ENTREVISTA

Privatização da água e do saneamento: entenda os riscos da venda da Corsan no Rio Grande do Sul

BdF conversou com Rogério Ferraz, do Sindiágua: "Corsan não precisa ser privatizada para universalizar o serviço"

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Privatização da Corsan está em curso no Rio Grande do Sul - Foto: Corsan

A não privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) era uma das promessas do ex-governador Eduardo Leite (PSDB). Porém, com a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico foram dadas melhores condições para facilitar a venda das empresas públicas de água e saneamento.

Além disso, a nova legislação instituiu as metas de saneamento que o país precisa atingir, até 2033: 99% da população com acesso à água potável e 90% com saneamento básico. Nesse sentido, passou a ser um argumento do governo gaúcho que a Corsan não teria capacidade de atingir essas metas, sendo necessária então, a sua venda para a iniciativa privada.

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A proposta é vender ações da Companhia, que hoje é 100% pública, na Bolsa de Valores. Assim, o estado e a Corsan arrecadariam o dinheiro necessário para fazer os investimentos e obras necessárias para cumprir as metas do saneamento.

Ancorado no fato de que, desde agosto de 2021, foi aprovado pela Assembleia Legislativa do RS o Projeto de Lei 211/2021, que autoriza a desestatização (venda/privatização) da Corsan, o governo vem tentando fazer uma Oferta Pública de Ações, mais conhecida como IPO, na sigla em inglês ("initial public offering"). Porém, vem enfrentando ceticismo de investidores e resistência de organizações sindicais e populares.

Os questionamentos são feitos por vários ângulos. Primeiro, a assinatura dos novos contratos de serviço com os prefeitos das cidades que têm acertos com a Corsan. O Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua/RS) afirma que essas mudanças contratuais visam facilitar a privatização. O governo argumenta que essas mudanças objetivam somente adequar os acordos à nova legislação.

Além disso, o próprio mérito do processo de privatização é questionado. Diversas entidades contestam a necessidade de venda da Companhia. O próprio Sindiágua/RS já entrou na justiça e pediu para o Legislativo gaúcho investigar que a empresa pública pode sim cumprir as metas estipuladas.


Rogério Ferraz esteve presente na manifestação "RS pela Água", convocada pelo Sindiágua/RS em Porto Alegre / Reprodução

Para entender a privatização da Corsan e saber em qual ponto se encontra o processo, o Brasil de Fato RS conversou com Rogério Ferraz, diretor licenciado de Comunicação do Sindiágua/RS, para questionar quais são os argumentos que embasam essas criticas.

Confira:

Brasil de Fato RS - Gostaria que tu explicasse a crítica ao processo de privatização e também, o que são os "aditivos contratuais", que foram muito referidos pelo governo e pela mídia.

Rogério Ferraz - Primeiro, para poder entender: o governo cometeu um erro na montagem do processo da privatização. Quando o governador, lá em março de 2021, torna pública a intenção de venda da Corsan, ele começou o processo pelo lado oposto: a venda da Corsan deveria ser o último estágio.

Digo isso, pois o serviço de saneamento do estado não pertence à Corsan nem ao governo do RS. O que é de propriedade da Corsan, nos municípios, é a parte física: os escritórios, as redes, o reservatório, etc. Mas isso não tem valor pra Bolsa de Valores, o que interessa é o serviço de saneamento, que é prestado nos municípios.

O dono, o detentor, do serviço de saneamento é o município. Na verdade, o Leite anunciou a venda de um ativo que não lhe pertence, que é dos municípios, sendo que o governador não conversou com os prefeitos antes de fazer o anúncio de venda da Corsan.

Ele colocou um objetivo pessoal e só depois tratou de tentar ter as condições para atingir esse objetivo. Contratou consultorias e advogados milionários sem licitação para tentar convencer os prefeitos de que seria bom vender esse ativo. Então este foi um primeiro erro.

BdF RS - Por qual motivo acredita que esse erro aconteceu?

Ferraz - O calendário dele não dava um cronograma para privatizar uma empresa do tamanho da Corsan, isso demora, tem procedimentos que precisam ser adotados e são demorados.

Mas ele [Leite] tinha o calendário eleitoral dele, precisava o mais rápido possível vender a Corsan pra se colocar pro mercado financeiro como um gestor moderno, que não se apega à questões estatais e que é amigo do mercado, para que este patrocinasse sua campanha à Presidência da República.

BdF RS - Então, o que são os aditivos de contrato?

Ferraz - Na verdade, os aditivos que precisam ser feitos nos contratos de saneamento que os municípios detêm com a Corsan é uma obrigação legal da Lei 14026/2020, o Novo Marco Regulatório do Saneamento, que exige constar nos contratos as metas de cobertura, tanto de água quanto de esgoto. Ou seja, até 2033 nós devemos ter 99% de cobertura de água e 90% de esgoto sanitário.

São esses os termos que têm que constar nos aditivos de contratos, mas tem um problema: o governo não queria só adequar os contratos à nova lei do Marco Legal, ele quer privatizar, algo que a lei não obriga. Então, ele precisa convencer os donos do negócio, que são os 307 prefeitos dos municípios onde a Corsan atua.

Os contratos atuais do programa de saneamento que os municípios têm com a Corsan apresentam uma cláusula sobre a possibilidade de rompimento de contrato caso a "Corsan deixe de fazer parte da administração indireta do estado". Ou seja, se o governo vender a Corsan, ela deixa de ser pública e o prefeito pode usar essa cláusula e romper o contrato com a Corsan.

Ainda, tem uma outra cláusula que fala caso haja esse rompimento de contrato, por este motivo, o prefeito pode ficar com o patrimônio da Companhia no município e pagar da maneira como puder, decidindo por conta própria o que vai fazer com o serviço de saneamento.

:: Corsan tem capacidade financeira para cumprir metas do Marco Legal do Saneamento, diz sindicato ::

Então, o que pode acontecer com essa cláusula: Imagine que tu é um grande investidor da Bolsa, querendo comprar ações da Corsan. Tu compra as ações, mas, nos contratos têm a possibilidade dos prefeitos saírem do sistema e tu não ter mais os ativos que comprou.

Se essa cláusula estiver nos contratos, os prefeitos podem romper com o sistema Corsan e aqueles que vierem a comprar as ações não vão ter de onde tirar o seu lucro. Então, qual é a tentativa desesperada do governo: convencer os prefeitos de que é interessante para o município retirar essas cláusulas do contrato.

O governo bolou, junto com as suas assessorias milionárias, um aditivo contratual, com mudanças no atual contrato, tirando essas cláusulas e liberando a venda da Corsan. Dos 307 municípios, somente 74 assinaram esse termo, lá em dezembro.

Então isso deu um desespero no governo, que bolou um outro aditivo, que foi assinado por mais 32 municípios. Todas aquelas mudanças que foram propostas em dezembro, que foram rejeitadas pela maioria dos prefeitos, foram enxugadas para gerar um contrato mais simples, com as mudanças escondidas nas cláusulas. 

É essa tentativa de mudança que a direção da Corsan e o governo fizeram todo esse esforço junto aos prefeitos. O que temos: de 307 municípios, 74 assinaram em dezembro e 32 assinaram em março. 201 prefeitos não assinaram nada.


Assembleia em frente à sede do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE), em Porto Alegre, aprovou estado de greve / Foto: Jorge Leão

BdF RS - Recentemente, a Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do RS (Agergs) emitiu um parecer que foi considerado "privatista" pelo Sindiágua/RS, explique.

Ferraz - A Agergs emitiu um parecer que atesta a capacidade econômico-financeira da Corsan para cumprir as metas do Marco Legal do Saneamento, ao mesmo tempo que afirma a necessidade de venda de ativos da Companhia.

É interessante esse parecer, pois diz que a Corsan tem capacidade para cumprir as metas, mas condicionado à venda de ações, que possibilitaria à Companhia arrecadar R$ 1 bilhão. Ainda coloca que, não sendo feita a venda de ações, a Companhia não terá condições de cumprir as mesmas metas.

O que chama atenção é que essas metas têm que ser cumpridas até o ano de 2033: a Corsan, em 2020, teve faturamento bruto de R$ 3,2 bilhões. Se uma empresa fatura tudo isso, até 2033 vai faturar cerca de R$ 30 bilhões.

A empresa que vai faturar tudo isso, precisa vender ações para arrecadar R$ 1 bilhão? Essa conta não fecha. Se fosse uma empresa de faturamento baixo, esse bilhão salvaria, mas não é o caso.

A Corsan, em 2020, teve faturamento bruto de R$ 3,2 bilhões. Se uma empresa fatura tudo isso, até 2033 vai faturar cerca de R$ 30 bilhões

BdF RS - O que mais pode ser dito sobre esse documento da Agergs?

Ferraz - Esse documento precisa ser interpretado. Ao mesmo tempo que fala na necessidade de vender ações para arrecadar esse R$ 1 bilhão, a Agergs fala sobre a perda da imunidade tributária.

A Corsan, desde 2019, ganhou na justiça o direito de não pagar imposto de renda e impostos federais, por ser uma empresa pública e lidar com saneamento. Só ano passado, a Corsan deixou de pagar R$ 126 milhões de imposto de renda. É um dinheiro que fica nos cofres da Companhia para investir em saneamento.

Se nós pegarmos esse valor como média, até 2033 teremos aproximadamente R$ 1,5 bilhão que a Corsan pública não pagaria de imposto de renda. Ela ficaria com esses valores para poder fazer as obras.

:: Ato público contra a privatização da água e saneamento reúne milhares em Porto Alegre ::

Se a Corsan vender alguma ação na Bolsa de Valores, ela perde essa condição de imunidade tributária por ser 100% pública. Então, com a privatização, no dia seguinte, a empresa privada que comprar as ações vai pagar imposto de renda. Até a meta para universalizar os serviços, que é 2033, vai ter pago esse R$ 1,5 bilhão.

Agora pensemos: quando essa empresa passar a prestar o serviço e voltar a pagar imposto de renda, ela vai colocar esse valor na tarifa do usuário! Então, manter pública a Corsan é uma vantagem, pois não paga imposto de renda e tem esse valor pra investir em obras, isso são dados da própria Agergs, não é do Sindiágua.

Qual a vantagem em privatizar? eu vendo as ações pra conseguir R$ 1 bilhão, mas pago R$ 1,5 bilhão de imposto de renda. A Corsan não precisa disso pra universalizar o serviço.


Trabalhadores da Corsan de 300 municípios participaram do Ato "RS pela Água"  / Foto: Jorge Leão

BdF RS - Então, qual é a situação atual da privatização da Corsan? Em que ponto estamos?

Ferraz - De 307 municípios, nós temos 74 que assinaram os contratos em dezembro. A Corsan já pode afirmar para os possíveis investidores que, nestes municípios, os prefeitos não podem romper os contratos depois, está garantida a lucratividade dos que vierem à comprar as ações.

Com relação aos 32 municípios que assinaram o contrato em março, a Corsan já não pode dar essa garantia, pois o contrato assinado não tinha esse aspecto explicito no contrato. 

Mas 201 municípios não assinaram nada. Como que o governo vai fazer a venda das ações da Corsan se esses prefeitos todos podem, no dia seguinte, romper o contrato? Então o governo não tem a segurança para fazer isso.

Tanto é verdade, que a oferta inicial de ações que estava prevista para fevereiro teve que ser adiada, e agora estão tentando em julho. A direção da Corsan e o governo não estão seguros, a prova disso é que o presidente da Corsan viajou para Europa e Estados Unidos, tentando arranjar compradores.

Estamos em um cenário de incertezas, provocado pelos "atrapalhos" do governo, que não soube fazer o processo de privatização

Numa oferta inicial de ações tu não precisa ir até o comprador: o dono dá um valor, a Bolsa de Valores se responsabiliza por fazer o processo e os interessados fazem as ofertas. Porque eles estão à busca de compradores? Pois já estão buscando um plano alternativo, que seria um leilão, ao invés do IPO.

Então, nem eles estão certos do que fazer. Há uma grande instabilidade econômica, inclusive causada pela guerra, o mercado financeiro está retraído. Há pressão de uma ala do governo para que o presidente da Corsan viabilize a venda de qualquer maneira, independente se haverá lucro ou prejuízo para o estado e para o cidadão.

Também é uma preocupação do governo a proximidade com o processo eleitoral. O Novo Marco Legal do Saneamento é uma lei que estimula a privatização, beneficia as empresas privadas. A lei anterior visava fortalecer as empresas públicas, então há o medo de que uma mudança no governo federal possa vir a mudar novamente a legislação.

Estamos em um cenário de incertezas, provocado pelos "atrapalhos" do governo, que não soube fazer o processo de privatização, pois tentou casar com o calendário eleitoral do Leite. Dessa forma, chegamos no patamar que temos hoje, há uma grande insegurança dada aos prefeitos. Mesmo os que não assinaram os aditivos, eles têm um contrato vigente que o estado do RS tem o dever de cumprir.

 

 

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko