por sobrevivência

Ribeirinhos do Manicoré enfrentam grileiros, fogo, garimpo e até o governador do AM

Ameaças de morte, intoxicação por mercúrio e descaso governamental marcam luta de 16 anos por reconhecimento

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Marilurdes Correia da Silva, fundadora da Caarim - Wérica Lima/Amazônia Real

Um incêndio florestal dentro de área demarcada por Concessão de Direito Real de Uso (CRDU) está devastando mais de 1.800 hectares de floresta localizada à margem do rio Manicoré, afluente do rio Madeira, no sul do Amazonas, apavorando moradores ribeirinhos desde a semana passada.

“Os fazendeiros, os grileiros, tocaram fogo na última terça-feira (16) e até agora não parou. O fogo está seguindo para a margem virgem. O estrago está sendo feito”, relatou à agência Amazônia Real no último sábado (20) Maria Cleia Delgado, presidente da Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim), que recebeu a CDRU coletiva em nome das comunidades em março deste ano. Maria Cleia disse que pediu ajuda às autoridades do governo do Amazonas, mas até o momento as ações de combate ao incêndio não foram realizadas.

Segundo a liderança da Caarim, o fogo acontece em terrenos ilegalmente derrubados e desmatados dentro da área de 392.239 hectares de 15 comunidades, onde vivem 4 mil ribeirinhos.

“A gente não sabe nem o que fazer. O verão está muito forte no sul do Amazonas e o fogo continua. Isso acontece abaixo das cachoeiras, perto de uma área chamada Tracajá. O fogo está entrando na mata. Estamos muito preocupados”, denunciou Maria Cleia, que em junho fez parte de um grupo de ribeirinhos do rio Manicoré que participaram de uma expedição promovida pela ong Greenpeace para alertar sobre as ameaças ao território e para apoiar a criação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Rio Manicoré, proposta de área protegida que o governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), apoiador de Jair Bolsonaro, já se opôs publicamente. A expedição levou ao rio Manicoré cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e jornalistas.

Na sexta-feira (19), o Greenpeace divulgou em suas redes sociais imagens feitas um dia antes mostrando o fogo destruindo a floresta. As imagens mostram a área desmatada próximo do Igarapé do Tracajá, a 7 quilômetros do rio Manicoré. Segundo denúncia do Observatório da BR-319, uma rede de organizações que acompanham violações de direitos humanos e territoriais no entorno da rodovia, quase 3 mil hectares da área demarcada já foram devastadas por invasores, grileiros e madeireiros.

Nas últimas semanas, grandes focos de queimadas foram registrados pelo monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no sul do Amazonas, com fumaça se espalhando para várias cidades da região.

À reportagem, o governo do Amazonas disse que o “Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) identificou suposto ato criminoso por meio do Centro de Monitoramento Ambiental e Áreas Protegidas (CMAAP) e enviou, na sexta-feira (19), uma equipe que sobrevoou a área para fazer o reconhecimento do local e verificar a situação”. Segundo a nota do governo, “o Instituto já deu início ao processo de Embargo Remoto – quando não há a presença do responsável pelo ilícito no local – e à autuação do ato infrator.”

Neste domingo (21), a Amazônia Real apurou que o Ipaam enviaria equipes de combate ao fogo na região nesta semana. Mas a ação do Ipaam se mostra atrasada, já que as denúncias sobre invasão à comunidades do rio Manicoré não são de agora. O órgão também já deveria ter tomado medidas para impedir a entrada de invasores e deixar de conceder licenças ambientais e títulos de terras a pessoas que não residem ou não estejam listadas como concessionárias dentro da área total de 389.932,6 hectares concedida pela CDRU há cinco meses.

Em junho passado, o Ipaam disse à reportagem que a Secretaria de Estado das Cidades e Territórios (Sec), que emitiu a CDRU, e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), não notificaram ao órgão sobre o documento e nem informaram os limites da área. A Sect e a Sema também não solicitaram “qualquer providência quanto aos licenciamentos em andamento ou os já concedidos”, segundo o Ipaam.

“Até o momento, os licenciamentos continuam ocorrendo normalmente e não há obrigatoriedade de identificação do solicitante, podendo esse ser empresário ou morador local, necessitando apenas da documentação fundiária”, disse nota do Ipaam enviada à reportagem, na ocasião.

“Esse desmatamento dentro do CDRU do Território de Uso Comum do Rio Manicoré é muito triste e, tudo isso, ocorreu logo depois que autoridades do Estado visitaram a área e demonstraram seu apoio ao CDRU, afirmando que o território é de fato das comunidades”, declarou Rômulo Batista, que atua na campanha de Amazônia do Greenpeace Brasil, em nota enviada pela organização à imprensa na última sexta-feira.

Fernanda Meirelles, líder na Iniciativa Estratégica de Governança Territorial do Idesam e Secretária Executiva da rede Observatório BR-319, afirma que a justificativa do Ipaam de não suspender licenças e não realizar operações na área demarcada pela CDRU não faz sentido. Para ela, as licenças já deveriam estar sendo invalidadas.

“No momento em que uma área é reconhecida e está em processo para criação de uma Área Protegida, existe uma limitação administrativa que deveria invalidar licenças de empreendimentos que não estão em consonância com os objetivos de uma UC. Cabe ao governo assegurar a conservação dessas áreas que estão em processo de destinação”, explicou ela.

Mesmo confirmando que não suspendeu a expedição de licenças ambientais, o Ipaam não disse à reportagem quantas liberou desde a emissão da CDRU. 

Procuradas para responder a respeito das informações passadas pelo Ipaam, a Sema e a Secretaria Estadual de Comunicação (Secom) não retornaram. A Sect respondeu apenas que “os trâmites de CRDU estão em andamento, de acordo com os prazos administrativos do órgão”. 

Durante a expedição de junho, a reportagem da Amazônia Real já havia identificado avanço de desmatamento na região que atualmente está sendo devastada por incêndio e queimadas ilegais. No sobrevoo sobre florestas localizadas no perímetro da CDRU coletiva das comunidades ribeirinhas do rio Manicoré, foi possível avistar hectares de floresta queimados, madeira ilegal, criação de gado e abertura de ramais e estradas.

Incêndio registrado em sobrevoo do Greenpeace no dia 17 de agosto (Foto: Greenpeace)

Incêndio registrado em sobrevoo do Greenpeace no dia 17 de agosto (Foto: Greenpeace)

Queimadas no sul do Amazonas em 16 de agosto de 2022 (Foto: Greenpeace)

Incêndio registrado em sobrevoo do Greenpeace no dia 17 de agosto (Foto: Greenpeace)

Desmatamento dentro da CDRU em Manicoré, Amazonas (Foto: Wérica Lma/Amazônia Real)

Desmatamento dentro da CDRU em Manicoré, Amazonas (Foto: Wérica Lma/Amazônia Real)

Os ribeirinhos relataram que os grileiros acessam as regiões através de rodovias como a AM-174, abrindo novos ramais, apoderando-se de terras, extraindo madeira e a partir disso, estabelecendo criação de gado. 

Um dos locais atingidos, conhecido como Tracajá e Miriti, fica próximo das cachoeiras do rio Manicoré. Os castanhais da região, de onde as comunidades Barro alto e Lago dos Remédios coletavam castanha, foram derrubados. 

Fontes da Amazônia Real que preferem ficar no anonimato por receio de ameaça afirmaram que existiam 70 motosserras sendo utilizadas para derrubar a área. Os grileiros andam sempre armados.

No período que esteve no barco do Greenpeace, a reportagem presenciou rabetas (pequenas embarcações) carregadas de baldes com gasolina subindo rio acima, em direção ao lugar do desmatamento. Segundo relatos de moradores, cerca de três a quatro balsas de madeira descem lotadas toda semana do rio Manicoré.

“Só o Estado pode fazer fiscalização do que está acontecendo aqui dentro e o mapeamento da emissão dos títulos que existem aqui. Há planos de se construir vicinais cortando essa área e ligando Santo Antônio do Matupi a Manicoré, e que isso afetaria muito toda essa floresta, tendo em vista que na Amazônia quando você pega todo o desmatamento cerca de 90% dele ocorre a 100 Km de estrada”, explicou Rômulo Batista. 

 

RDS é sobrevivência 

Comunidade Estirão (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

Desde 2006, famílias associadas a CAARIM luta pela criação da RDS do Rio Manicoré (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

 

Desde 2006, famílias associadas a CAARIM luta pela criação da RDS do Rio Manicoré (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

Produção de farinha de macaxeira é uma das fontes de sustento das comunidades Agroextrativistas do rio Manicoré (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

Produção de farinha de macaxeira é uma das fontes de sustento das comunidades Agroextrativistas do rio Manicoré (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

Sebastiana Parente Batista, agricultora e pescadora, moradora da comunidade Terra Preta, Manicoré (AM), lida com o cacau, outra fonte de renda das comunidades (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

Sebastiana Parente Batista, agricultora e pescadora, moradora da comunidade Terra Preta, Manicoré (AM), lida com o cacau, outra fonte de renda das comunidades (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

Sebastiana Parente Batista, agricultora e pescadora, moradora da comunidade Terra Preta, Manicoré (AM), lida com o cacau, outra fonte de renda das comunidades (Foto: Nilmar Lage / Greenpeace)

A área do rio Manicoré é a vida e a casa de Raimundo Caetano, mais conhecido como “Pau-de-arara”, de 44 anos, da comunidade Barro Alto, bem como de outros moradores antigos que nasceram e cresceram vendo o avanço de crimes ambientais e sociais no território. A floresta, que representa muito mais essa população do que a destruição da região, é de onde Raimundo tira o sustento através da castanha e da mandioca. 

“Há uns anos a retirada de madeira que existia aqui dentro era dos próprios moradores, mas para fazer uso sustentável. Agora não, tudo está sendo desmatado para venda comercial por madeireiros. O negócio avançou muito no nosso rio e é muito preocupante para nós que moramos aqui e dependemos dele e da floresta”, diz Caetano, durante conversa com a reportagem, na expedição da qual ele participou.

Além de garantir o uso da terra, a CDRU permite que os moradores tenham autonomia para acessar políticas públicas como fomento à produção agroextrativista. O documento também proíbe que o poder público conceda licenças ambientais para pessoas que não moram na área.

Os ribeirinhos das 15 comunidades da região do rio Manicoré, afirmam que a Concessão de Direito Real de Uso (CRDU) é importante e necessária, mas este instrumento de regularização fundiária não é suficiente para proteger a área das invasões. Desde 2021, eles voltaram a se mobilizar para que a área de 392.239 hectares seja transformada em Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS).

“Isso é o bom da luta. Hoje a gente tem a CDRU na mão para acessar a linha de crédito, fazer aposentadoria, ter auxílio maternidade, estamos caminhando, mas nós queremos continuar para a partir disso ter a nossa RDS, é isso que estamos esperando e não vamos parar”, ressalta Maria Cleia Delgado.

Iniciada há 16 anos, a primeira tentativa de criação da RDS Manicoré foi interrompida. Com pouco poder de mobilização e apoio, além de um ambiente dividido entre pessoas contra e a favor, os ribeirinhos viram o sonho de tirar seu sustento sem degradar a floresta ser arquivado pelo governo do Amazonas. Eles souberam do arquivamento do processo apenas em 2021, quando procuraram os órgãos ambientais do Estado para saber sobre o andamento do pedido da criação da RDS Manicoré. 

 

Wilson Lima é contra RDS

 

Ribeirinhos e aliados ambientais, como o Greenpeace e o Observatório 319 acreditam que a CRDU pode ser um protótipo da futura RDS Manicoré, mas sabem que têm pela frente uma dura batalha, com garimpeiros, madeireiros e até o próprio governador do Amazonas contra a criação da área protegida. Há dois meses, Wilson Lima, que é candidato à reeleição, fez um discurso em que deixou claro ser contra a RDS.

Para uma grande plateia e ao lado de políticos locais e estaduais, realizada no dia 14 de junho em Manicoré, Lima disse ser filho de garimpeiros e defendeu a mineração. Manicoré fica na bacia do rio Madeira, onde a presença de balsas de garimpo de ouro é frequente e tem aumentado nos últimos meses. O governador foi ao município anunciar obras viárias do governo do Amazonas no município e aproveitou o evento para dizer que não vai permitir a criação da RDS Manicoré.

“Tem uma situação que eu faço questão de esclarecer aqui e que está acontecendo lá no rio Manicoré. Tem gente dizendo, levantando a ideia, de que será criada uma reserva ali. Esqueça, porque não há a menor possibilidade de acontecer. Eu vou lutar contra quem quiser fazer isso. Eu vou até às últimas consequências”, disse a uma plateia que aplaudia seu discurso. “Nós temos riquezas naturais, nós temos madeira, temos mineral, temos ouro, e muitas outras riquezas”, completou.

Segundo Wilson Lima, “não faz sentido você deixar uma árvore em pé se o nosso povo estiver passando fome”, ao defender a atividade de garimpo. “Não adianta o recurso mineral estar lá debaixo da terra se o nosso povo está passando fome. Então não me venham com discurso de criação de reserva, de proteção de floresta”.

Meses antes, no dia 17 de março, na solenidade de entrega da CDRU, Wilson Lima e os secretários estaduais de Meio Ambiente, Eduardo Taveira, e de Cidades e Territórios, João Braga, passaram a imagem de defensores da floresta. Taveira disse que a CDRU “era um marco para as unidades de conservação”. O secretário, contudo, não fez referências à RDS Manicoré.

O discurso de Wilson Lima deixa ainda mais vulneráveis as populações das comunidades do rio Manicoré, que se veem na situação de lidar com uma narrativa ambígua na estrutura do atual governo do Amazonas. 

“O pronunciamento do governador traz insegurança porque vem do poder público. Ele é o gestor majoritário do Estado. A gente espera que o poder público venha apoiar e proteger as comunidades tradicionais e não deixar desprotegidas e dando apoio para uma classe que destrói o meio ambiente, degrada, como a questão do garimpo. Isso nos deixa tristes”, desabafou Marilurdes Cunha da Silva, fundadora e secretária da Caarim.

A liderança ressalta que a floresta, sem desmatamento, é que sustenta os ribeirinhos. “Essa fala do governador é uma fala muito infeliz, porque ninguém está morrendo de fome no rio Manicoré. Pelo contrário, há uma fartura porque as árvores estão em pé, porque dali se colhe a castanha, dali que se sustenta o rio. A floresta é vida para as pessoas, é vida para os animais”, explica. 

A reportagem procurou o governador do Amazonas, através da Secretaria Estadual de Comunicação (Secom), para ouvi-lo sobre a declaração no evento em Manicoré, mas não obteve resposta.

 

Uma espera de 16 anos

Maria Cléia Delgado, presidente da Central de Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (Caarim) (Foto: Nilmar Lage/Greenpeace)

Desde 2006, famílias associadas à Central das Associações Agroextrativistas do Rio Manicoré (CAARIM) buscam criar a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Manicoré (Foto: Nilmar Lage/Greenpeace)a de maneira sustentável,

 

Vegetação na margem do Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia (Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace)

Igarapé próximo ao Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia (Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace)

Macaco-aranha-preto (Ateles paniscus) em uma floresta próxima ao Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia (Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace

Cuxiú-de-nariz-branco (Chiropotes albinasus) em uma floresta próxima ao Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia (Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace)

Floresta próxima ao Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia (Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace)

Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia (Foto: Valdemir Cunha/Greenpeace)

 

Há 16 anos os ribeirinhos do rio Manicoré enfrentam madeireiros, garimpeiros e grileiros para proteger a floresta e o seu modo de vida. Em agosto de 2021, após uma reeleição com o objetivo de intensificar a luta pela criação da RDS, a Caarim realizou uma expedição para mapear as regiões de retirada de madeira. Uma carta aberta assinada por 15 comunitários representando todas as comunidades da área da proposta de RDS foi endereçada às autoridades, bem como um documento oficial solicitando uma reunião com a Sema e o Ministério Público Federal. 

Em 7 de dezembro de 2021, 22 lideranças foram até a Sema para tratar sobre a insatisfação da criação da RDS demorar mais de uma década. Para surpresa de todos, mesmo com reuniões e envio de documentos durante anos, souberam que o processo havia sido arquivado e não houve aviso formal às lideranças. Nem mesmo o MPF tinha conhecimento sobre a medida, segundo Nota Técnica da rede Observatório BR-319. Ao ser questionada pelos representantes da Caarim e pelo Idesam, a Sema não respondeu sobre a data e o ano em que o processo foi arquivado. 

“A gente ficou decepcionada. Naquele momento, quando eles falaram que estava arquivado, a nossa equipe se desesperou, acabou tudo, mas fui forte e disse que não acabou”, diz Maria Cleia Delgado.

À Amazônia Real, a Sema disse que o arquivamento ocorreu porque “em consultas públicas realizadas na localidade, os comunitários não foram favoráveis à criação de uma UC”. O órgão não respondeu à reportagem sobre a data do arquivamento.

Conforme a reportagem apurou, na primeira tentativa de criação da RDS representantes do setor madeireiro e políticos locais pressionaram lideranças para estas se oporem à proposta. 

Marilurdes lembra, decepcionada, o assédio de políticos e pessoas contrárias à criação da RDS aos ribeirinhos. “Fizeram o comunitário lutar contra o seu próprio direito. Muitos achavam que estavam sendo beneficiados pelos políticos. Falavam para as pessoas que com a reserva não poderiam extrair nada, mas isso sempre foi mentira, porque dentro de uma RDS pode ser feito tudo que é sustentável”.

A crescente pressão no território fez com que as lideranças e os comunitários não desistissem e solicitassem, a partir da reunião realizada na Sema em dezembro de 2021, uma CDRU como solução emergencial. O MPF já havia apresentado a mesma proposta em 2015.

Mas um ofício enviado em fevereiro de 2022 à Sema solicitando informações sobre a reabertura do processo administrativo de criação da RDS rio Manicoré, pelo Idesam, com a Rede Transdisciplinar da Amazônia (Reta) e a Caarim, não foi respondido até o momento. 

À Amazônia Real, a Sema afirmou que o processo permanece arquivado, mas que deve “avaliar o processo de retomada da criação mediante apresentação de manifestação formal de interesse dos moradores e comunitários, não apenas lideranças”.

As lideranças da Caarim dizem que tudo está começando do zero. Estão sendo realizadas reuniões e idas em todas as comunidades e casas para explicar sobre a CDRU e criação da RDS, fazer cadastro dos comunitários, bem como a produção de 15 atas, uma de cada comunidade, com assinaturas dos comunitários para que não haja mais a alegação de que estes “não estão de acordo”, além de instalação de placas de sinalização dos limites do território. Segundo Marilurdes, oito atas já estão prontas para serem enviadas à Sema.

 

Doenças do garimpo

Balsas de garimpo em frente a Manicoré (Foto: Wérica Lima/Amazônia Real)

Um dos porta-vozes da campanha em defesa da RDS Manicoré, Raimundo Caetano disse à Amazônia Real, durante o período em que a reportagem esteve na expedição, que o rio Manicoré está sendo ocupado por pessoas de outros estados que têm o agronegócio como principal atividade econômica.

“Próximo onde está ocorrendo o desmatamento tem gente de Porto Velho, Acre e Mato Grosso. Isso está tirando o sustento dos nossos moradores, de mim e da minha família. Os governantes deveriam olhar para o nosso rio com mais delicadeza e nos ajudar”, disse.

Ele diz que a quantidade de peixes no rio também tem diminuído por causa da exploração do ouro do Madeira. “Hoje a pesca está dificultosa devido às pessoas que estão invadindo nosso rio, como os peixeiros formados nas colônias de pescadores, que fazem pesca comercial e quando pegam em grande quantidade, abastecem Manicoré e o resto desce para Manaus”. 

Balsas de garimpo naquela parte do Amazonas são facilmente avistadas por qualquer pessoa. Durante o período em que esteve no barco, a reportagem identificou fileiras de balsas que ficam atracadas no rio Madeira, próximas à entrada do rio Manicoré, sem serem incomodadas por autoridades públicas ou fiscalização. 

Segundo Raimundo Caetano, diversas pessoas têm crises de epilepsia, um dos sintomas de contaminação por mercúrio, usado pelo garimpo. “Não fizeram os exames para ver se é devido o peixe, mas a gente tem suspeita disso, inclusive já morreram seis pessoas desse tipo de doença. É uma coisa estranha que está acontecendo e às vezes nem os moradores percebem. Ali em frente a Manicoré tem os garimpeiros, parece uma cidade, e esses peixes do Madeira entram aqui dentro”, concluiu. 

Coletas realizadas por cientistas no rio Madeira revelam que as briófitas dos barrancos do rio possuem alta taxa de contaminação por mercúrio. Elas absorvem metal do solo, do ar e da água. 

“Isso pode ser um problema, pois elas estão na base da cadeia alimentar. Tem um efeito acumulativo, principalmente nos peixes lisos e pode causar grande concentração de mercúrio nos peixes, prejudicial para as comunidades que se alimentam basicamente disso aqui na região”, explica a professora da Universidade do Estado do Amazonas, Marta Pereira, especialista em botânica.

Raimundo de Aquino, 70, morador há sete décadas no rio Manicoré, denuncia que todos os anos os pescadores ilegais sobem o rio e descartam os peixes menores próximo à sua comunidade, Estirão. “Se eles pegassem somente os peixes graúdos apenas para alimentação, era tão bom. Mas eles pegam os filhos dos peixes e jogam todos aí na beirada, de duas a três toneladas todo ano. Isso acontece no final de julho. É a época que mais estraga peixe”.

Raimundo de Aquino, comunitário do Estirão, em sua plantação de cacau
(Foto: Wérica Lima/Amazônia Real)

Produtor de açaí, mandioca, cacau e outras frutos e legumes, ele conta que nunca precisou desmatar grandes áreas para ter a atual plantação de onde tira cerca de 280 latas de açaí por safra.  Dos 26 hectares que possui, apenas seis são destinados à plantação e o restante é preservado. “Eu tenho medo. Daqui a mais uns anos nós não vamos ter mais o que temos, se continuar com esse pessoal aí fora. É mais vantajoso ter a natureza que fica todo tempo, a madeira acaba, acaba tudo”.

Dinalva Reis, 43, produtora de farinha e integrante do conselho fiscal da Caarim, acredita que, além da falta de fiscalização, a falta suporte nas produções é mais um desafio para os moradores. “A gente quer ser mais valorizada. Precisamos de técnicos para nos orientar no nosso plantio. Às vezes dá doença, a gente é produtor mas não tem um conhecimento técnico. Tenho o sonho de fazer faculdade em uma área que ajude nossa produção”.  

 

Por que uma Reserva

A produção de farinha de macaxeira é uma das bases de sustentabilidade das comunidades associadas à Caarim ( Foto: Nilmar Lage/Greenpeace)

Nos últimos anos, a mobilização dos ribeirinhos cresceu com novos aliados para a viabilização da proposta. Em 2022, o Greenpeace iniciou a campanha “A Amazônia que precisamos” e realizou uma expedição até o rio Manicoré que durou quase um mês. 

Rômulo Batista, porta-voz da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil, explica que, com a implementação da CDRU nas mãos da Caarim, a associação constrói parcerias, mas que é papel do governo proporcionar meios para que tal feito seja possível.

“É papel do governo também, uma vez que ele concedeu esse território, amparar essas populações que estão aqui para que o que está sendo demandado possa ser feito. Só com todos os instrumentos e mais o diagnóstico biológico que a gente está apoiando, que se soma num grande documento, é que vai ser feito o plano de gestão da CDRU, que vai trazer todo esse conjunto de regramento de acordos de mapeamento e definição de zonas de uso ou não uso conforme deliberação das comunidades”.

 

Denúncias de ameaças

Dentro da gestão da Caarim, um dos desafios de implementação da própria CDRU ficar nas mãos das lideranças é a vulnerabilidade em que estes se encontram, já que sofrem há anos com ameaças de morte. “Toda nossa equipe da Caarim é ameaçada. Nós ficamos preocupados porque a gente vê que em outras regiões acontecem mortes e agressões, a gente teme”, diz Marilurdes Cunha da Silva.

Relatos de ribeirinhos que preferem não se expor por medo, lembram que, em visita à comunidade Terra Preta, por exemplo, três pessoas da Caarim sofreram ameaças e tentativa de serem mutiladas com um terçado enquanto mobilizavam para as audiências realizadas em novembro de 2016, quando se discutiu sobre a proposta de criação da RDS. Na época, houve ameaça de incêndio criminoso no centro cultural da comunidade onde aconteceria a consultoria pública. A audiência precisou da presença de policiais para ser realizada.

Cestas básicas, gasolina e dinheiro mensal teriam sido distribuídos para que os comunitários se mostrassem contrários à criação da RDS. No dia da audiência, como retaliação, um comunitário a favor da reserva teve seu flutuante solto no rio por quem não estava de acordo.

Marilurdes Cunha da Silva chegou a denunciar ter sido empurrada contra cadeiras, após ser chamada de mentirosa. Depois da audiência, ela diz que decidiu morar na cidade de Manicoré devido às ameaças que vivenciou quando morava nas comunidades.

“Agora nós já estamos fazendo BOs [boletins de ocorrência] quando alguém ameaça”, frisa a liderança, que até então optava por não fazer registros das ameaças de morte.

“Nós somos vistos com olhar de retaliação. Eles [os madeireiros] ficam revoltados com quem se levanta a favor da proteção do território. Essas coisas acontecem e nós não temos apoio de nenhum político de Manicoré. Não temos como contar com eles”, complementa.

Em nota do dia 14 de junho, o Ministério Público Federal informou que encaminhou ao Ministério Público Estadual do Amazonas denúncias sobre violações ao território, incluindo publicações de potenciais ameaças aos comunitários e divulgação de manifestação contra a CDRU.

“O MPF identificou também divulgação realizada em mídias sociais sobre manifestação programada para hoje (14), quando o governador Wilson Lima estará em Manicoré, contra a criação da RDS Manicoré e pela revogação da CDRU coletiva, com acusações diversas que necessitam de apuração de responsabilidades”, diz a nota.

Os relatos estão sendo apurados também pelo próprio MPF na esfera criminal. Em nota à reportagem, o MPF não deu detalhes sobre o inquérito, pois está em sigilo de justiça. Informou apenas que fez uma recomendação e que ela foi cumprida ‘em parte considerando a expedição da concessão de direito real de uso (CDRU) coletiva”.

Procurado para informar que providências tomou a respeito das denúncias enviadas pelo MPF, o Ministério Público Estadual (MPAM), disse que instaurará procedimento próprio (notícia de fato) para analisar as informações enviadas pelo MPF. 

O desaparecimento da biodiversidade 

A expedição científica, além da relevância para conhecer aspectos ecológicos da área, também teve o propósito de apoiar a luta dos ribeirinhos, mostrando a importância de conservar ambientalmente a região.

Bromélias, líquens, algas verdes, sorva, espirulina e ao menos seis espécies de breu são visualizadas e revelam ambientes únicos, como as campinaranas que compõem de 5% a 7% da Amazônia e possuem uma dinâmica e espécies únicas e distintas do resto da floresta. 

O rio Manicoré abriga espécies de pássaros que só ocorrem na região de interflúvio e nunca haviam sido registradas e nem coletadas neste afluente. Os pesquisadores de aves estão em uma corrida contra o tempo para entender o que está acontecendo com as espécies que estão desaparecendo até mesmo em áreas não desmatadas. 

Segundo Arthur Gomes, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia do Inpa, uma das hipóteses é que o solo esteja se tornando mais seco devido às mudanças climáticas e ao desmatamento.

“A gente imagina que essas aves que estão desaparecendo são super sensíveis. Então, quando tem uma pressão como garimpo, queimadas, desmatamento, isso acelera o processo. Pode ser que algumas dessas espécies sofram uma redução populacional bem drástica antes do desmatamento chegar onde elas vivem, pois a gente não sabe como o desaparecimento da floresta amazônica em Rondônia, que praticamente não sobrou nada, afetou as aves daqui”, alerta o pesquisador. (Colaborou Elaíze Farias)