audiência dia 14

Volkswagen enfrenta novo processo ligado à ditadura no Brasil

Justiça investiga práticas de trabalho escravo e outros abusos em projeto da montadora apoiado pelo governo ditatorial

|

Ouça o áudio:

Denúncia afirma que montadora usou práticas análogas à escravidão e tráfico de pessoas
Denúncia afirma que montadora usou práticas análogas à escravidão e tráfico de pessoas - Reprodução

Uma reportagem das emissoras alemãs NDR, SWR e do jornal Süddeutsche Zeitung revelou neste domingo (29) que a montadora alemã Volkswagen foi convocada para uma audiência no dia 14 de junho em um tribunal do trabalho em Brasília, através de uma notificação enviada pela Justiça no dia 19 de maio.

A segunda maior empresa automobilística do mundo enfrenta uma nova investigação ligada à ditadura militar brasileira, desta vez devido a supostas práticas de trabalho escravo entre 1974 e 1986.

Questionado pela agência de notícias AFP, um porta-voz da Volkswagen assegurou que a empresa leva "muito a sério" o assunto e os "eventuais incidentes" abordados pelas investigações das autoridades judiciais brasileiras.

O grupo alemão não quis acrescentar mais informação "devido a um possível processo judicial".

Segundo as denúncias, a montadora usou "práticas análogas à escravidão" e "tráfico de pessoas". Há também acusações de cumplicidade em "violações sistemáticas de direitos humanos".

As acusações de práticas de trabalho escravo não são novidade, e vieram à tona pela primeira vez em 1983, como lembrado em reportagem de 2017 da DW Brasil.

Os abusos teriam ocorrido durante trabalhos de desmatamento florestal para instalação de um grande projeto agropecuário nas margens do rio Amazonas, no período entre 1974 e 1986, durante a ditadura militar. Conforme a reportagem dos veículos alemães, há vários anos pessoas que trabalharam para o projeto na época tentam receber indenização, mas sem sucesso.

Incentivos fiscais

Na época, o grupo planejava uma grande fazenda de gado no estado do Pará, junto à Bacia Amazônica para o comércio de carne, chamada Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC). A ideia era que a fazenda fosse a porta de entrada da montadora no ramo de carnes – a convite da ditadura militar brasileira, que oferecia incentivos fiscais.

Centenas de trabalhadores diários e temporários foram recrutados na época para fazer o desmatamento de uma área de 70 mil hectares de floresta – metade dos 140 mil hectares da propriedade –, através de contratantes intermediários, mas, segundo a imprensa alemã, com conhecimento da direção da montadora em Wolfsburg, na Alemanha.

Segundo os veículos alemães, que consultaram mais de 2 mil páginas de testemunhos e relatórios da polícia, os trabalhadores foram várias vezes vítimas de abuso e violência por parte de intermediários e de guardas armados no local.

Relatório final

Um relatório final de 84 páginas da investigação detalha a obtenção de provas e as alegações contra a montadora. De acordo com os documentos, os crimes foram cometidos por contratadores terceirizados de mão de obra contratados pela administração da fazenda para o desmatamento e seus vigilantes armados. Trabalhadores temporários teriam sido baleados, espancados e amarrados ao tentarem fugir da empreitada. Mesmo pessoas gravemente doentes teriam sido forçadas a trabalhar sob a mira de armas.

"Era uma forma de escravidão moderna", disse à imprensa alemã Rafael Garcia, o procurador brasileiro do Rio de Janeiro responsável pelo inquérito. Segundo ele, a Volkswagen "manifestamente não só aceitou essa forma de escravagismo como também a encorajou, porque era mão de obra barata", acrescentou.

Os depoimentos descrevem, entre outras coisas, como os guardas colocavam arma na boca dos trabalhadores e como a esposa de um trabalhador foi estuprada como punição por uma tentativa de fuga e como menores eram mantidos contra a vontade na fazenda. Uma mãe afirmou que seu filho morreu em decorrência de ferimentos causados por agressões, enquanto outros trabalhadores teriam desaparecido.

"Condições de trabalho desumanas"

Garcia fala em condições de trabalho desumanas, "em que os trabalhadores contraíram malária, alguns morreram e foram enterrados na fazenda sem que suas famílias fossem informadas". Em vários casos, pessoas doentes ou feridas teriam tido tratamento médico negado. 

O ex-gerente da fazenda, o suíço Friedrich Brügger, nega qualquer responsabilidade. Ele afirma que a responsabilidade era das agências de emprego, que forneciam mão de obra e eram encarregadas do trabalho de desmatamento da área.

A Volkswagen já enfrentou a Justiça brasileira por acusações de cooperação com a ditadura militar. Em 2020, o grupo concordou em pagar R$ 36,3 milhões para indenizar famílias de ex-funcionários torturados ou mortos nesse período.

Os ex-funcionários e suas famílias disseram que o serviço de segurança da Volkswagen no Brasil colaborou com os militares, entregando possíveis suspeitos, que foram detidos e torturados. Esta colaboração foi confirmada por um relatório independente solicitado pela empresa em 2016.