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Vozes do Semiárido: projeto universitário pretende evitar "histórias únicas" de fome e seca

Iniciativa nasceu na UERN e projeta a criação de um portal de notícias sobre as diversidades da região semiárida

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Projeto de extensão pretende estruturar um portal de notícias específico sobre a diversidade do Semiárido - Divulgação: Vozes do Semiárido

Em 1968, Luiz Gonzaga, ao lado de Luiz Queiroga, compôs a música “Nordeste pra frente”, destacando uma perspectiva de desenvolvimento social que já era comum para as pessoas da região, mas possivelmente desconhecida em boa parte do país.   

Sinhô repórter já que está me entrevistando, vá anotando pra botar no seu jornal, que o Nordeste tá mudado. Publique isso pra ficar documentado.

A preocupação com as narrativas jornalísticas sobre Semiárido [muitas vezes chamado como Sertão ou Nordeste] vão bem além décadas atrás. Em 20 de julho 1878, o jornal carioca “O Besouro” publicou duas fotografias de crianças cearenses subnutridas, com uma ilustração de mão esquelética segurando as imagens. Apesar do tom de denúncia direcionada aos governantes da respectiva época, a narrativa carrega apenas uma abordagem catastrófica definindo o território cearense como uma “infeliz província” e sua população vítima de uma “desgraça”.


Página 121 do jornal “O Besouro”, publicada em 20 de julho de 1878 / Reprodução BNDigital - Biblioteca Nacional

Para o professor de comunicação Esdras Marchezan, da UERN (Universidade Estadual do Rio Grande do Norte), o jornalismo tem um papel fundamental de quebrar o imaginário de histórias únicas sobre o Semiárido. 

"Tanto para relatar essas experiências positivas que nós temos como também para combater um pouco aquela imagem que ainda é forte, principalmente da mídia do do eixo sul sudeste,  do semiárido como lugar de sequidão e pobreza", defende. 

Ou seja, há a necessidade de quebrar uma narrativa secular em que sejam diferenciadas as linhas tênues entre a comoção que desumaniza e a informação que denuncia. Por exemplo, ainda hoje é possível ver o sensacionalismo da terra rachada à prestação de serviços sobre o direito à água, por exemplo.

Nesse sentido, Esdras Marchezan é um dos idealizadores do projeto Vozes do Semiárido, nascido como projeto de extensão da UERN, campus Mossoró (RN), com a perspectiva de se transformar em um portal de conteúdos sobre a região. Através de parcerias, a iniciativa pretende juntar estudantes, pesquisadores e docentes de outras universidades para um parceria ampliar as condições de se contar histórias das diversidades semiáridas.

"A ideia é envolver ouvir várias pessoas que vivem, que conhecem, que trabalham nessa região. Quando a gente fala semiárido ainda muitas pessoas ligam a um ambiente muito rural. Só que não é só isso. A proposta é que se em uma série audiovisual está abordando a situação do campo, em outra a gente pode estar mostrando o aspecto cultural, em outra a gente pode estar falando como a população LGBT lida ou vivencia esse espaço do semiárido", ressalta.

O estudante de jornalismo Danilo Queiroz participa do projeto e destaca os desafios para uma proposta metodológica mais horizontal e humanizada diante das experiências em campo. 

"As vozes têm que ser ouvidas, não apenas coletadas e exibidas. Então, nesse processo de escutar também tem a pergunta: como é que a gente consegue montar um conteúdo interessante para uma população que tem sido tão negligenciada há tanto tempo? Aí a gente vem com essa abertura. A gente se dispõe a ouvir mais, a entender. Um dos comentários que a gente mais ouviu sobre a intenção do Vozes [do Semiárido] é como trazemos a vivência do campo para a tela", salienta. 

Também se preparando para a formação na área jornalística, o estudante Daniel Frota ressalta que o projeto aflorou seu encantamento com o ouvir e contar histórias.

Contar histórias, ouvir histórias, mostrar ao público o que não é visto normalmente é o mais mágico e se desenvolveu muito para mim nesse período, afirma. 


Movimentos populares e especialistas defendem a garantia de direitos e ações governamentais para a chamada Convivência com o Semiárido / Fred Jodão / Arquivo ASA

Para o professor Esdras, que atua ao lado do também docente Fabiano Morais, o projeto ajuda na construção do conhecimento e das experiências por uma formação ainda mais atenta de jornalismo contra imaginários únicos de fome e pobreza para a região. 

"Para que a gente tenha menos episódios de uma cobertura da imprensa equivocada e estereotipada, a gente tem de tocar nesse ponto da formação profissional, da necessidade do cumprimento ético e da empatia com o outro", reforça. 

Quem convive com o Semiárido tem na ponta da língua algumas dissonâncias entre o que há (de conquistas e desafios) e o que se conta sobre a região, além dos impactos que as chamadas histórias únicas de fome e pobreza podem carregar contra a garantia de direitos da população.  

Edição: Douglas Matos