BdF Entrevista

"Bolsonaro não usa os militares, os generais é que usam o capitão", diz Rodrigo Vianna

Jornalista que lançou livro sobre a história recente do Brasil analisa o contexto eleitoral e chances de um golpe

Ouça o áudio:

Rodrigo Vianna é jornalista desde 1990. Durante sua trajetória, já passou pela Folha de S. Paulo, TV Cultura, Globo e Record - Willians Campos
São textos escritos no calor da hora, que começam na campanha de 2010, que é o auge do lulismo

"Uma história incrível, uma travessia, do auge do otimisto para essa tragédia social e econômica em que estamos." É assim que o jornalista e historiador Rodrigo Vianna descreve o período político brasileiro de 2010 até os dias de hoje, abarcado em um compilado de textos curtos escritos "no calor da hora" e que compõem seu livro recém lançado: De Lula a Bolsonaro – combates na Internet (Editora Kotte).

Continua após publicidade

Em conversa com o jornalista José Eduardo Bernardes no BdF Entrevista, Vianna avalia o papel dos grandes veículos de comunicação - entendidos por ele como "golpistas" - em eventos políticos recentes e em um contexto de enfraquecimento da concentração midiática por conta da internet.

Rodrigo Vianna já trabalhou na rede Globo, na rede Record, na Folha de S. Paulo e na TV Cultura, e foi vencedor do Prêmio Vladimir Herzog. Atualmente integra a direção do Centro de Estudos Barão de Itararé, faz o programa semanal Tempero da Notícia no Brasil de Fato e é colunista do Brasil 247.

Na entrevista, Rodrigo Vianna tratou ainda do atual momento pré-eleitoral no país. Comentou o que considera uma tentativa do PT, simbolizada na chapa Lula-Alckmin, de "trazer para perto setores da burguesia nacional" e explicou porque acredita que não será fácil a vitória eleitoral de Fernando Haddad (PT) para o governo paulista.

Afirmou ainda que tudo leva a crer que, a despeito das ameaças, Bolsonaro não tem força interna ou internacional para se manter no poder por meio de um golpe. "Mas o momento é perigoso", ponderou, "porque ele está lutando pela sobrevivência dele e dos três filhos, todos enrolados com esquema de corrupção. Se as coisas voltarem ao normal, todos podem terminar a vida em Bangu".

Confira a entrevista: 

Brasil de Fato: Vamos começar falando do livro que você está lançando. É uma coletânea de textos escritos no seu blog, O Escrevinhador, e em outros espaços, como o Brasil 247, né?

Rodrigo Vianna: Isso, é um pouco mais do que uma coletânea, porque é uma seleção de textos que eu cortei, limpei. O interessante é isso, são textos escritos no calor da hora, então começa na campanha de 2010, que é o auge do lulismo, quando Lula consegue eleger a Dilma.

O livro abre com cinco textos que eu chamo de linhas mestras, e aí não são de ordem cronológica, mas ideias gerais que estão presentes na minha escrita. O papel dos meios de comunicação nessa derrocada do Brasil, principalmente a Globo. No golpe de 2016, nas jornadas de junho de 2013 quando viram da esquerda para a direita.

Também a questão do "lacerdismo", como eu chamo. Quer dizer, a direita brasileira - o PSDB e outros - retomam o fraseado de Carlos Lacerda, lá atrás, da UDN, de que "o maior mal do Brasil é a corrupção" e, com isso, apagam a questão da desigualdade e outros temas sociais.

Então abro com cinco textos mais gerais e depois vem ordem a cronológica: do auge do lulismo até a derrocada do Brasil, com a ameaça autoritária de Jair Bolsonaro. Pode ser lido em ordens variadas, são textos curtos, como se fossem pequenos contos, que ajudam a contar essa história do Brasil. Uma história incrível, uma travessia, do auge do otimismo para essa tragédia social e econômica em que estamos.  

No livro você fala também como o trabalhismo do PT tentou se encontrar com a burguesia nacional e como esse encontro, em algum momento, ruiu. O cenário que se desenha agora, em partes, é similar. Mais uma vez Lula tenta se encontrar com a burguesia nacional, trazendo o Alckmin para ser vice, num momento em que o país passa por uma de suas maiores crises políticas, econômicas e sociais. O caminho pode ser diferente dessa vez?

Eu acho que é outro momento. Eu trato no livro também, está até na contracapa, nas fotografias que eu escolhi, tem foto do Getúlio, do Jango, do Brizola, da Dilma, e aquele momento sintomático: o Lula repetindo aquele gesto do Vargas, manchando a mão no petróleo. Aquela foto clássica.

Acho que a Dilma é o elo entre essas duas tradições... O Lula, que era um crítico do trabalhismo histórico de Getúlio e Jango, o trabalhismo pré-1964, o Lula de alguma maneira se reencontra com essa ideia. De reconstruir um Estado nacional, a partir das riquezas nacionais, a partir do petróleo. Assim com o Getúlio centrou o projeto dele na Petrobras, na construção das estatais, o Lula centrou no pré-sal.

E a Dilma veio do trabalhismo. Ela foi guerrilheira em organizações de esquerda contra a ditadura, foi presa, torturada e, quando acaba a ditadura, ela se filia ao PDT de Brizola. Então ela tem essa tradição da construção do Estado nacional e representa isso dentro do projeto Lula.

Não estou dizendo que Lula e Vargas sejam a mesma coisa. Seria um anacronismo absurdo. Eu digo que nessa questão da construção do Estado, tem um fio de continuidade que a gente pode observar.

Eu acho que tem sim essa perspectiva do PT de mais uma vez fazer essa aliança, trazer para perto setores da burguesia nacional que possam acreditar numa retomada no projeto de desenvolvimento. Isso está na sintaxe, no discurso de Lula nesse momento, ainda mais com Alckmin de vice.

Num momento que a gente sabe que isso não deu muito certo, que teve suas questões. Mas é isso, talvez o momento do país peça de novo essa tentativa. No livro você também traz uma série de relatos pessoais. Leituras, expressões artísticas, até o gol do Corinthians em Presidente Prudente. A gente sabe que tudo é político, mas você tem vontade de fazer um livro só com crônicas do cotidiano?  

Três quartos do livro são crônicas políticas, de Lula, Bolsonaro, que tem todos esses temas que conversamos e também a questão da comunicação. E o quarto final são as crônicas mais pessoais. Até pensei "ah, talvez devesse ter deixado para outro livro", mas achei que a hora de publicar é agora. Mas modéstia à parte, acho que tenho uma coisa de crônica que talvez eu devesse desenvolver um pouco mais. Tenho algumas escritas. Tenho vontade sim.

Outro tema que você traz no livro é sobre como nasceram os blogs progressistas, apelidados por José Serra de "blogs sujos". Antes disso, você já havia transitado por diversos veículos de mídia. Você acredita que, com a internet consolidada como o principal espaço de debate público hoje, a crise da imprensa tende a aumentar?

Eu não sei se é a crise da imprensa ou a crise da imprensa tal qual nós a conhecemos até então. É a crise da imprensa familiar, do que o Paulo Henrique Amorim chamava de PIG, o Partido da Imprensa Golpista. E não é exagero dizer que ela é golpista, ela pregou o golpe e a derrubada de Jango em 1964, apoiou a ditadura, apoiou o golpe contra a Dilma.

Essa imprensa familiar, de cinco ou seis famílias que mandavam na comunicação do Brasil, essa está em crise. Por vários motivos. Por ter feito uma aposta mais uma vez errada na política e pelas questões tecnológicas. Uma imprensa que ficou presa no final do século 20, começo do século 21.

Eu diria com exceção da família Marinho, que tem a Globo ainda como sua joia da coroa e está fazendo a transição para o streaming. E a família Frias, que fez de maneira razoavelmente bem sucedida a sua transição para o UOL.

Mas mesmo essas famílias, quando a gente observa o poder que tinham na época da imprensa escrita e agora, elas são importantes meios de comunicação na internet, mas não têm o mesmo peso. Se você olha a quantidade de visualizações de vídeos do UOL e compara com alguns vídeos da imprensa progressista, é do mesmo tamanho. Claro que elas têm capital, mas não tem mais o domínio da pauta da comunicação brasileira.

Mas vamos prestar atenção, isso pode ser uma janela, que não vai durar tanto tempo. Porque rapidamente as corporações, o capital se organiza. Muda a tecnologia, ele se reorganiza e concentra de novo.

O tema da democratização da mídia, que foi pautado pelo ex-presidente Lula no começo da pré-campanha, também é um tema que pode ajudar a equilibrar isso, se for adiante?

Acho difícil passar, porque precisa passar pelo Congresso Nacional. Quando se falava de regulamentação de comunicação em 2009, 2010, lá no governo Lula, o quadro era totalmente diferente. Naquela época, regulamentar comunicação era principalmente rádio e TV. Agora, é regulamentar como vai se dar relação da sociedade e do Estado brasileiro com as grandes plataformas internacionais. Youtube, Google. Precisa haver uma regulamentação.

Tem um texto interessante também sobre a TV Cultura, onde você trabalhou. Você conta alguns casos que viveu e como o PSDB foi, de alguma forma, asfixiando a emissora. Agora, quase 30 anos depois, esse ano pode marcar a primeira derrota dos tucanos em São Paulo. Como você vê as possibilidades do Fernando Haddad em São Paulo e também o desafio de governar um estado que tem o tamanho de um país?

Seria uma mudança fundamental. São Paulo é o núcleo do capitalismo no Brasil. Deixou de ser do capitalismo industrial e passou a ser do capitalismo de serviços e do agronegócio. Você vai para o interior de São Paulo, São José do Rio Preto, é impressionante. A tecnologia a serviço do agro.

Eu trabalhei na TV Cultura na época pré-PSDB, quem estava lá era o PMDB do Quércia, do Fleury. E olha, por incrível que pareça, o Fleury não usava a TV Cultura, eu sou testemunha disso. O presidente da TV Cultura era o Roberto Muylaert e ele e a Beth Carmona, que era diretora de programação, os dois super criativos, davam liberdade para as coisas acontecerem.

Naquela época se fez Castelo Rá Tim Bum, o X-Tudo, programação infantil de qualidade, um jornalismo interessante. Muitos programas estão aí até hoje. Quando entra o Mário Covas em 1994, aí é um corte de verbas e a TV Cultura passa a viver com dificuldades. Haveria espaço para uma TV pública de qualidade no Brasil. E a TV Cultura já teve esse papel.

Acho que não vai ser fácil o Haddad ganhar em São Paulo. Vamos ficar de olho no Rodrigo Garcia. Tem o Haddad como candidato principal, o Tarcísio de Freitas que é o candidato do Bolsonaro e o Rodrigo, candidato e atual governador, pouco conhecido ainda, mas que pode mobilizar o sentimento antipetista moderado. Então o Haddad vai ter dificuldades para enfrentar o Rodrigo Garcia, eu imagino, e o Garcia tem o apoio de prefeitos por todo o interior paulista.

É, o Rodrigo tem a máquina pública e a caneta na mão, né? No teu programa no Brasil de Fato, o Tempero da Notícia, você faz um apanhado dos principais fatos da semana. Uma coisa interessante de ver ali é como o Bolsonaro e a sua família vão cada vez mais se enveredando pelos escândalos de corrupção, como a economia e a crise política vão se avolumando. Como o Brasil chega para esse momento de eleição? 

Chega com a economia destroçada, a sociedade dividida, uma parte da sociedade deprimida, econômica e psicologicamente. Chega com a democracia sob ameaça por parte do Bolsonaro e por parte dos militares. Faço questão de dizer isso: não vamos cair no discurso de que o Bolsonaro usa os militares. Não, os generais é que usam o capitão.

Essa turma de generais formada nos anos 1970 na Academia das Agulhas Negras fez do Bolsonaro um projeto de reocupação do Estado brasileiro. Ajudaram a produzir a crise de 2016 e a prisão do Lula em 2018: só aconteceu porque teve Lava Jato e porque os generais emparedaram o Supremo [Tribunal Federal]. Lembra do tuíte do General Vilas Boas, que na véspera do Supremo julgar se o Lula poderia ou não ser candidato, fez uma ameaça? Lida pelo Bonner no Jornal Nacional.

O Brasil chega nesse momento com risco. O Bolsonaro falando de golpe. Tudo leva a crer que ele não tem força nem internamente nem internacionalmente para um golpe, mas é um momento perigoso. Ele é capaz de qualquer coisa. Porque ele está lutando pela sobrevivência dele e dos três filhos, todos enrolados com esquema de corrupção. Se as coisas voltarem ao normal, todos podem terminar a vida em Bangu.

Você esteve na Bienal do livro no começo de julho. O mercado editorial teve um crescimento durante a pandemia. Um sinal de que de repente a quarentena tenha feito as pessoas tomarem gosto, de novo, pela leitura. Como você tem visto esse mercado editorial onde muitos jornalistas têm aproveitado, também, para levar trabalhos como o teu, trabalhos do cotidiano, que ficam como uma memória do nosso tempo?

É curioso, porque são textos que escrevi na internet, mas fiz questão de transformar numa obra que fique. Porque a internet é um mundo: está tudo lá, mas ao mesmo não está. É como diz um amigo, "muitas vozes falam, mas poucas são ouvidas". Muita coisa se perde, vira uma poeira cósmica nas nuvens da informação. A gente tem a impressão que um livro ajuda a dar uma perenidade, uma permanência para os textos que escolhemos.

A pandemia acho que por um lado favoreceu isso, todo mundo indicando livros, séries, filmes. Os livros acho que sofrem um pouco, porque temos a competição disso aqui [ele levanta o celular].

A leitura, o romance, exige que você mergulhe naquele universo. Então o mundo atual não favorece muito esse mergulho, o isolamento necessário para que isso aconteça. A minha dúvida é: será que o pessoal vai ler o que a gente escreve? Mas é isso, aí pretendo rodar o Brasil com lançamentos.

Edição: Nicolau Soares