Coluna

Pálido consolo

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Pensamos que havíamos saído do mapa da fome em definitivo - Marcello Casal Jr/ Agência Brasil
Não superamos nossa herança racista e escravocrata

Por José Carlos Garcia


O carro passava, enquanto a cena assaltava-me pela janela, de relance. À lata de lixo entreaberta, três pares de mãos entravam e saíam. Três sombras, três fantasmas, três donos daquelas mãos que reviravam seu conteúdo e conversavam entre si, como as weird sisters (irmãs estranhas) de Macbeth, a remexer o caldeirão – mas as bruxas não catavam sobras do passado, antes revelações ao futuro.

Há anos estas cenas pareciam banidas do país, assim como as crianças em malabares de sinal, ou as chusmas a dormir sob marquises. Saímos do Mapa da Fome e acreditamos, algo ingênuos, que para sempre. Os tempos mais recentes, após a deposição inconstitucional e ilegal de uma presidenta eleita, trouxeram de volta os assombros do passado. Contraface dos bruxos que remexem os lixos das instituições e saúdam golpes e torturas, há gente a revirar lixo, a mendigar, a equilibrar-se por trocados em sinais, a dormir sem teto. Também filas para pegar restos de carne e ossos, venda de cabeças de peixe, de pontas de macarrão, de arroz e feijão quebrados, de soro de leite – alimentos descartados pela indústria para o abastecimento regular dos incluídos, agora ofertados a preços módicos ao número crescente de excluídos, prova definitiva e irrefutável de que o empreendedorismo e a livre iniciativa sempre podem converter em lucro a mais torpe miséria.

Em pouco mais de quatro anos formou-se uma multidão de 17 milhões de brasileiros sem ocupação fixa, sem renda adequada, sem condições de pagar por teto e mesa. Diz a ONG Ação da Cidadania Contra a Fome que mais de 33 milhões de pessoas vivem em insegurança alimentar no Brasil, e que apenas 40% das famílias têm acesso a uma alimentação adequada. Isso, em uma das maiores economias do mundo. Um dos maiores produtores de alimento do mundo. Um dos países mais desiguais do mundo.

As respostas de por que um país tão rico vivencia e normaliza uma tal tragédia hão de ser muitas e muito amplas e complexas. Creio que, desde que sinceras, todas gravitarão, direta ou indiretamente, em torno da herança escravocrata e do racismo estrutural. País que mais recebeu africanos escravizados no mundo, essa monstruosa commodity dos tempos coloniais, e último a abolir a escravidão, o Brasil sempre naturalizou a divisão entre trabalho braçal e intelectual, e sempre debochou do primeiro. Que outra sociedade poderia gerar figura tão abjeta quanto o escravo de ganho (escravos urbanos que trabalhavam fora e repassavam parte de seus ganhos a seus donos )?

Todo capitalismo se baseia na infantilização contínua das sociedades, forma única de convencer as turbas ao consumo desenfreado daquilo de que não necessitam. As populações, reduzidas existencialmente à fase egoica dos três anos de idade, querem para si e a todo custo todo tipo de brinquedo, pouco importando os preços, individuais ou sociais, a serem pagos. Os brados da classe média branca contra as políticas de cota são o choro infantil de uma sociedade mantida no jardim da infância de sua existência, incapaz de encarar os espelhos indispensáveis para que possa crescer e, assim, empunhar suas responsabilidades e destinos. O discurso meritocrático é a cereja marrasquino do bolo de desprezo pela história, fingindo exigir dos descendentes de escravizados, que jamais foram considerados parte legítima da sociedade, as igualdades de competição e os desempenhos que as famílias brancas e incluídas sempre tiveram por garantia. Juntos, demanda por meritocracia e latido contra cota são o choro manhoso da criança branca que perdeu seu carrinho.

O trabalho escravo atual ainda é majoritariamente rural, mas ocorre nas grandes cidades brasileiras, como São Paulo ou Rio, em setores como a indústria têxtil, a construção civil e o trabalho doméstico. Enquanto escrevo esta crônica, ouço os episódios finais de um podcast, “A mulher da casa abandonada”, sobre a herdeira de uma rica mansão decaída de São Paulo, acusada de reduzir a condição análoga à escravidão, nos EUA e por mais de vinte anos, uma mulher brasileira. Mulher, brasileira, negra e pobre. Mulheres, brasileiras, negras e pobres são a imensa maioria das pessoas em trabalho forçado doméstico urbano no país. Mas, diz o muxoxo da classe média, isso nada tem a ver com herança escravocrata e racismo estrutural. Elas não são empregadas porque são da família. Da família de bem. Quem sabe, parapraxia freudiana, por “ser da família” não queiram dizer pertencimento, mas propriedade: são da família, como a casa do papai, ou o broche da vovó, são bem de família da família de bem.

Repasso mentalmente a cena inaugural deste texto. Penso que aquelas weird sisters são, de fato, três brothers, três jovens homens que conversavam entre si animadamente, que sorriam. Não pareciam catar ao lixo restos de comida. Catavam, suponho, material reciclável. Que pálido consolo saber que suas mãos não iriam diretamente do lixo à boca para comer, que antes passariam pelas cédulas poucas obtidas na troca do material reciclável. Poderiam, finalmente, exercer sua liberdade e, repletos de alegria, comprar o soro de leite, ou a cabeça de peixe, ou os grãos quebrados de feijão que a classe média branca não quis. E que as sobras do passado que buscavam ao lixo eram úteis à revelação de um futuro ecologicamente sustentável. Claro que tudo seria mais fácil se as famílias de bem da classe média branca separassem lixo orgânico de material reciclável – mas para quê o fazer, se há tantas mãos disponíveis ao serviço malcheiroso?

O consolo pode ser pálido, não a pele daquelas mãos.

Edição: Rodrigo Durão Coelho