Direito à cidade

Artigo | Cidade, espaço público e contravenção: moradia e cena aberta do crack na Luz

A cena aberta do crack em SP mostra a importância que o território e a territorialização devem ocupar no debate nacional

São Paulo |
Faixa contra a repressão policial na Cracolândia pendurada no bairro da Luz em setembro de 2020 - A Craco Resiste

Na disputa pela localização no mundo urbano há violência, expulsão, judicialização, matéria de jornal. E há políticas públicas na realidade brasileira, na maior parte das vezes, contrárias à universalização do acesso e do direito à vida nas cidades. 

Quando uma sociedade se depara com a violência máxima a que sua gente está submetida, pode enfrentá-la reconhecendo os processos que a geram ou desencadear outros, mais violentos. 

A cena aberta do crack, nos Campos Elíseos, região da Luz na cidade de São Paulo, representa a importância que o território e a chamada territorialização devem ocupar no debate nacional. 

Violência do Estado que se repete

Campos Elíseos abriga uma população que vive em situação de extrema precariedade e vulnerabilidade. Trata-se de uma área do centro histórico – abandonada circunstancialmente pelo Estado (no que se refere a quem vive lá) e de desinteresse momentâneo do mercado (ainda que com investidas precisas como as da Porto Seguro) – e habitada por população pobre. Ali essa gente construiu suas possibilidades de vida, pelas condições formais e informais que o próprio território permitia: facilidade de acesso ao transporte público; oferta de equipamentos de saúde, educação, cultura e lazer; possibilidade de relações de trabalho formais e informais; presença de infraestruturas urbanas; aglomeração e densidade para experiências de solidariedade e alternativas de sobrevivência.

Embrenhados nessa realidade estão (ou estavam, porque o processo de expulsão é constante) mães maranhenses com seus meninos, mulheres que cozinham e vivem da venda de marmitas, administradoras de hotéis cujos donos estão bem longe dali, idosos que vivem sós, egressos do sistema prisional, pessoas que fazem uso de crack. Reconhecer essa gente significa associar o estado de abandono de um lugar pelo poder público à possibilidade das pessoas empobrecidas, deslocadas do mundo do direito formal, encontrarem nesse território suas possibilidades de vida. Nesse contexto é perceptível a precariedade material dos edifícios, que se acentua, processo recorrente na cidade quando se intensifica a fragilidade social. 

As pessoas que moram ali - em áreas de ZEIS - Zonas Especiais de Interesse Social, demarcadas pelo Plano Diretor Estratégico da Cidade - estão o tempo todo sofrendo violência do Estado: sempre uma “Nova Luz” é anunciada, deixando a velha para trás. Essa “Nova Luz”, promete-se, ativaria um lugar “feio” – ocupado por botecos e hotéis decadentes que abrigavam originalmente os cafeicultores e, agora, a prostituição; ocupado por edifícios históricos abandonados à própria sorte; por pensões, administradas por mulheres; por militantes dos movimentos sociais de moradia; pelas famílias e pessoas sozinhas empobrecidas – transformando-o. 

Mas esse é o lugar onde as pessoas moram. Algumas há muitos anos, trabalhando em hotéis das imediações, levando suas crianças para a escola. Associadas às crianças que vão e vêm das escolas, às pessoas que circulam para o trabalho ou que simplesmente moram, estão as consideradas mais “indesejáveis”, que não são vistas na sua condição humana e que habitam as ruas da cena aberta de crack. 

No dia 21 de maio de 2017 - em nome da perseguição aos traficantes que podem estar presentes na área - foi movida uma ação de demolição e remoção pela prefeitura e pelo governo do Estado, ferindo moradores e destruindo áreas habitadas, argumentando-se, reiteradamente, que os traficantes é que estavam sendo procurados. A população da cena aberta, as pessoas que fazem uso do crack também foram acuadas e, sem distinção, submetidas à violência policial.

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Essa ação do poder público aconteceu na rota oposta aos programas que consideram que as pessoas que estão tendo problemas com o uso do crack precisam de amparo e cuidados. A experiência do Programa de Braços Abertos (gestão Haddad) - que oferecia moradia ali mesmo, trabalho público e ajuda no controle do consumo da droga, começava a apresentar resultados e parecia ser uma alternativa muito adequada. Precisava de mais tempo para que se efetivasse e envolvesse mais pessoas que pudessem e quisessem aderir a ele. Na mudança de gestão, entretanto, foi substituído pelo Redenção, que tentou articular, retomando, o programa Recomeço (2013) com a perspectiva do “tratamento”, incluindo a tão combatida internação compulsória, além de moradia distante da Luz e emprego pela iniciativa privada. 

No campo dessa violência relatada -e sempre constante dos agentes de segurança do Estado -, temos acompanhado, nas últimas semanas de maio de 2022, um certo debate público que aponta as pessoas que estão tendo problema com o uso de crack como assustadoras, violentas, sem controle, desumanizadas. Moradores da área central, com medo, pedem ajuda ao Estado, que aciona os mecanismos de coerção e violência. O movimento dos corpos nas ruas e o território que percorrem – da Praça Princesa Isabel a outras áreas do centro da cidade - representam a perda de um aparente controle sugerido anteriormente pela permanência na Praça Júlio Prestes.  

O espaço público é o espaço de todos, por direito, e o uso de crack na cena aberta confunde essa condição. As pessoas habitam o espaço público e, mais que a identificação das cerca de 32 mil pessoas que estão nas ruas de São Paulo, por pobreza extrema e perda de direitos (Censo de 2021), os usuários acrescentam a ideia da contravenção, o que os coloca num patamar para além de indesejáveis, deslocando-os para a categoria de corpos abjetos, como nomeia Taniele Rui (2013). 

A maioria das pessoas totalmente desassistida com problema no uso do crack, é preta - 45,8% pardos e 30,8% pretos, de acordo com pesquisa da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp, 2020 (ou 80% não-brancos, conforme pesquisa da FIOCRUZ e SENAD, 2013) -, muitas não se recuperaram de experiências de encarceramento ou sofreram perdas e desestruturação familiar, além da constatada baixa escolaridade.

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Morar na Luz 

Quando nos aproximamos da região da Luz e quando a adentramos para de fato conhecê-la, encontramos um lugar preenchido por gente, que vive ali as suas vidas cotidianas. O projeto do governo do Estado e da prefeitura construído pela Parceria Público-Privada (PPP) da Habitação, não incluiu essas pessoas. Nenhum dos moradores foi contemplado e muito menos a população das ruas, considerando-se, nesse caso, a necessidade de programas específicos já bastante discutidos em diferentes lugares do mundo (como o housing first, por exemplo). 

A experiência do Fórum Mundaréu da Luz, criado em 2017 e que agrega universidades, ONGs, entidades, coletivos teatrais, institutos de pesquisa, assessorias técnicas e movimentos sociais entre outros agentes, a partir do processo de construir uma proposta com os moradores – batizada como Campos Elíseos Vivo – apontou possibilidades para quem mora e quem vive nas ruas. O projeto de habitação considerou qualidades ambientais, patrimônio histórico, morfologia urbana, estratégias econômicas, e, essencialmente, os modos de vida, as maneiras como as pessoas construíram suas formas gregárias, solidárias e espaciais. 

O projeto garantiria a permanência de todas e todos e a perspectiva do amparo, com moradia e programas de saúde, trabalho e renda para as pessoas que enfrentam o drama da violência, dada pelo uso do crack e, essencialmente, implementada pelo Estado, que coloca seu aparato repressor para violentar as pessoas mais fragilizadas. 

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Dívida social que se reitera 

A dívida para com a maior parcela da sociedade brasileira é histórica. E as equações públicas já nascem incongruentes com as reais condições das pessoas por aqui: o acesso à moradia pela compra (programa que reaparece reiteradas vezes em diversas circunstâncias e tempos históricos) colide com o arrocho salarial, fragilidade dos vínculos de trabalho, perda de direitos.  

O avanço do Estado repressor, violento e que obriga as pessoas à internação, desabilita a necessária consciência histórica de um país que constrói desigualdades todos os dias e que aparece em forma de conflito, que tem sido enfrentado pela artificialidade e imposição da força. Assim, se deslegitima o Estado como possível e desejável agente que reconhece a cidadania de todos, com as devidas singularidades.  

Lepecki, curador de arte, professor e escritor fala de “(...) coreopoliciamentos sutis que (pre)definem o espaço urbano como imagem do consenso neoliberal” (2012). O que vemos no enfrentamento de todas as lógicas que estruturam esse consenso no campo de batalhas da Luz é uma dissolução completa - pela força - de qualquer resistência formal, de qualquer possibilidade de uma ação no território no campo do humano e do direito. 

Tal caminho nos coloca em constante alerta, pois se apresenta como um movimento de passagem entre a situação atual e o futuro (que se apresenta como um não-futuro), entendendo a participação, consciente ou não, de todos os estágios desta atividade, colocando a todos nós – corpos, insurgências e ações institucionalizadas – como partes desta travessia em estatuto paralisante de permanente conflito. Parados e estarrecidos, vemos o desmanchar mínimo de humanidade. 

 

*Antonio Fabiano Junior - arquiteto, mestre e doutorando pela FAU USP, professor da FAU Mackenzie. Recebeu premiações com projetos de arquitetura e como orientador que tangenciam a extensão.

Lizete Maria Rubano – arquiteta urbanista, professora de projeto da FAUMack, coordenadora do EMAU-Mosaico, membro da rede BrCidades

**Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria