Violência

Chacina em Manguinhos: para a população negra, é a morte ou a prisão

Violência racial promovida pelas forças de segurança mostra urgência da desmilitarização das polícias

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Entre 2007 a 2021, foram registradas 593 chacinas em operações policiais em favelas na Região Metropolitana do Rio - Foto: Reprodução TV Globo

Ao menos seis pessoas foram mortas nesta terça-feira (12/7) durante operação policial da tropa de elite militarizada da Polícia Civil – Coordenadoria de Recursos Especiais (Core) – na comunidade de Manguinhos, localizada na Zona Norte do Rio de Janeiro. Outras duas pessoas foram mortas e duas feridas no mesmo dia no Parque Floresta, em Belford Roxo.

Imagens de corpos cobertos de sangue no meio da rua e famílias desesperadas foram divulgadas pelos moradores da comunidade. Apesar de chocantes, essas imagens infelizmente se tornaram cada vez mais presentes na mídia brasileira, que escancaram a violência cotidiana a que os moradores de comunidades são submetidos. A violência racial promovida pela Polícia Civil e por outras corporações policiais mostra a urgência e a necessidade social da desmilitarização das polícias, como o Ponto 10 da Agenda Nacional pelo Desencarceramento nos mostra:

No entanto, necessário firmar que a adoção de medidas de desmilitarização transcende a simples (1) extinção da Polícia Militar e deve abranger também medidas mais amplas de contenção das forças policiais e de desmilitarização da gestão pública, priorizando: (2) a extinção do modus operandi militarizado da Polícia Civil e da Guarda Civil Metropolitana; (3) extinção da Força Nacional de Segurança Pública e vedação à constituição de “tropas de elite” estaduais, inclusive dentro do sistema carcerário e nas instituições para medidas socioeducativas de internação; (4) extinção da Justiça Militar e construção de mecanismos de controle popular agências policiais, como ouvidorias e corregedorias externas, por exemplo; (...) (6) congelamento e gradativa redução dos efetivos policiais, com transposição dos recursos a políticas sociais voltadas à redução de desigualdades; (7) vedação de porte de arma por agentes públicos (incluídos os agentes penitenciários) e agentes de segurança privada, desarmamento gradativo das agências policiais e regulamentação mais clara e restritiva, por meio de normativa federal, do porte e uso de arma de fogo e das denominadas “armas não letais” por agentes policiais; (...) (9) abolição dos chamados “autos de resistência”; (10) independência dos serviços de perícias judiciais; (11) vedação do uso das Forças Armadas em conflitos no campo e na cidade; (12) proibição de testemunho de policiais nas audiências de custódia.

De acordo com o relatório Chacinas Policiais, produzido pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF), em 2022, no período de 2007 a 2021, foram realizadas 17.929 operações policiais em favelas na Região Metropolitana do Rio, das quais 593 terminaram em chacinas, com um total de 2.374 mortos. Isso representa 41% do total de óbitos em operações policiais no período.

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O mês de julho, inclusive, nos faz resgatar a memória das vítimas da “Era das Chacinas”, como ficou conhecida a década de 90 no Rio de Janeiro. Em 26 de julho de 1990, 11 jovens foram assassinados por forças policiais-milicianas na favela do Acari. Em 23 de julho de 1993, oito jovens foram assassinados por forças policiais-milicianas próximo à Igreja da Candelária.

A violência policial é apenas uma das consequências do racismo estrutural inserido na cultura brasileira: em 2019 a população negra e parda, segundo pesquisa do Atlas da Violência divulgada pelo IPEA, representava 77% das vítimas de homicídios, e as chances de um negro ser assassinado é 2,6 vezes superior a de uma pessoa não negra.

No ano de 2021, a taxa de violência letal contra pessoas negras foi 162% maior entre as pessoas não negras. As mulheres negras, ainda segundo a pesquisa, representaram 66% do total das mulheres assassinadas no Brasil; em comparação à taxa de 2,5 para mulheres não negras, a mesma taxa para mulheres negra foi de 4,1, ou seja, o risco de uma mulher negra ser vítima de homicídio é 1,7 vezes maior do que de uma mulher não negra.

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, entre 2013 e 2021, 43.171 pessoas foram mortas em decorrência de intervenções policiais. 84,1% das vítimas eram pessoas negras.

A violência do racismo estrutural também é sentida no cárcere. Dados do Infopen entre o período de julho a dezembro de 2021 apontam que a população negra e parda juntas somavam 68,02% da composição da população no sistema prisional nacional.

O pressuposto para a existência do sistema prisional é a constituição do perfil do criminoso, que por muitas vezes é identificado antes mesmo de se cometer o crime. O racismo, enquanto prática institucional e estrutural do Estado, alimenta a lógica sobre os corpos e o direito à vida da população negra, que carrega o estigma de "perigoso" ou “criminoso”. Assim, à essa população restam apenas duas alternativas: a morte ou a prisão.

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O negro, aos olhos do Estado, deixa de ser um sujeito e se torna uma coisa, distanciando-se assim do seu corpo e alma. Essa impessoalidade é alimentada pelo encarceramento e pelas diversas chacinas que ocorrem todos os anos no território brasileiro, como podemos observar no relato de Graciara Silva, mãe de um dos mortos da Chacina de Manguinhos, que concedeu uma entrevista ao site Vozes das Comunidades.

Em seu relato, Graciara diz que diversas outras mães estão na mesma situação que ela, e aponta que a morte do seu filho de 25 anos é o resultado da criminalização da pobreza que as deixa vulnerável à luta árdua de seu cotidiano.

Assim como Graciara, diversos familiares são obrigados a enterrar seus filhos, sobrinhos e maridos todos os dias, pois o processo de violência racial do Estado desumaniza e apaga os nomes e a identidade daqueles que mais são afetados pela desigualdade racial e social do país, e transforma as mortes e o aprisionamento da população negra em apenas estatísticas e números.

Em uma sociedade criada nas bases do sistema punitivista, o poder sob os corpos negros é pleno e soberano. O corpo negro é o corpo que deve morrer, o corpo que deve ser aprisionado. A engrenagem do genocídio dessa população opera na lógica de fazer e deixar morrer.

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Quando não são alvos do “fazer morrer” dentro das prisões, com celas superlotadas e insalubres, sem material de higiene, roupas, colchões, sofrendo agressões físicas e psicológicas diárias e longe de suas famílias, são mortos dentro de suas casas, no colo de suas mães. Se está no “território inimigo” – aqui sempre uma comunidade, cuja população é majoritariamente negra e pobre – é inimigo.

É uma guerra institucional, um aparato de mortes legitimado pelo Estado. E é ele o responsável por todas as mães que choram em luto por seus filhos, brutalmente assassinados por tiros de fuzil.

*Carolina Dutra Pereira faz parte do setor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional.

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Chagas