Bahia

DIREITOS SEXUAIS

"Impedir que mulheres possam decidir sobre seus corpos é negar cidadania plena", afirma Jalussa

A professora e pesquisadora, Jalussa Arruda, discute sobre direitos sexuais e reprodutivos em entrevista

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Jalussa é professora da Uneb e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM - UFBA) - Cortesia

Nos últimos anos, os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres têm sofrido uma série de ataques de grupos da extrema direita, diminuindo inclusive o acesso das mulheres e meninas a políticas públicas de proteção e prevenção. Nesta entrevista, conversamos sobre o tema com a professora Jalusa Arruda, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), professora da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e pesquisadora associada do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA).

Brasil de Fato Bahia: Jalusa, sobre o que estamos falando quando dizemos direitos reprodutivos das mulheres?

Jalussa Arruda: Bom, direitos reprodutivos dizem respeito ao direito de as pessoas decidirem de forma livre, autônoma e responsável se vão ou não querer ter filhos, quantos filhos vão ter ou não e em qual momento de suas vidas vão ter ou não filhos. Os direitos reprodutivos englobam também o direito a ter informações, a ter conhecimento e acesso a meios, métodos e técnicas para que essa decisão de ter ou não, quando ter ou não, possa ser realizada efetivamente de maneira autônoma. É por isso também que os direitos reprodutivos têm uma relação intrínseca com os direitos sexuais, que é o direito de a gente exercer nossa sexualidade de maneira livre de discriminação e de violência. O que é muito importante falar sobre os direitos reprodutivos e sexuais é que a Conferência Internacional sobre a População em Desenvolvimento das Nações Unidas, realizada no Cairo, em 1994, reconheceu como direitos humanos. E os direitos humanos que dizem respeito ao bem-estar físico, mental, político, econômico, social e, justamente por isso, a sexualidade e a reprodução se tornam dimensões da cidadania e dialogam com os direitos humanos, civis e políticos, econômicos e sociais, sobretudo nesse contexto pós-1994, com a concepção universal e indivisível dos direitos humanos.

Ultimamente, tem se discuto muito sobre o direito ao aborto. Quais são os limites atuais do direito ao aborto no Brasil? E por que esse é considerado um direito tão importante?

É muito importante para a gente discutir aqui que há consequências graves no campo da saúde pública no caso de abortos clandestinos, abortos feitos em más condições e que tem a ver com a mortalidade materna. Então, se nós estamos falando de uma situação que compromete a saúde das mulheres, que tem uma incidência na saúde pública, o Estado precisa prevenir essas situações. E a prevenção, obviamente, não tem absolutamente nada a ver com a criminalização. Os limites atuais para pensar o aborto no Brasil são de diversas ordens. Vamos nos ater aqui a um caminho pra gente poder não se estender muito na nossa conversa. Mas acho que um ponto importante que a gente sempre precisa desconstruir é esse falso dilema ético que existe em torno das discussões sobre o aborto. Essas discussões maniqueístas sobre se é a favor ou contra o aborto. As questões que dizem respeito ao aborto no Brasil hoje nem de longe passam por isso. Esse é um falso dilema que a gente precisa desconstruir, porque não se trata de ser a favor. Nós não somos a favor da interrupção ilegal de uma gravidez, não é isso. Na verdade a nossa discussão passa por querer preservar e garantir a saúde das mulheres e o direito à autonomia e liberdade dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O ponto é esse.

O aborto legal e seguro é fundamental para a preservação da vida das mulheres. É pela vida das mulheres, pelo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, como a gente disse, são dimensões da cidadania. Não permitir que as mulheres possam livremente decidir sobre seus corpos, é negar um elemento fundamental que compõe a cidadania plena. Nós mulheres não podemos dizer que temos direito a uma cidadania plena se é negado a nós o direito de decidir sobre os nossos corpos e sobre como nós vamos exercer e viver os nossos direitos sexuais e reprodutivos. Então, nesse sentido, é fundamental a gente pensar não apenas na discriminalização e na despenalização, mas na legalização ampla do aborto. A criminalização serve tão somente à moralidade patriarcal, e ela expõe as mulheres à morte, principalmente, as mulheres pobres. E principalmente as mulheres negras, que têm um risco de morte por aborto três vezes maior do que as mulheres brancas. A gente não pode desconsiderar que o racismo afeta também a experiência reprodutiva das mulheres. Então, quando a gente fala de aborto — e talvez esse seja um dos principais limites, que tem a ver obviamente com a nossa secularização, com as dificuldades que a gente tem de compreender a laicidade do Estado, como regime jurídico de convivência —, o aborto é uma questão de justiça social, de saúde pública, de equidade social e de direitos humanos. E não basta pra gente a descriminalização e a despenalização do aborto. O aborto precisa ser amplamente legalizado, o que significa afastar o caráter criminoso do aborto, mas não só isso. Também garantir a prática sem quaisquer sanções, garantir o procedimento nos serviços públicos de saúde, garantir às mulheres o acesso ao aborto seguro.

enfrentar essa cruzada ultraconservadora contra os direitos das mulheres, enfrentar a violação sistemática dos direitos das mulheres nos últimos anos, inevitavelmente, é enfrentar Bolsonaro e o bolsonarismo.

Nos últimos anos, nós temos assistido a uma escalada de conservadorismo no país e na condução das políticas públicas. Como isso tem afetado a área do direito reprodutivo e sexual das mulheres?

Acho muito importante essa discussão. E enfrentá-la. E enfrentar essa cruzada ultraconservadora contra os direitos das mulheres, enfrentar a violação sistemática dos direitos das mulheres nos últimos anos, inevitavelmente, é enfrentar Bolsonaro e o bolsonarismo. É vencer Bolsonaro nas urnas e o nas ruas. A gente tem várias dimensões aí. Desde a redução drástica do orçamento de políticas para mulheres no governo Bolsonaro, justamente no momento da pandemia, quando as mulheres sofreram tanto para manter suas famílias; até o baixo nível de execução do orçamento do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, das políticas para mulheres nesse período. A gente tem agora com esse caso do ex-presidente da Caixa Econômica o assédio moral e sexual como uma política de gestão. Enfim, eu poderia ficar aqui a noite inteira, o dia inteiro conversando contigo sobre o quão nocivo é esse governo Bolsonaro e o bolsonarismo para o direito das mulheres. Acho que essa é uma coisa que a gente não pode deixar de dizer. Para nós pensarmos em qualquer coisa diferente do que a gente está vivendo hoje não existe outro caminho, a gente precisa vencer Bolsonaro nas urnas e derrotar o bolsonarismo nas ruas.

Vamos lembrar que há exatamente dois anos atrás, em uma reunião em Genebra, pra votar uma resolução da ONU sobre a discriminação contra a mulher, o Brasil votou junto com Afeganistão, Iraque, Paquistão e Arábia Saudita. O Brasil votou junto com países islâmicos no sentido de tirar a menção à garantia de acesso à educação sexual e reprodutiva. Imagine o que é isso significa! O Brasil concordou com uma proposta do Paquistão de eliminar a educação sexual da resolução da ONU! Imagine quão grave isso é, o impacto que isso tem do ponto de vista da garantia dos direitos das mulheres e das meninas. Um exemplo de como essas políticas públicas conservadoras afetam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres é a perversidade desse manual do Ministério da Saúde publicou recentemente, que incentiva profissionais da saúde a encaminharem para investigação meninas e mulheres vítimas de estupro que tentarem acessar o serviço de aborto legal no país. Diz ainda que todo aborto é crime, imagine, que loucura! Nós já temos a poucos possibilidades de realização do aborto, o aborto legal é realizado em poquíssimas situações. E ainda temos essa restrição do Ministério da Saúde, considerando que o aborto é uma questão de saúde pública. Então, não há como a gente pensar preservação da vida das mulheres e garantia dos direitos das mulheres sob a égide do governo Bolsonaro. E lembrar que não é apenas a figura dos Bolsonaros, mas as lideranças  políticas e religiosas ultraconservadoras que o acompanham. Lembrando que, obviamente, não é toda liderança religiosa que tem postura ultraconservadoras nesse nível. A gente sabe disso. Existem movimentos religiosos que são super importantes, como o Católicas pelo Direito de Decidir, que é um movimento importante não apenas aqui no Brasil, mas de articulação internacional, que tem uma discussão sobre o direito das mulheres, sobre a preservação da vida, o exercício da autonomia e da liberdade das mulheres. Mas, dentro do governo Bolsonaro, no bolsonarismo e essas lideranças políticas e religiosas que aí estão precisam ser derrotadas nas urnas para que a gente possa pensar em algum avanço sobre os direitos sexuais e reprodutivos, porque se isso não acontecer… É algo que eu nem quero imaginar, porque eu não sei o que mais vem por aí, o que mais poderemos sofrer. 

não dá para fazer prevenção à violência sexual sem a gente discutir educação sexual

E qual o impacto da ausência e/ou da dificuldade de acesso a esses serviços na vida das mulheres e meninas?
Penso que um dos impactos mais devastadores tem a ver com a letalidade, né?! E esse governo já demonstrou que é um governo que executa uma política de morte. A gente tem os dados da Covid pra dizer isso, temos aí os dados do feminicídio… Imagine que em um ano de pandemia, em que a gente teve o aumento de casos de violência doméstica contra a mulher, nós tivemos redução nos investimentos no orçamento das políticas para as mulheres, tivemos uma baixa execução do orçamento para as políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres. Então, acho que esse talvez seja um dos mais graves e mais devastadores impactos. Acho que é importante a gente falar também da prevenção e do enfrentamento das violências sexuais contra crianças e adolescentes. Porque pautas conservadoras criam interdições para políticas de prevenção à violência sexual contra criança e adolescente. Porque não dá para fazer prevenção à violência sexual sem a gente discutir educação sexual, sem a gente conversar com os sujeitos que sofrem a violência sobre como eles podem se perceber na violência e o que eles podem fazer, e como a gente pode identificar, enquanto rede de atendimento do sistema de garantia de direitos, casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Então, esse é um impacto muito grave e que tem uma incidência muito séria nos dados sobre a violência contra criança e adolescente no Brasil. Sendo que os dados indicam pra gente — os dados do Disque 100, mas também dos Sistemas de Informação dos serviços de saúde — que violência sexual é uma das principais violências praticadas contra crianças e adolescentes hoje em dia.
 

Edição: Elen Carvalho