Coluna

Minha casa, minha dívida

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Durante a pandemia, mais de 27 mil famílias sofreram despejos no Brasil, e outras 132 mil estavam ameaçadas de o sofrerem - Paulo H Carvalho/Agência Brasília
Não é difícil antever cenários catastróficos para o Brasil de 2022 caso o PL 4.188/21 seja aprovado

Por José Carlos Garcia*

Quando entramos na faculdade de Direito (no meu caso, há muitos mais anos do que eu gostaria de confessar), aprendemos que a casa “é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial” (art. 5.º, XI, da Constituição). Milhares de famílias brasileiras, entretanto, não têm “asilos invioláveis”. Vivem, ao contrário, com suas vidas e seus direitos sistematicamente violados, em calçadas, terrenos, ocupações precárias. 

Os dados oficiais mais recentes são de 2020, quando, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, 221.869 brasileiros viviam nas ruas, sem ter onde morar. De lá para cá, este número só fez crescer durante a pandemia de Covid-19, apesar das sucessivas proibições determinadas em leis estaduais e pelo Supremo Tribunal Federal – STF, o que foi tema de artigo meu nesta mesma coluna, em julho do ano passado. Trata-se, pois, de grave problema social, que deveria sensibilizar os governos de todas as esferas da Federação e seus legislativos a atacar com decisão esta questão.

Aparentemente, não no Brasil. A Finlândia vem se consolidando como o único país da Europa em que o número de sem-tetos diminui consistentemente há três décadas, em virtude de uma agressiva política de combate ao problema, por compreender que distribuir moradias é mais barato do que lidar com as consequências da falta delas; já o Brasil não apenas ignora o problema, como ainda gera novas perspectivas e possibilidades para seu agravamento. É o caso do PL 4.188/2021, que foi aprovado no dia 1.º de junho pela Câmara dos Deputados, e remetido ao Senado para deliberação. 

O objetivo da medida seria, em tese, o de “facilitar a utilização de garantias por meio do serviço de gestão especializada de instrumentos de garantias móveis e imóveis, que será realizado por Instituições Gestoras de Garantia – IGG e regulado pelo Conselho Monetário Nacional – CMN”, conforme consta do projeto original. Deste modo, com a otimização da gestão de garantias, seria ampliada a segurança de credores e, com isso, se pretendia “estimular a redução das taxas de juros, elevar o número de alternativas de crédito e diminuir os custos operacionais para as instituições financeiras. Espera-se, portanto, um aumento da eficiência e uma redução de barreiras à entrada no mercado de crédito”. Mas ele vai bem além disso.  

Os especialistas têm apontado, dentre outras, duas medidas previstas no Projeto de Lei que seriam as mais terríveis para o país: a primeira delas, autorizar que o bem dado em garantia possa garantir ao mesmo tempo múltiplas dívidas, mas prevendo que, caso uma delas deixe de ser paga no prazo devido, todas vençam antecipadamente – mecanismo similar, que à época existia nos EUA e não no Brasil, está na origem da crise econômica mundial de 2008; a outra, a inclusão do inciso V, e parágrafo único, no art. 3.º da Lei 8.009/90.  

A Lei 8.009/90 é a lei que regula a impenhorabilidade do bem família. Mais claramente, como diz seu art. 1.º: “O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei”. O art. 3.º desta Lei é a que prevê as exceções à impenhorabilidade do bem de família, ou seja, os casos em que ele pode ser objeto de penhora e execução – retirado de seus donos, em resumo. Hoje, há seis exceções previstas na Lei, em que o bem de família pode responder por dívidas, mas todas são situações extremas e excepcionais que ou se relacionam a outras obrigações ligadas a direitos fundamentais, como o débito de pensão alimentícia; ou ao fato da aquisição do bem decorrer da prática de crime, ou dever responder pelo ressarcimento de prejuízo decorrente de crime praticado pelo proprietário; ou a dívidas incidentes sobre o próprio imóvel. São situações claramente demarcadas e justificadas dentro de um sistema jurídico democrático e racional que equilibram os deveres do proprietário para com a sociedade e seu direito fundamental à habitação. O PL 4.188/21, em seu art. 14, inclui na Lei 8.009 uma nova exceção: “para excussão de imóvel oferecido como garantia real, independentemente da obrigação garantida ou da destinação dos recursos obtidos, mesmo quando a dívida for de terceiro”. 

Da forma como redigida esta exceção, o único imóvel residencial da família pode acabar respondendo por toda e qualquer forma de dívida, inclusive de terceiro. Pior: como o vencimento de uma dívida sem pagamento autoriza a antecipação do vencimento de todas as demais garantidas pelo mesmo bem, a pessoa pode acabar perdendo o único imóvel que tem para morar e seguir devendo. 

Como já apontado por vários e várias autoras, a aprovação do Projeto tal como saído da Câmara dos Deputados implicaria uma profunda fragilização de uma das garantias constitucionais mais importantes, que é o direito à moradia e à vida digna. Ela afrontaria o princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República (art. 1.º, III, da Constituição); dois dos objetivos da nossa República, que são construir uma sociedade justa e solidária e erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais (art. 3.º, I e III); e um dos mais relevantes direitos sociais previstos na Constituição, o direito à moradia (arts. 6.º, caput, e 23, IX). O direito à moradia também é previsto como direito humano fundamental pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas – ONU, desde 1948 (art. 25), e o Brasil é signatário da Declaração. O Brasil também reconheceu, perante seu povo e toda comunidade internacional, o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à moradia adequada, devendo tomar medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, nos termos do art. 11 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, de 1966, incluído no ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto 591/92, o qual, nos termos do art. 5.º, § 2.º, da nossa Constituição, insere-se no nosso sistema jurídico acima das leis ordinárias e logo abaixo das normas constitucionais. 

Sempre que este tipo de norma protetiva dos direitos humanos é contestado, ou que se procura revogá-lo ou contorná-lo, restringi-lo indevidamente ou modificá-lo transversalmente, os “religiosos” neoliberais os acusam de serem normas socialistas ou comunistas. Todavia, a origem desta norma protetiva à moradia e à dignidade não decorre de nenhuma revolução russa, cubana, chinesa: remonta ao Homestead Exemption Act do Texas, de 1839, quando, após uma grande e imprudente expansão do crédito, muitos bancos e devedores foram levados à falência e à miséria, determinando que certas restrições mínimas fossem estabelecidas para proteger a moradia dos cidadãos. Para se ter uma ideia, entre 1837 e 1839, cerca de 900 bancos fecharam e foram decretadas cerca de 33 mil falências, o que acabou dando causa à aprovação daquela lei. 

Não é difícil antever cenários catastróficos para o Brasil de 2022 caso o PL 4.188/21 seja aprovado. Durante a pandemia, mais de 27 mil famílias sofreram despejos no Brasil, e outras 132 mil estavam ameaçadas de o sofrerem. Ou seja, já temos um problema grave de moradia. Além disso, o endividamento e a inadimplência das famílias no Brasil também não para de crescer: segundo a Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência, divulgada em começo de março pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo – CNC, 76,6% das famílias brasileiras estava endividadas em fevereiro, e 27% estavam inadimplentes, atingindo o maior percentual de inadimplência desde março de 2010.

É neste contexto que o governo pretende pulverizar a garantia da impenhorabilidade do único imóvel residencial das pessoas, a fim de favorecer os credores, ou seja, os bancos. No pior ano da pandemia de Covid-19, o ano passado, as quatro maiores instituições financeiras do país com ações negociadas na Bolsa de Valores (Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander) lucraram, juntas, R$ 81,6 bilhões, o maior valor já registrado pela empresa Economatica, que acompanha os resultados contábeis das instituições financeiras há 15 anos. O lucro somado dos quatro maiores bancos, segundo a mesma fonte, cresceu 32,5% de 2020 para 2021, enquanto a renda do trabalhador caiu 11,4%. No primeiro trimestre do corrente ano, a taxa de desemprego no país atingiu 11,1%, quase 12 milhões de pessoas, segundo o IBGE. Se somarmos àquele contingente os 4,6 milhões de “desalentados”, segundo a nomenclatura do IBGE (ou seja, pessoas que gostariam de trabalhar e estariam disponíveis, mas que pararam de procurar emprego por acreditarem que não o encontrariam), falamos de mais de 16 milhões de pessoas. 

Da forma como está o projeto, a quem efetivamente ele favorece? Ao pequeno tomador, que busca crédito fácil e barato para suas pequenas despesas imprevistas ou para um reparo em sua casa? Ao pequeno e médio empreendedor, que busca capital de giro ou investimento para seus pequenos negócios? Ou aos grandes bancos, com lucros recordes a cada trimestre, mesmo durante uma pandemia global? 

Esperamos que o Senado Federal possa corrigir, a tempo e modo, o grave erro que seria a aprovação desta medida que acaba com uma das mais importantes garantias da cidadania, o direito a um teto e um lar dignos. Está com o Senado a possibilidade de assegurar que o asilo inviolável não se torne mais um direito violado.

*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria