POLÍTICA

Organização popular, neoliberalismo e extrema direita: o que está em jogo nestas eleições

É preciso lidar com uma dupla ameaça: do fascismo e do neoliberalismo

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Façamos um esforço para que o Brasil saia do pesadelo da extrema direita - Ricardo Stuckert

A organização e a mobilização popular, por meio dos Comitês Populares de Luta, são a grande promessa, o grande diferencial em relação às campanhas e aos governos petistas anteriores. São também a melhor opção para enfrentar a intimidação fascista e para que a esquerda entre fortalecida na aliança com a direita não bolsonarista - aliança perigosa, porém, necessária para a campanha, a posse e a governabilidade de Luiz Inácio Lula da Silva.

Pois a escalada recente de violência política da extrema direita não deixa dúvidas: como advertiu o sociólogo Marcos Nobre em entrevista ao canal digital DW Brasil dias atrás, “o bolsonarismo não acabará com a eventual derrota eleitoral de Bolsonaro”. Se Luiz Inácio Lula da Silva mantiver seu favoritismo, for eleito presidente e tomar posse em janeiro de 2023, derrotando não só uma campanha eleitoral desonesta do atual presidente, mas suas inclinações golpistas , mesmo assim, o ambiente político continuará tumultuado. Pois ao mesmo tempo em que terá o desafio de reconstruir o país, Lula enfrentará, como ressalta Nobre, uma oposição desleal e antidemocrática por parte da extrema direita. 

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Como desarmar essa bomba? A ilusão maior, afirma Nobre, é achar que dá para voltar ao que era antes de 2013: “não dá, mudaram as condições do país, teve um processo de autodestruição muito pesado”. Como enfrentar, então, a extrema direita sem que seja possível repetir o esquema político que Lula e o PT operaram anteriormente? Nobre dá a pista, ao comentar a aliança entre Lula e Alckmin. O sentido dessa chapa “é o de uma frente ampla contra o autoritarismo. Isso é o decisivo nessa chapa. Diante da ameaça autoritária, é necessário construir uma frente ampla, não só para ganhar a eleição, para o futuro.” Realmente, uma frente ampla contra o autoritarismo é necessária, e a aliança com parte da direita que a chapa com Alckmin sinaliza é, na conjuntura atual, inevitável e, ao mesmo tempo, perigosa. 

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Inevitável porque a campanha de 2018 nos lembra: as esquerdas, mesmo unidas,  não vencem a eleição sozinhas, assim como não governam. Ainda que Lula seja um candidato com mais apelo popular que o esforçado e preparado Fernando Haddad, ainda que o antipetismo, embora continue relevante, tenha diminuído, ainda assim, se houvesse, como em 2018, uma aglutinação total de todas as forças que não são de esquerda contra a candidatura petista, esta se inviabilizaria. A esquerda brasileira é expressiva, e está longe de “morrer”, como tanto se previu nos últimos tempos – mais um caso de “pensamento desejoso” que de análise dos fatos. A esquerda, contudo, não tem maioria na sociedade brasileira, muito menos no Congresso Nacional, devido às particularidades do nosso sistema político-partidário.

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Aliança perigosa, entretanto. Não se pode esquecer que a extrema direita cresceu e se estabeleceu com a ajuda dessa direita neoliberal, não necessariamente bolsonarista, mas que, a partir do governo Dilma, aliou-se ao que havia de pior e mais retrógrado no país. Fez isso em nome do objetivo estratégico de desalojar o PT do poder, insuflando ou, no mínimo, sendo conivente com a fascistização de parte da sociedade, com a distorção e degradação das funções do Judiciário representadas pela Lava Jato ². 

Parte dessa direita neoliberal arrependeu-se do apoio à extrema direita. Outra parte – como o PSDB, sua grande expressão político-partidária – foi engolida pela nova ordem de democracia rarefeita que ajudou a criar. Há os que ainda não se decidiram entre o atual e o antigo presidente da república, e, finalmente, os que seguem preferindo o atual. Pois este, embora desagrade pela enorme instabilidade que causa ao ambiente sociopolítico e, portanto, econômico, traz-lhes algo precioso, que lhes falta: a capacidade de legitimar, perante setores expressivos da sociedade, incluindo parte dos mais carentes, um programa concentrador de renda como o neoliberalismo. 

O namoro do ex-capitão do exército com o neoliberalismo é de pura conveniência. Se esse namoro tem balançado, é por obra do ex-capitão, que opta por não arredar o pé do radicalismo social e cultural retrógrado, do discurso de ódio e de guerra, para fidelizar sua base e mantê-la mobilizada para a “batalha”³.

Condição para frente ampla é não abandonar pautas de esquerda

É preciso lembrar esses fatos, não para negar a inevitável frente ampla contra o fascismo, mas participar dela com muito cuidado, sob a condição inegociável de que as pautas da esquerda não sejam abandonadas.

O perigo, portanto, não vem somente da extrema direita, mas também do neoliberalismo. O neoliberalismo pode exercer uma pressão intensa para que o governo Lula não contrarie seus interesses, pode ter um representante perfeito no vice-presidente Geraldo Alckmin caso Lula venha a faltar, e pode, ainda, impor algo como o “semipresidencialismo” aventado por Arthur Lira, providência que, na prática, esvaziaria a presidência da República – não surpreenderia se as forças neoliberais tentassem este ou outro tipo de “golpe suave”, a ser implantado em eventual conluio envolvendo o Legislativo e o sempre elitista e conservador, salvo raras e honrosas exceções, Poder Judiciário.

Diante de tantos perigos, de uma extrema direita fanática, onde pululam lunáticos agressivos como o assassino do petista Marcelo Arruda, e de uma direita não bolsonarista dúbia, o que fazer? Como pôr em prática o que Nobre, corretamente, aponta, como o diferencial necessário de um novo governo Lula em relação à experiência anterior: “tem de haver claramente o enfrentamento de problemas que o PT não enfrentou quando estava no poder”? Como efetivar isso se realmente as condições pioraram, e  impossibilitam a reedição dos esquemas políticos do governo Lula? 

A resposta é o fortalecimento da organização e mobilização popular e das estratégias de comunicação da esquerda. Não se entra numa aliança perigosa como essa, com a direita neoliberal, e não se enfrenta uma extrema direita disposta a tudo, sem se fortalecer internamente.

Comitês Populares de Luta

Na questão da organização e mobilização popular, a melhor novidade e promessa que surgiu foram os Comitês Populares de Luta. Espaços abertos de organização e de ação política voluntária, os Comitês Populares de Luta têm como objetivo agregar pessoas na defesa da democratização do país e na resistência ao neoliberalismo e à extrema direita. 

Embora a defesa da candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva seja um norte para os Comitês, as pessoas que fazem parte deles não precisam, necessariamente, ser filiados ou militantes do PT, e a ideia é que a atuação dos Comitês não se esgote na eleição e posse de Lula, que eles funcionem como uma referência da organização popular de base – tradição importante na formação histórica do PT que se busca recuperar – para um eventual governo Lula que, já vimos, terá desafios imensos.  

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Quem quiser organizar ou fazer parte de um Comitê pode se aglutinar, presencial ou virtualmente, de diversas maneiras, nos espaços de estudo ou de trabalho, em igrejas, em vizinhanças ou grupos de amigos, em mandatos ou pré-candidaturas. As ações também podem ser as mais variadas. O importante é a organização e o ativismo políticos, sem esquecer o contato em rede com outros Comitês.

A melhor novidade e promessa que surgiu foram os Comitês Populares de Luta

Há quem considere que esse esforço de mobilização popular de base prejudicaria a aliança com a direita não bolsonarista, a qual poderia se alarmar com esse fortalecimento da esquerda. Há que se ter em mente, quanto a isso, duas coisas: 1) a aliança da esquerda com essas forças não é um “casamento” feito para durar, mas um encontro conjuntural e transitório, a partir do objetivo comum de neutralizar e minguar o máximo possível o potencial anticivilizatório da extrema direita; 2) nesse encontro de conveniência, a esquerda não pode abrir mão de sua força, sob pena de entrar num acordo como a parte mais fraca, que mais tem de ceder, o ideal é uma paridade de recursos que lhe dê condições de negociar dignamente os pontos em que pode transigir e os que não. 

Ou seja, a organização e mobilização popular em núcleos de base deveria ser vista não como ameaça, mas como garantia e condição à aliança com a direita não extremista.

Comunicação social

E pode ajudar, inclusive, na outra providência fundamental para viabilizar a eleição, a posse e a governabilidade de Lula: o estabelecimento de um sistema robusto de comunicação social, por meio das redes formadas pelos Comitês. A comunicação é um elemento constitutivo da política moderna, e a fraqueza do PT, e das esquerdas em geral, nesse campo é uma das explicações (obviamente não a única) para o golpe e o retrocesso político que assolam o país desde 2016. 

A eleição deste ano é a mais importante dos últimos tempos

Num país em que a grande mídia, concentrada em mãos de poucas famílias e grupos econômicos de elite, é basicamente conservadora e em que a extrema direita tem nas redes sociais um veículo crucial de um sistema de desinformação e incitação ao ódio, a batalha da comunicação não pode continuar a ser tão desfavorável às esquerdas. Os Comitês podem contribuir também nesse campo, não só “correndo atrás”, desmascarando as mentiras das redes sociais e da grande mídia, mas inclusive pautando a própria discussão política. 

A eleição deste ano é a mais importante dos últimos tempos. Mais que mera escolha política, é uma encruzilhada entre o início da recuperação do país e o aprofundamento da selvageria. O atual presidente é rejeitado por 60% da população, segundo pesquisas. A imensa maioria dessas pessoas não acredita, ou não quer acreditar, ou não gosta sequer de pensar, que o pior presidente da história do país continuará no cargo ano que vem. Mas nem todos, até agora, têm se mobilizado para evitar essa tragédia. Há um perigoso descompasso entre o desejo e a esperança de livrar-nos dele e o ativismo crucial para que isso ocorra. 

É compreensível. Para começar, muita gente pensa que, sozinha, não faz diferença. Realmente não, mas se todos pensassem assim, estaríamos perdidos. Daí a necessidade de nos unirmos, com quem estiver a nosso alcance. 

Além disso, o desânimo com tanta coisa ruim nos desmobiliza, sem dúvida. Mas a luta por um mundo e um país melhores é sem fim, nunca seremos plenamente derrotados e provavelmente nunca triunfaremos absolutamente. As conjunturas políticas sempre mudam, nunca permanecem favoráveis ou desfavoráveis. 

Finalmente, muitos se intimidam com a violência e estupidez dos extremistas. É exatamente o objetivo sórdido deles, que não podemos lhes entregar. O momento requer coragem de cada um de nós. E cautela. É possível, sim, ter coragem e cautela ao mesmo tempo! Coragem para não nos calarmos, não nos fecharmos em nós mesmos, não fazer o jogo dos fascistas, e cautela para nos expressarmos nas mais variadas formas, desde presenciais até digitais. 

Façamos um esforço para que o Brasil saia do pesadelo da extrema direita, derrotando sua campanha eleitoral suja, suas tendências golpistas e seu boicote a um governo Lula. O mínimo que cada um possa dar já é válido, a colaboração de todos é fundamental.

 

*Rubens Goyatá Campante é pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (CERBRAS) e criador do podcast Prosa com o Goyatá.

**Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
 

NOTAS

1. Os principais discursos do golpismo do atual presidente são a contestação das pesquisas eleitorais e do sistema de votação por meio das urnas eletrônicas. Se a extrema direita não acreditasse nas pesquisas eleitorais que dão vantagem a Luiz Inácio Lula da Silva não teria manobrado o Congresso para votar, a dois meses das eleições,  uma emenda inconstitucional que permite ao governo gastos eleitorais de 41 bilhões – gastos que, obviamente, não resolverão a penúria do povo brasileiro e que acabam no fim do ano, tão logo terminem as eleições, verdadeiro estelionato eleitoral.  Já a acusação de fraude nas eleições segue o figurino de outro subversivo da democracia, Donald Trump. Sem apresentar as mínimas evidências concretas, tanto o norte-americano quanto o brasileiro atacam diretamente os pilares da democracia ao contestarem o voto popular. A preocupante diferença é que, lá, os militares não embarcaram nessa aventura autoritária, como aqui. Uma vitória ampla de Lula, já no primeiro turno das eleições, seria importante para desmobilizar esses truques desleais do fascismo.

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2. No atual governo do ex-capitão expulso do exército, o Judiciário tem sido um alvo constante, pois tem se constituído num contraponto às tendências autoritárias e destrutivas do Executivo Federal. Cabe a nós, neste exato momento, sustentarmos o Judiciário e o STF sempre que resista ao arbítrio. Mas não nos iludamos: este poder continua predominantemente elitista, e continua a dispor de amplos poderes políticos.

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3. Essa postura tem a ver com o tipo de liderança exercida pelo atual presidente. Ele conseguiu simbolizar, na sua pessoa, o autoritarismo brasileiro. Se a esquerda, como dissemos acima, é expressiva no Brasil, o autoritarismo de direita também o é – como poderia ser diferente em um país que cresceu sob a escravidão, a invasão e conquista de territórios de outros povos, a predação da natureza, o patrimonialismo, a desigualdade e o patriarcalismo? Dada nossa formação, o surpreendente talvez não seja os valores da desigualdade e do autoritarismo terem tantos adeptos, mas o fato de não terem mais ainda, de o pensamento democrático ter seu espaço. O ex-capitão expulso do exército expressa e reforça esse lado horroroso de nossa formação através de uma ligação basicamente emocional com os seguidores. Max Weber falava de um tipo de liderança – e um tipo de dominação política – estruturada em cima do que chamava “carisma”. Não há qualquer conotação positiva, elogiosa, no termo, é uma palavra descritiva, neutra, que expressa uma relação entre líder e liderados de caráter emotivo e não racional. Além da racionalidade, o grande inimigo do “carisma”, segundo Weber, é a rotina, a paz. A dinâmica carismática, nesse sentido weberiano, é sempre não quotidiana, repele praxes como a da administração pública, insufla os seguidores para um conflito ‘inescapável’ entre o “bem” e o “mal”, repudia a tranquilidade e a previsibilidade.  Uma dinâmica bem eficiente para destruir, e péssima para construir. Para que se torne uma força construtiva, o carisma, segundo Weber, tem de passar por uma transformação que o desfigura: a “rotinização do carisma” – não combinam o carisma e a rotina, seja política, administrativa, social etc. Costuma ser, essa dinâmica da relação carismática, historicamente transitória, seja porque as “qualidades” pessoais do líder têm de ser recorrentemente provadas, e de forma afetiva, seja porque as pessoas vão se cansando de tantos sobressaltos e passam a demandar mais estabilidade. Os “momentos” históricos de irrupção desestabilizadora das lideranças carismáticas são breves – mas breves em termos da escala de tempo histórica, escala ampla, na qual “brevidade” pode significar uns bons anos. Um bom exemplo histórico de relação “carismática” entre líder e liderados foi aquela entre Adolf Hitler (que sugestivamente adotou o título de Führer – líder, em alemão) e seus milhões de seguidores nazistas. Uma relação fortemente emotiva e irracional, alimentada pela agressividade extrema contra inimigos que deveriam ser pura e simplesmente destruídos, por um eficiente esquema de propaganda e manipulação ideológica e pelo lastro nos elementos mais autoritários e sombrios da formação nacional alemã – formação que tinha elementos democráticos também, mas que naquela conjuntura achavam-se eclipsados. No Brasil, o ex-capitão considera que a manutenção, por meio de um forte esquema comunicativo calcado na mentira e na agressão, desse vínculo emocional com sua base fanática é mais importante até que o aumento numérico dessa base de apoiadores, se para isso tiver de moderar seu discurso.
 

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Wallace Oliveira