Repensar o modelo

Com Zonas Econômicas Especiais, Venezuela quer superar bloqueio e dependência petroleira

Lei foi aprovada pelo Parlamento e cita modelo chinês como exemplo; projeto é alvo de críticas da oposição de esquerda

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

Ouça o áudio:

Governo espera diversificar setor produtivo e gerar divisas sem depender do petróleo - AFP

Apesar do fim do ciclo hiperinflacionário que durou quatro anos e dos aumentos na produção petroleira, o processo de recuperação econômica na Venezuela, ainda que seja perceptível na vida cotidiana da população, caminha a passos lentos. O país segue com uma das inflações mais altas do mundo - 167%, no índice anual do mês de maio - e ainda não alcançou nem a metade dos níveis de produção de petróleo de uma década atrás.

Na última semana, o Parlamento venezuelano aprovou um projeto que, segundo deputados governistas, deve alavancar a recuperação, gerando empregos e diminuindo os efeitos nocivos do bloqueio econômico imposto por Washington. A lei de Zonas Econômicas Especiais, que contou também com o voto favorável da maioria dos setores de oposição, visa criar espaços com incentivos fiscais para que investidores públicos e privados, nacionais e estrangeiros, desenvolvam projetos em distintas áreas da economia do país. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, o deputado do partido governista PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) e presidente da Comissão de Finanças da Assembleia Nacional, Jesús Faría, afirma que o projeto busca responder a necessidades atuais para conter a crise e aposta que os resultados serão imediatos.

"O primeiro propósito desse projeto é superar a conjuntura de crise, dramaticamente afetada pelo bloqueio econômico. Estamos convencidos de que o início das Zonas Econômicas Especiais vai gerar um efeito imediato em termos de emprego, salário e riqueza ao país", disse.

Citando os modelos da China e do Vietnã como referências, ele defende que a lei vai permitir que o Executivo escolha regiões estratégicas do país e as transforme em uma ZEE. De acordo com o texto aprovado pelo Parlamento, dentro desses territórios, que seriam elencados por facilidades logísticas, produtivas ou por proximidade a regiões de fácil extração de recursos naturais, funcionarão outros regimes econômicos com regras específicas, que podem incluir desde isenção de impostos alfandegários e IVA (Imposto sobre Valor Agregado) sobre bens de capitais, até devolução total ou parcial do imposto de renda de pessoas jurídicas que operem nas zonas.

Ainda segundo a nova legislação, poderão ser criadas Zonas Econômicas Especiais para o fomento de exportações, para substituição de importações e para o desenvolvimento tecnológico. As áreas podem abarcar parques industriais para produção de bens de consumo, desenvolvimento tecnológico militar, produção agrícola e até projetos turísticos. Quanto ao futuro de regiões que já funcionam sob regimes especiais econômicos no país, como a Faixa do Orinoco e a Península de Paraguaná, elas devem ser incorporadas à nova legislação ou desmontadas, por decisão do Executivo.

:: Reabrir fronteiras e devolver Monómeros são temas prioritários com a Venezuela, diz Petro ::

A visão positiva sobre o projeto das ZEE's, entretanto, não é unânime entre setores da esquerda venezuelana. Para o deputado Óscar Figuera, do Partido Comunista da Venezuela (PCV), que votou contra a lei, a aprovação do plano pode trazer riscos para a soberania do país e reduzir os direitos dos trabalhadores para tornar o projeto mais atrativo ao capital privado.

“[A lei] significa uma nova ameaça à soberania nacional porque cria condições para estabelecer áreas sob controle do grande capital transnacional através de regimes especiais, seja no que diz respeito a isenções de impostos ao capital, seja em estabelecer uma flexibilização e desregulação das relações trabalhistas em prejuízo aos trabalhadores”, disse o parlamentar durante a sessão do Parlamento que aprovou a proposta.

Ao Brasil de Fato, o professor de Economia da Universidade Central da Venezuela (UCV), Carlos Mendoza Pottellá, explica que as sanções deixam o país em uma situação vulnerável para negociar com investidores “porque os estadunidenses colocaram os joelhos sobre nosso pescoço”. Ele argumenta, no entanto, que a conjuntura não pode servir de justificativa para a aprovação de medidas que diminuam ou ignorem o interesse nacional.

“Eu entendo as circunstâncias e entendo o desespero pela busca de uma solução, mas sempre temos que observar onde está o interesse nacional e onde está o interesse de alguns setores particulares que vão se beneficiar com isso. Não é delegando soberania ou diminuindo direitos trabalhistas que vamos resolver os problemas”, disse.

:: Delegação dos EUA visita Venezuela pela 2ª vez no ano, e Maduro fala em seguir agenda bilateral :: 

Apesar do texto aprovado apenas citar que as Zonas Econômicas Especiais devem fomentar a “criação de novas fontes de trabalho digno e a geração de riqueza em função da justiça social”, não fica claro se, entre os incentivos oferecidos às empresas que quiserem se instalar em uma dessas zonas, está incluída a diminuição de direitos trabalhistas.

O deputado governista Jesús Faria garante que dentro das ZEEs não funcionará outro regime de trabalho que não seja o previsto pela legislação atual e afirma que o temor de retrocessos nas leis trabalhistas “faz parte de uma campanha para afugentar o investimento estrangeiro no país”. 

Diversificar para sobreviver

Além de ser apresentada pelo governo como uma forma de enfrentar a crise e combater os impactos das sanções econômicas impostas pelos EUA, a lei das Zonas Econômicas Especiais é encarada pelos chavistas como uma oportunidade de diversificar a produção econômica e começar a dar passos para se livrar da característica rentista da economia, que segue tendo no petróleo sua principal fonte de ingressos.

As sanções contra a indústria petroleira venezuelana impostas pela Casa Branca fizeram com que a produção despencasse dos cerca de 3 milhões de barris de petróleo por dia produzidos em 2010 para 500 mil em 2020. A queda fez com que o PIB do país se contraísse em mais de 86% na última década, segundo dados do FMI.


Petróleo da Venezuela S.A. (PDVSA) / Foto: IkerAlex10/Wikimedia

A crise no setor energético reduziu drasticamente o ingresso de divisas, o que, por consequência, retirou poder de compra do Estado. Para um país que importava grande parte dos bens de consumo e financiava essas importações com a renda petroleira, a retração econômica foi severa. 

Em 2021, a produção de petróleo voltou a dar sinais de recuperação. Segundo dados da OPEP, o país fechou o ano passado produzindo mais de 870 mil barris diários e, em maio de 2022, alcançou os 735 mil barris por dia. Caso as sanções sejam suspensas e empresas estrangeiras como a Chevron sejam autorizadas a operar no país novamente, a produção pode chegar a 1 milhão de barris diários.

Entretanto, apesar da recuperação petroleira significar alívios imediatos na economia, há uma percepção entre deputados governistas de que a exploração do recurso não poderá voltar a financiar o Estado da mesma forma que ocorria há décadas. Segundo Faría, a crise agravada pelo bloqueio econômico mostrou ao país a urgência de diversificar a produção e ampliar as fontes de ingresso para que, finalmente, a Venezuela supere o rentismo petroleiro.

"O modelo rentista deformou nossa economia e gerou uma cultura parasitária na qual tudo depende do petróleo. O trabalho, a produção, o investimento passaram a um segundo plano. Isso não é desenvolvimento e, por isso, é fundamental trocarmos o modelo de desenvolvimento econômico. Isso faz parte da estratégia das Zonas Econômicas Especiais. Não é uma solução total para os problemas do país, mas é um instrumento importante", afirmou.

O professor Mendoza Pottellá vai além ao apontar que, apesar de acreditar que o país precise de um projeto que acelere a industrialização e diversifique os setores produtivos, não se pode abrir mão da “defesa dos direitos trabalhistas e da soberania nacional”.

“Nós temos que buscar um desenvolvimento industrial, mas um desenvolvimento que signifique piorar as condições de vida da classe trabalhadora é um desenvolvimento contra a maioria. Um desenvolvimento que signifique piorar a arrecadação fiscal com a qual se sustentam os programas sociais do governo, a educação, a saúde e outras coisas, é algo que vai apenas criar focos isolados de riqueza, porém limitados, que não vão deixar nada para o resto do país”, disse.

Perestroika ou NEP?

A aprovação da lei de Zonas Econômicas Especiais pode ser enxergada como parte de um processo de maior liberalização da economia venezuelana. Desde 2018, o país vem eliminando mecanismos como controle cambial e reduzindo tarifas de importação para estimular o mercado e tentar dirimir os efeitos da crise.

:: Venezuela quer integrar mecanismos financeiros russos para 'driblar o bloqueio', diz chanceler ::

Dentro do governo, o discurso predominante é o de que as decisões não representam uma abdicação de objetivos na estratégia chavista, mas sim fazem parte de uma nova etapa do projeto governista que responde a rearranjos internos e internacionais.

Para críticos como o professor Mendoza Pottellá, as medidas representam um “retrocesso nos princípios socialistas” do governo e pode ser comparado com a perestroika, processo de abertura levado a cabo no final dos anos 1980 por Mikhail Gorbachev e que marcou os últimos anos de existência da União Soviética. “Aqui há um retrocesso, apesar de os símbolos seguirem sendo radicais, a expressão concreta é de retrocesso e de acordos satisfatórios entre setores capitalistas”, afirmou.

O deputado Jesús Faría, que prefere citar o exemplo da NEP (Nova Política Econômica) criada pelo líder bolchevique Vladimir Lênin e que reestruturou a economia soviética permitindo alguma presença do capital privado, afirma que o chavismo atravessa “uma nova fase” em sua estratégia econômica e que não deve abrir mão do “horizonte socialista”.

“Estamos falando de uma nova época de transição ao socialismo e essas mudanças ocorrem, em primeiro lugar, porque as condições internas para o desenvolvimento do nosso projeto político mudaram. O que tem que ficar claro é que isso não significa de maneira nenhuma que vamos entregar o controle da nação e do Estado a nenhum tipo de poder nacional ou estrangeiro. A entidade que dirige esse processo é o Estado e o Estado é conduzido por um governo revolucionário, com um horizonte claramente definido: o socialismo”, concluiu.

Edição: Arturo Hartmann e Sarah Fernandes