Direitos humanos

Argentina: Banco de Dados Genéticos completa 35 anos identificando bebês roubados na ditadura

Avós da Praça de Maio impulsionaram avanço científico que hoje é referência na região para identificar crimes de Estado

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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A geneticista Marie-Claire King, à esquerda, com as Avós da Praça de Maio. - Avós da Praça de Maio/Arquivo

"Nosso sangue servirá para encontrar nossos netos?" Com essa pergunta, abriu-se um novo capítulo na busca por desaparecidos da ditadura militar argentina. Uma pergunta-chave que abriu um caminho de união entre ciência e direitos humanos para preencher as violentas lacunas deixadas pelo regime em milhares de famílias.

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A última ditadura argentina (1976 a 1983) foi a mais violenta que o país atravessou. O período, intitulado pelos militares como Processo de Reorganização Nacional, foi marcado pela perseguição política a militantes progressistas, professores, sindicalistas e todo perfil que se encaixasse no critério "subversivo" pautado pelo regime. Deixou um saldo de 30 mil desaparecidos, entre eles bebês sequestrados ainda pequenos ou, no caso de mulheres sequestradas grávidas, diretamente nascidos em cativeiro.

Muitos desses bebês foram apropriados por famílias próximas ao Exército. Outros foram abandonados ou assassinados. As avós desses bebês empreenderam uma busca incessante pelo paradeiro dos seus netos, nas históricas rondas na Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo, em Buenos Aires.

Em meio ao cerco midiático e ao clima repressivo, essas mulheres, avós e mães de desaparecidos, se identificavam com lenços brancos envolvendo suas cabeças e, mais tarde, formariam as organizações sociais pelos direitos humanos mais emblemáticas da Argentina: as Mães da Praça de Maio e as Avós da Praça de Maio.

A partir de uma notícia sobre a hipótese de que a genética poderia ser um caminho para encontrar esses netos, com a esperança de que estivessem vivos, essas avós foram atrás de respostas mais concretas. Assim, contataram, nos anos 1980, o geneticista Victor Penchaszadeh, que, por ser perseguido político pelo regime e ao livrar-se de um sequestro em seu laboratório, em Buenos Aires, se exilou nos Estados Unidos.


O geneticista Victor Penchaszadeh, à esquerda, e a presidenta da Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, no meio. / Arquivo

Sem saber da potencialidade desse caminho inaugurado, a convicção das avós e dos cientistas envolvidos na busca por respostas deu origem ao que, anos mais tarde, seria o Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG).

Neste mês, o Banco completa 35 anos de história. Experiência pioneira na região, o trabalho do banco e das instituições ligadas a ele fizeram ser possível a restituição de, até hoje, 130 netos roubados durante a ditadura. Javier Matías Darroux Mijalchuk foi o último, em 13 de junho de 2019.

Calcula-se que cerca de 500 bebês foram sequestrados pelos militares desde antes de consumado o golpe, e já em anos repressivos, entre 1974 e 1983.

Restituições

"Ele me buscou. Foi cumprido o que sempre dizemos às Avós: eles irão nos procurar, assim como nós estamos procurando por eles", anunciava uma Estela de Carlotto emocionada, ao lado de seu neto restituído aos 36 anos, Ignacio Montoya – ou Guido, nome escolhido por sua mãe antes do sequestro. Na ocasião, Estela, presidenta da Associação das Avós da Praça de Maio, realizava a conferência de imprensa para anunciar a restituição.

"Ele buscou a associação e, hoje, me disseram: 'é o seu neto em 99,99999%'", disse. Uma das restituições mais esperadas, dada a visibilidade da militância de Estela, o encontro com seu neto, em 2014, foi possível graças ao avanço científico impulsionado pelas próprias avós.

O nível de precisão anunciado por Estela, por associação genética, foi aperfeiçoado ao longo de anos de pesquisa. No começo da década de 80, quando Victor Penchaszadeh foi procurado pelas Avós da Praça de Maio, o cenário era bem diferente. "Ainda não era possível fracionar o DNA para estudá-lo por pedacinhos. Isso foi possível apenas em meados dos 1980, quando um cientista inglês inventou uma maneira de separar os fragmentos do DNA", conta o geneticista ao Brasil de Fato. "Até então, o estudo era feito por grupo sanguíneo."

Assim, com a nova técnica, o desafio colocado foi associar dados genéticos entre avós e netos. O caminho tomado pelo grupo de trabalho formado entre diversos cientistas que se somaram à empreitada foi, então, adaptar o índice de paternidade tendo como referência a informação genética das avós. Uma das integrantes desse grupo foi a geneticista Mary-Claire King, reconhecida por identificar a semelhança entre os genes humanos e dos chimpanzés e dos genes responsáveis pelo câncer de mama.

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Os estudos foram concluídos meses depois, dando origem, em 1984, ao índice de "abuelidad" (do espanhol a partir da palavra "abuela"; "avó" em português). Os dados estatísticos gerados a partir desta experiência pioneira possibilitaram uma nova e importante via de identificação de desaparecidos e o avanço de laboratórios especializados em genética forense na Argentina.

A partir da recomendação de Victor, foi formado uma instituição para concentrar, sintetizar e arquivar as amostras genéticas coletadas entre as famílias que buscam e as pessoas que duvidam de sua identidade. Assim, em 1987, é promulgada a lei que estabelece a criação e o funcionamento do Banco Nacional de Dados Genéticos na busca de desaparecidos entre 1974 e 1983.

As vias da busca e do encontro

Antes dos primeiros dados estatísticos pelos estudos da genética, as famílias puderam restituir netos a partir de outras informações, como fotos e dados digitais, no caso de bebês sequestrados algum tempo depois de nascidos. Quando esgotadas essas possibilidades, a ciência passou a cumprir um papel fundamental na busca das Avós. No entanto, esse caminho sempre foi construído, e continua sendo, em conjunto com as políticas de Estado e as organizações de direitos humanos.

No recém-lançado livro em comemoração aos 35 anos do Banco, a diretora da instituição, Mariana Herrera, chama a atenção para a rápida atuação sobre os crimes cometidos na ditadura logo depois de recuperada a democracia, em 1983. "Nos arquivos do BNDG está plasmada a história e a evolução da genética forense no mundo", escreve. "Os estudos dos antígenos de histocompatibilidade para obter o índice de 'abuelidad' e os estudos do DNA mitocondrial para casos de filiações complexas na ausência dos progenitores vieram à luz pelo trabalho de restituição dos netos na Argentina."

Com o avanço sobre os estudos genéticos, foi possível aperfeiçoar e melhorar os resultados de compatibilidade genética. Responsável pelo laboratório do BNDG, Nicolás Furman, doutor em biologia, explica ao Brasil de Fato que, no início, os estudos se baseavam em marcadores bioquímicos. "Na década de 90, a genética forense ganha outra dimensão e se incorporam outros marcadores, como os Short Time Repeat (STR) autossômicos, que são repetições curtas que se dão em partes dos genomas; e também o DNA mitocondrial. Com mais marcadores, as estatísticas geradas são muito maiores e os resultados muito mais precisos", explica o biólogo.

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Hoje, aponta, um dos principais desafios do BNDG é justamente ampliar os marcadores e garantir que nenhum neto escape das análises de compatibilidade com os dados do banco. Um caso conhecido neste sentido é o do 98º neto restituído, Guillermo Amarilla, em 2009. Nascido durante a ditadura e com a dúvida sobre sua real identidade, realizou um exame genético no Banco em 2008. O resultado deu negativo. Foi a partir de uma testemunha, no processo judicial de Campo de Mayo, um dos centros clandestinos da ditadura, que se soube que Marcela Esther Molfino havia sido sequestrada grávida pelos militares.

"Com essa denúncia, incorporamos esse caso familiar, produziu-se a inclusão (compatibilidade genética) de Guillermo no grupo familiar e, assim, o identificamos", conta Nicolás. "Muitas famílias foram totalmente exterminadas durante a ditadura, ou praticamente não sobrou nenhum familiar, já que muitas famílias atravessam seu processo de dor sem querer fazer mais nada a respeito". Ele conta que viveu um caso similar na sua própria família. "Meu pai viveu na clandestinidade, meus pais tinham familiares exilados, amigos desaparecidos. Mas muitas histórias que meus pais contaram sobre a ditadura foram informações que tive já com 38 anos."

Uma busca com diversas frentes

A restituição de Guillermo Amarilla é um caso ilustrativo sobre a efetividade de respostas a crimes de lesa humanidade envolvendo diversos âmbitos da sociedade e do Estado. Envolve o processo de justiça, de construção e reconstrução da verdade e da memória – que, longe de ser um retrato estático do passado, é algo vivo e presente, algo que a militância das Mães e Avós da Praça de Maio concretizam todo o tempo –, da ciência, das organizações sociais, das políticas públicas.

Junto à associação das Avós, uma outra instituição, a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (Conadi), cumpre um papel fundamental nas campanhas de sensibilização a pessoas nascidas entre 1974 e 1983 que duvidem de sua identidade. Vinculada ao Estado, a Conadi também encaminha casos, quando necessário, ao Banco de Dados Genético para a realização de perícias genéticas.

São cerca de 1.200 amostras estudadas pelo BNDG por ano. Com a pandemia, o número foi reduzido, mas, neste ano, o ritmo de trabalho já aponta para normalizar a rotina habitual do Banco e, assim, otimizar as buscas.

Identidade e direitos humanos

A restituição de um neto, alguém que teve sua história oculta por seus apropriadores, significa, finalmente, a recuperação de sua identidade. No entanto, o conceito abarca um plano muito mais amplo e complexo sobre sua conformação, para além da informação biológica. 

"A identidade é algo muito mais vasto que a identidade genética, que são laços de parentesco", aponta Penchaszadeh."A identidade possui componentes não genéticos como cultura, educação, fatores sociais, ambientais, socioeconômicos. A identidade, em si mesma, é um processo", aponta.

Assim é que a relação afetiva, por exemplo, também é uma construção após a restituição. É comum relatos de netos e netas recuperadas sobre como se relacionam com as avós ou parentes que os buscavam, e descobrem afinidades aos poucos. 

"As primeiras restituições foram com crianças, mas os anos vão passando e esses netos hoje são adultos", afirma. "Muitas pessoas inclusive rejeitam a ideia de fazer a análise genética mesmo com muitos dados que indicam que possivelmente tenham sido bebês apropriados." Sobre esses casos, a legislação avançou e estabelece que, em casos de crimes de lesa humanidade, hierarquicamente há uma responsabilidade que se sobrepõe ao direito de privacidade e, dessa forma, a realização da análise genética já não passa a ser uma decisão individual, uma vez que o caso seja judicializado.

Como exemplo de experiência pioneira em genética forense, o BNDG já realizou capacitações e intercâmbios com países da região que também atravessaram ditaduras ou possuem buscas ativas de desaparecidos pelo Estado, como Colômbia, Peru e, mais recentemente, El Salvador. O próprio geneticista Victor Penchaszadeh auxiliou diretamente em processos de identificação pela genética forense em El Salvador e na Guatemala. Além disso, junto à equipe argentina de antropologia forense, ele trabalha em países como o México na busca de desaparecidos políticos.

"Penso que a ciência só pode ser válida se for apoiada nos direitos humanos", diz Penchaszadeh. "Nenhuma pesquisa científica que não se baseie na dignidade das pessoas e nos direitos humanos pode ser válida."

Edição: Arturo Hartmann