias tradições religiosas, vítimas e familiares.

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A nossa prioridade é a defesa do direito à memória, à verdade e à justiça das famílias atingidas diretamente pela covid. E políticas de Seguridade Social como reparação do Estado brasileiro pelas consequências na vida de milhões de trabalhadores e trabalhadoras, que tiveram sua saúde, suas vidas, suas atividades econômicas, enfim, todas as dimensões da vida alteradas nesse período.


Associação presente no Fórum Social das Resistências realizado em abril em Porto Alegre / Foto: Divulgação Vida e Justiça

Vínhamos nos preocupando, ao longo da pandemia, com o fracionamento da sociedade civil, que reproduziu a falta também de uma política nacionalmente articulada de confronto com a pandemia. Na verdade, o governo Bolsonaro abriu mão do seu papel de coordenador através do Ministério da Saúde, das políticas de enfrentamento à pandemia, para se associar ao vírus dentro da tese absurda da imunidade do rebanho adquirida, sem o uso das vacinas. Isso gerou uma série de respostas da sociedade civil através de campanhas de solidariedade, campanhas de enfrentamento, grupos que se articulavam pra garantir a segurança alimentar das famílias pobres atingidas pela covid, outros que lidavam com o tema do luto, nas péssimas condições em que esse direito podia ser efetivado pelas famílias, outros grupos que trabalhavam com assistência religiosa às vítimas da covid.

São muitos os casos de pessoas que ficaram com sequelas após a covid, porém não se ouve muito falar sobre isso, principalmente no âmbito de políticas públicas. Como a associação entende isso, essas pessoas estão tendo o tratamento adequado no sistema de saúde ou há um apagamento desse problema?

Há uma estratégia articulada pelos setores negacionistas, que dirigem a vida política e os serviços públicos de saúde no país, para criar essa grande invisibilidade. Nós não temos hoje, fruto do apagão dos dados do Ministério da Justiça, estatísticas adequadas, por exemplo, pra situações como orfandade durante a covid. Qual é o número efetivo de crianças e adolescentes em situação de orfandade no Brasil? Qual é o número de pessoas com doenças raras e deficiências que morreram ou ficaram com sequelas geradas ou agravadas pela covid? Qual é o número de pessoas que são profissionais dos setores econômicos mais atingidos pela pandemia em função das suas atividades profissionais? Há uma enorme invisibilidade do tema covid e a questão das pessoas com sequelas, ela é uma das invisíveis questões que estão colocadas pra sociedade brasileira.

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O fato é que nós temos algumas iniciativas interessantes, em particular dos estados, que também assumiram a linha de frente na luta contra o negacionismo pela vacinação, também em relação às sequelas da covid. É o caso de estados do Nordeste, por exemplo, que constituíram no consórcio um conjunto de políticas públicas em vários níveis, inclusive centro de reabilitação de ponta para pessoas com sequelas graves pela covid.

Em meio a essa desorganização dos dados indicativos de quais são as principais demandas, uma das reivindicações da Vida e Justiça que vem sendo levada inclusive ao Conselho Nacional de Saúde é a de criação de serviços especializados que partam da delimitação das principais sequelas. Isso exige um aparelhamento de profissionais de áreas específicas para desenvolvimento de formas de fisioterapia, assistência social e a integração disso com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e o Serviço de Saúde Mental.

Falta investimento público para atender essas pessoas? O que fazer e como a Associação está correndo atrás disso?

Não há dúvida! Nós tivemos por uma pressão da sociedade, por uma conquista da oposição no Congresso Nacional, a definição de um orçamento de guerra pro primeiro ano da pandemia, que foi fundamental para tornar o SUS mais aparelhado ao enfrentamento da crise sanitária. O que temos visto desde a adoção do teto de gastos pelo governo Temer, com a aprovação da Emenda Constitucional 95, é um subfinanciamento crescente da saúde, e esse respiro do primeiro ano de pandemia com o orçamento de guerra foi alterado nos anos seguintes com a retirada desses recursos adicionais e a continuidade da queda de investimentos públicos em saúde.

:: Projetos protocolados para tributar os super-ricos financiam políticas às vítimas da covid-19 ::

Isso levou a Vida e Justiça a procurar uma aliança com vários outros setores que defendem uma reforma tributária, para que os super-ricos paguem impostos e que essa receita adicional possa ser canalizada para a Seguridade Social, taxando setores do capital beneficiados por isenções absurdas e pessoas físicas que se beneficiam pela falta de pagamento de impostos sobre lucros e dividendos no país.

Apresentamos sete projetos, em conjunto com o Instituto Justiça Fiscal, que têm apoio de aproximadamente 60 deputados de vários partidos, que levantam justamente essa tese: financiar a saúde, a assistência e a Previdência Social para atender os direitos das vítimas da covid. Isso significa uma reparação histórica do Estado brasileiro pela sua omissão durante a pandemia, e a criação de políticas públicas que sejam capazes de ser perenes.

:: Artigo | Recursos para atender vítimas da Covid devem vir da tributação dos super-ricos ::

Esses sete projetos tratam da criação de novas alíquotas do imposto de renda para atingir super-ricos de uma forma mais justa e permitir uma isenção fiscal aos mais pobres, até a cobrança de impostos de setores como a mineração, como os agrotóxicos, que são setores do sistema financeiro e se beneficiam de isenções no quadro tributário injusto atual. Nós defendemos que esses recursos sejam utilizados pra fortalecer o SUS, o SUAS, e benefícios da Previdência Social que possam dar dignidade às pessoas atingidas pela covid.

Não há como enfrentar as consequências da covid pelos próximos anos ou décadas sem reestruturar a Seguridade Social e sem dar a ela recursos significativos para a criação de novas políticas públicas e o fortalecimento dos atuais sistemas de proteção social.

A Argentina, por exemplo, aprovou projeto semelhante para combater a crise na pandemia, taxou super-ricos...

A experiência argentina foi inclusive debatida pela Vida e Justiça e pelo Instituto Justiça Fiscal em duas lives com parlamentares e economistas argentinos, que mostraram como um pequeno gesto de contribuição de quem não pagava impostos proporcionalmente e justificado pelo tamanho das suas receitas, fez diferença pro enfrentamento do auge da pandemia. Mesmo assim é uma legislação tópica, porque introduziu uma contribuição única e que teve a contestação judicial de uma parte dos super-ricos argentinos. No entanto, o que a gente viu foi uma adesão também da sociedade a essa ideia, de que em momentos de crise o financiamento do Estado nacional precisa se socorrer dos recursos que estão em geral imobilizados pela especulação, pela lucratividade do sistema financeiro, pela falta de conteúdo social da ação dos empresários.

:: Movimento busca apressar tramitação de projetos para tributar super-ricos ::

Não há uma cultura de filantropia no Brasil, a classe dominante brasileira é profundamente egoísta e buscou na pandemia acumular riqueza, como mostra o crescimento do número de bilionários do Brasil ao longo dos últimos dois anos, registrados pela revista Forbes e pelos estudos da Oxfam Brasil. Essa desigualdade cresceu de uma forma profunda, mostrando que a pandemia não é resultado daquele vírus democrático que atinge igualmente ricos e pobres. Não, a pandemia atingiu mais profundamente os setores populares, os setores tradicionalmente excluídos dos frutos do desenvolvimento, e gerou riquezas que se acumularam na mão de poucos. Então realmente a reforma tributária é uma exigência ética da pandemia.

Nessa segunda-feira ocorre aqui no RS a primeira de sete audiências públicas da Frente Parlamentar em Defesa das Vítimas da Covid da Assembleia Legislativa. Como a Associação contribui para essa atividade e qual a importância de iniciativas regionais para que esse tema seja debatido?

A Vida e Justiça é participante de primeira hora no esforço de constituição da Frente Parlamentar. Nós temos uma seccional gaúcha bastante ativa, integrada com outras entidades da sociedade civil nos mecanismos de controle popular da situação do estado durante a pandemia. A nossa coordenadora nacional, Lucia Souto, esteve presente na instalação da Frente durante o Fórum Social das Resistências, e é uma experiência piloto que nós queremos expandir pelas várias casas legislativas estaduais.

:: Assembleia gaúcha instala Frente Parlamentar em Defesa das Vítimas da Covid-19 ::

Nós temos hoje um conselho consultivo na Vida e Justiça, coordenado pelo deputado federal Pedro Uczai (PT-SC), um dos inspiradores e fundadores da Associação, que articula parlamentares do Congresso Nacional em apoio aos direitos das vítimas da covid. A frente parlamentar gaúcha vem organizar de uma forma mais eficaz um movimento que existe em muitas assembleias legislativas, de realização de audiências públicas sobre a temática da covid no estado. O RS é o primeiro estado que formaliza uma frente parlamentar estável, permanente, e esse ciclo de audiências públicas terá a participação ativa da seccional gaúcha, dos especialistas que são solidários conosco, e das vítimas da covid que no estado do RS procuram se organizar para garantir que o poder público estadual responda de uma forma mais efetiva aos reclamos das consequências da covid.

:: Audiências públicas debaterão a situação das sequelas das vítimas da covid no estado ::

Nós temos o apoio do presidente da Assembleia gaúcha, Valdeci Oliveira (PT), que é muito importante, porque houve uma resposta ativa a sugestões feitas em audiências públicas realizadas no ano passado pela Vida e Justiça e por outras entidades no RS, e o apoio de muitas bancadas. Então nós achamos que a Frente Parlamentar pode também inovar na apresentação e aprovação de legislações estaduais, e de cobrança e fiscalização dos órgãos do poder Executivo, principalmente na saúde, na assistência, na educação, que possam então aprimorar a resposta do Estado aos direitos das vítimas aí do RS.

Estamos no início do que muitos especialistas chamam de uma possível nova onda da covid no país, com o inverno chegando e os casos aumentando, hospitais voltando a encher. Ao mesmo tempo o país retirou a emergência sanitária, muitas cidades desobrigaram o uso de máscara em locais fechados ou mantém como opcional. Qual a posição da Vida e Justiça quanto a este atual cenário de combate à pandemia no país?

Nós estamos vivendo só uma nova onda de descoordenação nacional dos esforços de enfrentamento à pandemia. A ausência de um comitê científico nacional coordenado com o Ministério da Saúde no enfrentamento da covid faz com que nós tenhamos esse crime do Estado brasileiro, um país que responde por 3% da população mundial, mas tem quase 12% do número de óbitos do planeta por conta da covid.

O território brasileiro se transformou numa terra de proliferação de novas variantes, cujos estudos não são prioridade do governo federal. Então o SUS é resiliente pela força do controle social e da participação popular, pela força dos institutos de pesquisa que sobrevivem à míngua, tanto na União quanto nos estados, e pela dedicação dos profissionais de saúde, que vêm enfrentando a pandemia com o risco das próprias vidas.

 

É lamentável que nós tenhamos esse quadro de flexibilização das medidas de proteção individual, representadas pela máscara. Temos evidentemente uma cobertura vacinal maior, mas ainda sem atingirmos as metas que seriam desejadas pela falta de divulgação, pela falta de empenho do governo federal em defender a vacinação. Isso está se mostrando tanto nos índices de vacinação por covid, quanto em todas as outras vacinas, tem havido uma queda da cobertura vacinal que é muito preocupante.

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A minha família mesmo, hoje nós somos cinco pessoas em casa, cinco pessoas com covid, todas vacinadas pelo menos com três doses, que enfrentam de uma forma mais segura as consequências da doença do que no período em que não havia vacinação. Mas as novas variantes e a associação dessas variantes da covid com outras variantes de gripe fazem com que esse período seja muito delicado para a saúde pública. E o sistema hospitalar vai sofrer as consequências, evidentemente, do crescimento do número de casos e da falta de uma política mais ousada de enfrentamento do vírus nos estados e municípios, com essa flexibilização de uso de máscaras, com a falta de busca ativa das pessoas que não completaram o ciclo das quatro doses de vacinação.

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Esperamos que essa onda não tenha as mesmas proporções nem a mesma letalidade dos ciclos anteriores, mas preocupa muito, porque há uma grande indefinição também sobre os prognósticos da evolução do vírus nos próximos anos e décadas. Então é lamentável que a gente esteja na mão de um governo que não tem um mínimo compromisso em preparar a sociedade para conviver com as consequências dessa sindemia que já está instalada no país, e a possibilidade de transformação da pandemia numa epidemia - com a qual nós vamos ter que conviver ao longo de muito tempo, com cuidados que precisam ser coordenados.

Mais algum aspecto que você considera importante destacar?

Nós estamos lidando com uma frente de ação também importante da Vida e Justiça, que é a questão dos planos de saúde, em particular da Prevent Senior, depois que a CPI da Covid colocou em pauta os crimes contra os seus segurados – muitos concentrados no estado de SP, mas é uma situação que também se reproduziu em menor escala em outros planos de saúde no país. Então a gente criou um grupo de trabalho com as vítimas da Prevent Senior, que vem discutindo com o estado de SP em particular, com o Ministério Público Estadual aqui do estado, tanto responsabilização civil quanto criminal da Prevent Senior.

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Queremos também registrar que, a partir dessa experiência pioneira de organização das vítimas da Prevent Senior, nós vamos levar esse assunto dos planos de saúde durante a pandemia para o Congresso Nacional através da Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados e da Comissão de Direitos Humanos do Senado. São dois parceiros importantes pra Vida e Justiça nesse enfrentamento, porque muitos planos de saúde, principalmente os que são operadores de redes hospitalares, como é o caso da Prevent Senior, se associaram de forma dramática às políticas negacionistas do governo federal. E levaram também os seus segurados a embarcar na onda dos remédios não eficazes, dos tratamentos experimentais não autorizados – outra página da crise da pandemia que tem a ver com a expansão da medicina privada no país.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko