Violência no campo

Após 12 anos, último réu acusado pelo assassinato de Zé Maria do Tomé vai a juri popular

Agricultor e ambientalista denunciava o impacto da pulverização aérea de agrotóxicos nas comunidades da Chapada do Apodi

Brasil de Fato | Limoeiro do Norte (CE) |

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Há 12 anos família do ambientalista Zé Maria do tomé segue esperando por justiça. Júri do único réu de restou está marcado para 6 de setembro. - Foto: Melquíades Júnior

Dentre tantas ameaças que impactam diretamente a vida dos povos no campo está a pulverização aérea de agrotóxicos, responsável por despejar grandes quantidades de veneno nas lavouras, contaminando o solo e água, assim como também as pessoas que estiverem no caminho da chuva tóxica. A luta contra o problema vem de longe, no Ceará, na Chapada do Apodi. Lá, há doze anos os conflitos por terra e contra a pulverização aérea culminaram no assassinato de Zé Maria do Tomé, liderança comunitária que denunciava os graves problemas ocasionados pela chegada de grandes empresas de fruticultura à região.

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"Foi um choque, né? Um abalo muito grande", relembra a filha de Zé Maria, Márcia Xavier, que relata ainda o contexto de ameaças em que o pai vivia:  "eu na época estudava e lembro que uma semana antes, quando ele ia me deixar de moto de madrugada para pegar o ônibus, ele disse assim 'Marcinha, todo mundo sabe esse percurso que eu faço com você, se uma pessoa vier fazer alguma coisa comigo nessa estrada estando só nós dois, e você estiver na garupa da moto, vão fazer comigo e com você, e eu não quero que aconteça nada com você'. Então indiretamente, ele me fez um relato de uma possível ameaça".

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Na época, as mobilizações lideradas pelo agricultor e ambientalista, conseguiram que uma lei proibindo a dispersão do veneno por aviões na região fosse aprovada na Câmara Municipal de Limoeiro do Norte. Infelizmente, apenas um mês depois de sua morte, a lei foi revogada.

"O caso do assassinato do José Maria do Tomé é um dos casos mais emblemáticos no Brasil do assassinato de defensores de direitos humanos, de lideranças comunitárias, lideranças ambientalistas. E o contexto desse assassinato está intimamente ligado à sua liderança, ao seu trabalho de denúncia e fiscalização com a lei da pulverização aérea de agrotóxico", comenta Cláudio Silva, advogado membro da comissão de Direitos Humanos da OAB que acompanha o caso.

Investigação e denúncia

Zé Maria foi morto com cerca 20 tiros em 21 de abril de 2010. Dois anos depois, após um demorado e complexo processo de investigação, o Ministério Público denunciou como responsáveis pelo homicídio João Teixeira Júnior (então proprietário da empresa Frutacor), José Aldair Gomes Costa (gerente da citada empresa), Antônio Wellington Ferreira Lima e Francisco Marcos Lima Barros (na época moradores da comunidade Tomé, que teriam dado suporte ao assassino). Segundo o MP, Zé Maria foi assassinado pelo pistoleiro Westilly Hitler Raulino Maria, conhecido como Boi, morto ainda durante as investigações em uma operação policial.

Também durante a investigação, um senhor conhecido como Sebastião, pai de Francisco Marcos, um dos partícipes, cometeu suicídio antes da denúncia do MP. Já Antônio Welington teve o mesmo destino de Westilly Hitler, assassinado em uma operação policial que não tinha relação com o caso de Zé Maria. De lá para cá, João Teixeira e José Aldair, acusados de serem os mandantes, foram despronunciados pelo Tribunal de Justiça. Por dois votos a um, a Corte entendeu que não haveria indícios suficientes contra eles.

Passada mais de uma década, ninguém foi responsabilizado pelo crime. Entretanto, o único réu que restou, Francisco Marcos, irá a júri popular no dia 6 de setembro desde ano. Será o último capítulo desta história que se arrasta há mais de 12 anos.

"A expectativa para nós, advogados assistentes de acusação, é que esse júri seja realizado, que seja dada a devida publicidade ao caso, que esse júri seja feito de forma isenta, que os jurados tenham condições de fazer um julgamento isento e que seja feita justiça com a condenação do Francisco Marcos. Mas além disso, é fundamental que tanto as testemunhas, mas principalmente esse réu, que fale quem foi o mandante do homicídio, quem mandou matar José Maria do Tomé", reitera Cláudio Silva.


Zé Maria com as filhas e a esposa Dona Branquinha. Na época do assassinato ela estava grávida do filho caçula, que não chegou a conhecer o pai. / Acervo da família

O jornalista Melquíades Júnior, que recebeu o prêmio MPT de Jornalismo pela série "Viúvas do Veneno", acompanhou durante muitos anos os conflitos na região e viu de perto os problemas denunciados por Zé Maria. "Eu cheguei no momento após a ocupação dessas grandes fazendas, e elas começaram a iniciar a aplicação em alta escala de agrotóxicos, a aplicação de veneno. E quando eu chego lá, essas comunidades começam a fazer os primeiros relatos desse impacto do agrotóxico"conta.

"Então quando eu chegava, no momento da pulverização, eu via ali a reação primeira dessas comunidades, de as pessoas tentarem fechar as portas da casa, tentarem fechar a panela com a comida do almoço que estava sendo preparado, de botar os meninos pra dentro de casa. Imagina você chegar num território, que naquele momento você só sente ali as gotículas de veneno se espalhando pelo ar", lembra.

O assassinato de Zé Maria faz parte de uma triste realidade sobre a violência no campo em todo o país. Segundo o relatório mais recente da Comissão Pastoral da Terra, entre 2011 e 2015 foram registrados 6.737 conflitos no campo, envolvendo mais de 3,5 milhões de pessoas. No período seguinte, de 2016 a 2021, esses números subiram para 10.384 conflitos, atingindo 5,5 milhões de pessoas, em especial crianças, jovens e mulheres.

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Já o número de mortes causadas por conflitos no meio rural, aumentou mais de mil por cento entre 2020 e o ano passado. Os assassinatos saltaram de um total de 20, em 2020, para 35, em 2021, representando um aumento de 75%. As vítimas são, em sua maioria, lideranças que atuam na defesa dos direitos humanos e do meio ambiente.

Legado e memória

Mas seu legado dele permanece vivo. Em 2018, foi aprovada na Assembleia Legislativa do Ceará a Lei Zé Maria do Tomé. De autoria do Deputado Estadual Renato Roseno (PSOL), ela é hoje a única lei estadual que proíbe a pulverização aérea no país.

"O assassinato do Zé Maria se inscreve na historia dos mártires do Brasil, assim como irmã Doroty, Chico Mendes, Margarida Alves, Padre Josino, ou seja, a violência da concentração fundiária, a violência do campo, ela martirizou centenas de pessoas, milhares de pessoas no Brasil. E o seu legado, indiscutivelmente é o legado da necessidade da coragem de nós aliarmos a defesa da reforma agrária e a transição agroecológica", ressalta Roseno.

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Maria de Jesus, Dirigente Estadual do MST no Ceará, também fala sobre o legado do agricultor e ambientalista. Ela reitera que sua luta continua.

"Quiseram calar a voz de Zé Maria, mas nós, do MST, temos reafirmado, 'companheiro Zé Maria, aqui estamos nós falando por você, já que calaram sua voz'. E é assim que nós seguimos o legado do Zé Maria, reafirmando a importância do direito à terra. Por isso demos o nome dele a ocupação de terras do Dnocs que fizemos na região. Estamos lá no Acampamento Zé Maria resistindo há 8 anos, e nós não abrimos mão daquela terra, a chapada também é dos agricultores e agricultoras", finaliza.

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Fonte: BdF Ceará

Edição: Camila Garcia