entrevista

"O PT não vai abdicar do combate à desigualdade", afirma Haddad

Ex-prefeito e provável candidato a governador afirma que abandono da agenda faria o partido perder o sentido

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Pra Haddad, conquistar o eleitor do interior paulista é um desafio, e não um obstáculo insuperável
Pra Haddad, conquistar o eleitor do interior paulista é um desafio, e não um obstáculo insuperável - Joka Madruga / PT Nacional

Ex-ministro da Educação (de 2005 a 2012), prefeito de São Paulo entre 2013 e 2016 e candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) derrotado no segundo turno da última eleição presidencial, em 2018, Fernando Haddad desponta como favorito, segundo as pesquisas divulgadas até o momento, para ser o próximo governador de São Paulo.

No mais recente levantamento do Datafolha, divulgado em 7 de abril, ele liderava as intenções de voto com 29%. Márcio França (PSB) apareceu com 20%, e Tarcísio de Freitas (Republicanos), com 10%.

Se Haddad for eleito, será a primeira vez desde o pleito de 1994 que não será um candidato do PSDB a vencer uma eleição estadual em São Paulo — na ocasião, o tucano Mário Covas foi eleito para seu primeiro mandato.

Haddad analisa que o PSDB "vive uma crise de identidade" sem precedentes. E vê como um desafio conquistar a simpatia do eleitorado que conserva uma rejeição ao PT, sobretudo nas pequenas e médias cidades do interior. "Não é um obstáculo insuperável", diz ele. "[É preciso um discurso] que dialogue com os anseios do interior. Vejo como uma coisa até estimulante."

A poucos dias de confirmar sua pré-candidatura, ele tergiversa quando questionado sobre o assunto. Mas, nas entrelinhas, deixa claro que será o candidato do PT — há apenas uma espera pela posição do PSB para saber a quem ficará a posição de vice na chapa.

Em entrevista à DW Brasil, afirma que sempre houve uma "torcida contra" o partido. "Temos uma plataforma de combate à desigualdade, tem gente que não tem essa plataforma. Historicamente, tem um terço da população, em geral das camadas mais abastadas, que tem dificuldade com a agenda do PT. [...] Isso é incontornável. Não tem como resolver. É um problema de agenda. Teríamos de abdicar de nossa plataforma para atrair essas pessoas, o que faria com que perdêssemos o sentido de existir."

DW Brasil: O senhor vem liderando as pesquisas para ser o novo governador de São Paulo, ao mesmo tempo que o PSDB vive uma crise histórica. Acredita que este ano será rompida a hegemonia do PSDB nas eleições paulistas?

Fernando Haddad: Ainda é um pouco cedo para atestar isso, mas eu diria que o PSDB vive uma crise de identidade como nunca viveu. Em primeiro lugar porque, no segundo turno [da eleição para o governo federal] de 2018, o PSDB aderiu aqui em São Paulo de forma escancarada ao bolsonarismo. Não só aqui. No Rio Grande do Sul, com o [governador eleito na última eleição] Eduardo Leite, e em Minas Gerais, que eram estados tradicionalmente mais conservadores. Na minha opinião, eles atrelaram o seu destino ao destino do governo Bolsonaro de um jeito muito estranho. Porque se o Bolsonaro desse certo, ele seria a nova força hegemônica à direita. Se desse errado, seria muito difícil ao PSDB, como tentou, se descolar do bolsonarismo e se impôr como uma força política substituta. Eles entraram numa armadilha. Lembrando que nem o [ex-governador de São Paulo, João] Doria nem agora o [atual governador e pré-candidato à reeleição] Rodrigo Garcia são tucanos históricos. [Eles] nunca foram exatamente apoiadores do PSDB. Não têm, nunca tiveram uma proximidade com a social-democracia, de maneira que há uma crise de identidade.

Mas mesmo tendo sido eleito com o mote "BolsoDoria", o ex-governador paulista acabou se apresentando como oposição ao governo Bolsonaro, sobretudo durante a pandemia. Com a saída de cena dele do cenário eleitoral, quem fica com esse legado também antibolsonarista em São Paulo?

O Doria tinha tão pouco voto [nas pesquisas] que é difícil falar em migração…

Mas ele foi eleito em São Paulo há quatro anos…

Foi eleito, mas se tornou o governante com o menor índice de aprovação da série histórica no governo do estado. É um índice muito baixo [segundo o Datafolha, ele deixou o posto com uma aprovação de apenas 23% e reprovação de 36%]. Mesmo que ele fosse candidato [à reeleição] a governador ele teria muita dificuldade em garantir sua própria recondução. Não sei a capacidade do vice dele [Garcia] de se descolar dele a ponto de emergir como um personagem novo, é uma operação muito complexa.

O Bolsonaro não está tão mal em São Paulo como nós gostaríamos. Ele não está competitivo ainda, mas a chance de um candidato de direita contra o Bolsonaro crescer em São Paulo tendo um candidato progressista ligado a uma candidatura presidencial do [ex-presidente e pré-candidato] Lula… Eu diria que é uma ponte estreita, uma via estreita.

Já que estamos falando sobre isso, no Grupo de Trabalho Eleitoral definido pela direção do PT, a sua eleição para o governo paulista aparece como uma prioridade. O que falta para que o senhor seja anunciado como candidato?

Estamos aguardando o final das negociações da chapa nacional, o que aconteceu pouco tempo atrás, quando a chapa Lula-Alckmin foi finalmente anunciada [no início de maio]. Agora estamos aguardando uma decisão final do PSB [atual partido do ex-tucano Geraldo Alckmin, que tem Márcio França como potencial candidato em São Paulo] de ter ou não candidato ao governo do estado, o que deve acontecer nos próximos 10, 15 dias. Estamos aguardando só isso para anunciar a chapa. E aí lançar a candidatura oficialmente. A definição do PSB de ter ou não candidato é a última pergunta que falta ser respondida. Assim que soubermos, eu fecho a chapa de um jeito. Se o PSB não tiver candidato, eu fecho a chapa de outro jeito.

Então, em outras palavras, o que falta é a definição do vice, e não da sua candidatura…

Eu disse e repito em várias oportunidades: eu respeito e vou tratar a candidatura do Márcio França com a maior legitimidade, sem problema nenhum. Nunca pediria para o Márcio abrir mão de sua candidatura. Nunca isso esteve na mesa de negociações. Mas só precisamos de uma definição para tomar as providências em uma ou outra direção.

Acredita que a polarização entre anti-Bolsonaro e anti-PT vai contaminar a eleição paulista?

Acho que está meio fora de moda essa coisa de anti. O PT sempre foi um partido grande, que disputou todas as eleições presidenciais de forma competitiva. Todo partido grande tem uma torcida contra, e isso não significa um sentimento anti-PT. Significa que há gente que sabe o que é o PT e está em desacordo com essa plataforma. Temos uma plataforma de combate à desigualdade, tem gente que não tem essa plataforma.

Historicamente, tem um terço da população, em geral das camadas mais abastadas, que tem dificuldade com a agenda do PT. E isso é natural em uma democracia. Não vejo isso com preocupação. Eu não vejo um sentimento anti, como é o caso com o bolsonarismo.

O bolsonarismo trabalha uma chave que é diferente da chave democrática. Uma coisa é você tomar o outro como adversário, outra é tomar o diferente como inimigo. É completamente diferente. Essa questão de um terço da sociedade ter dificuldade com a agenda do PT, isso é incontornável. Não tem como resolver. É um problema de agenda. Teríamos de abdicar de nossa plataforma para atrair essas pessoas, o que faria com que perdêssemos o sentido de existir.

Mas há uma rejeição com relação à figura do Lula e, por extensão, ao PT… E isso está presente no interior de São Paulo, por exemplo.

Estou liderando as pesquisas também no interior de São Paulo. Óbvio que é uma tarefa maior, porque o PT governou cerca de 180 cidades do interior paulista, e são [no total] 645. Tem muita gente que não conhece, não conheceu um prefeito do PT, o que é natural. Vejo como um desafio, e não como um obstáculo. Não é um obstáculo insuperável. É um desafio. [É preciso um discurso] que dialogue com os anseios do interior. Vejo como uma coisa até estimulante.

Quando o senhor analisa o contexto internacional dos últimos quatro anos, chega a pensar no que faria diferente se tivesse sido eleito presidente?

A [minha] diferença para o governo Bolsonaro é tanta… É muito grande. [Ele] é um homem com desequilíbrios emocionais muito severos. Comparar qualquer pessoa com o Bolsonaro é difícil. Ele é uma pessoa que não trabalha […], são cerca de três horas por dia de jornada de trabalho, tem um descaso completo pelo conhecimento, alergia a ler um livro e a se informar, a querer entender os processos sociais. Nessa questão da pandemia ele chegou a estimar que o número de vítimas não chegaria a mil pessoas, chegou a ofender jornalistas...

É difícil falar de Bolsonaro, porque nada se compara ao Bolsonaro do ponto de vista do equilíbrio, da empatia, de se colocar no lugar do outro. Ele perdeu o controle completamente da economia: desemprego, inflação, carestia, o poder de compra do salário desabou. E coisas mais básicas: desmatamento, relações exteriores, ciência e tecnologia, cultura, educação. Faria tudo diferente dele. Eu sou uma pessoa 100% diferente dele. Não tenho nenhum traço.

No prefácio do seu livro O Terceiro Excluído, recém-lançado, o senhor relata o encontro que teve com Noam Chomsky poucos dias antes da eleição de 2018 e pontua que era um intervalo curto "entre conversar com um dos grandes humanistas vivos e enfrentar nas urnas um psicopata". O senhor acredita que Jair Bolsonaro seja um psicopata ou isso foi apenas força de expressão?

Não é força de expressão. Acredito que uma pessoa que lida assim com o sofrimento alheio tem um traço de personalidade doentio. Não tenho a menor dúvida disso. Ele é uma pessoa doentia do ponto de vista da empatia, da sensibilidade. Tem um traço de desumanidade no Bolsonaro que é notável.

Como o professor universitário Fernando Haddad analisa o contexto do Brasil dividido e polarizado de 2022? Existe solução para curar essa ferida?

Dá para fazer uma correlação entre o que está acontecendo hoje e o que aconteceu nos anos 1920, 100 anos atrás: uma crise financeira global associada à emergência de um novo meio de comunicação de massa. [Na época] era o rádio. E agora você está vivendo uma coisa muito parecida. A emergência da extrema direita se vale também dos novos meios de comunicação de massa, que são mais sofisticados. É muito fácil usar intolerância em uma crise. É o caldo de cultura de que você precisa: comunicação de massa em meio à crise.

É preciso lutar contra isso […] com uma agenda construtiva. E reconstruir isso é tarefa da política, porque, num certo sentido, toda essa ação protofascista, fascista, ela tem uma dimensão antipolítica. Ela trabalha com a obstrução da comunicação. Ela trabalha justamente com a criação de barreiras na comunicação […], transformando diferença em contradição e eliminação, aniquilamento. É assim que trabalha antipolítica fascista: ela é criadora de barreiras intransponíveis entre as pessoas. É assim que trabalha a extrema direita.

Bolsonaro já deu todos os indícios de que não vai reconhecer uma eventual derrota eleitoral. Existe uma estratégia dentro do PT de como reagir a uma situação dessas?

Não acredito que haja ambiente, nem interno, nem externo, nem doméstico, nem internacional, que garanta uma ruptura institucional, um golpe clássico. Agora, para agitação, existe. Porque é disso que ele [Bolsonaro] vive. Haverá agitação, em qualquer cenário. Ele precisa da agitação. Sem agitação ele não consegue manter o rebanho, porque as pessoas vivem uma espécie de transe […], e não há como alimentar esse transe com racionalidade.

Ele provavelmente vai agitar o país e isso pode causar estragos. A gente não sabe o grau de patologia dos seguidores mais fanáticos. E ele estimula o fanatismo, a compra de armas, tudo o mais. Isso pode acarretar prejuízos, inclusive do ponto de vista de vidas humanas.

Se nos Estados Unidos aconteceu o que aconteceu, cinco mortos no Capitólio [quando apoiadores do ex-presidente Donald Trump reagiram violentamente à eleição do atual mandatário, Joe Biden], aqui pode acontecer coisa pior. Mas eu não acredito em ruptura institucional, porque não há ambiente para isso. Estamos em outra chave aqui no Brasil.