Deboche

Sakamoto: Bolsonaro diz que não há filé mignon para todo mundo, só para seus filhos

Justificativa de que não vai ter carne de primeira para todo mundo é péssima para a sua campanha à reeleição

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Filé mignon: Bolsonaro segue fortalecendo a imagem de candidato dos ricos - pxhere

Ao atacar uma das bandeiras de campanha de Lula (de que, em seu governo, as famílias voltarão a comer picanha e tomar cerveja), o presidente Jair Bolsonaro disse que a promessa é "conversa mole". E sentenciou: "Não tem filé mignon pra todo mundo!"

Claro que ele falava a uma plateia de empresários na capital paulista, onde o discurso não parece ter produzido um choque coletivo.

Especialista em criar narrativas diferentes, muitas vezes antagônicas, para públicos diferentes, o presidente nunca diria tal coisa na pobre Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, por exemplo.

O problema é que se, por um lado, a era das redes sociais permite a microssegmentação de públicos, e o envio de diferentes discursos para cada um deles, por outro, também possibilita que declarações, como as de Bolsonaro, transbordem para fora da bolha em que foram produzidos. E considerando que a internet não esquece, isso pode acontecer anos depois.

Em 18 de julho de 2019, em sua live semanal, o presidente mostrou que, em caso de pouco filé mignon, quem primeiro leva sua parte são seus filhos.

Ao defender a indicação do deputado federal Eduardo Bolsonaro ao cargo de embaixador do Brasil nos Estados Unidos, disse: "Lógico, que é filho meu, pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo, se puder, dar filé mignon".

Mesmo se alegar que estava usando o filé como "figura de linguagem", a desculpa que adotou na entrevista ao Jornal Nacional ao ser questionado sobre ter dito que vacina da Pfizer transformava pessoas em jacarés, ainda assim o resultado é tosco. Porque estamos falando do filé mignon da administração pública, que deveria ser entregue aos mais gabaritados e não a parentes.

O presidente afirmou que isso não configuraria nepotismo e tentou explicar, sendo chulo: "Quem diz que não vai votar mais em mim, paciência. É igual aquele maridão malandro. Está lá, felicíssimo com a mulher seis meses depois do casamento. Em um dia lá, a mulher queima o ovo dele. Ovo na frigideira, pra deixar bem claro [risos]. Aí pronto, já quer acabar com o casamento. Não tem cabimento isso aí. Vai ter coisas que eu vou desagradar vocês."

No final, a pressão da opinião pública foi tão grande que os planos foram interrompidos e o deputado não levou o filé mignon pago com dinheiro do contribuinte. Mas foi o suficiente para perceber, já nos primeiros meses de seu mandato, que o presidente tem uma visão pitoresca sobre a diferença do público e do privado.

Percepção que ficaria pior nos anos seguintes, com a imprensa e o Ministério Público mostrando a rede de desvios de salários dos servidores dos gabinetes da família Bolsonaro, as chamadas "rachadinhas".

Declaração é péssima para quem precisa conquistar eleitorado pobre

A justificativa de que não vai ter carne de primeira para todo mundo é péssima para a sua campanha à reeleição. Primeiro, porque reforça o presidente com a imagem de candidato dos ricos. Segundo, porque ele tenta desesperadoramente trazer os mais pobres para perto. As classes D e E não esperam comer filé mignon e picanha todos os dias. Mas com a inflação alta e a queda da renda a compra eventual desses produtos deixou de acontecer.

Na verdade, a compra da carne bovina deixou de acontecer.

De acordo com o último informe da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), "a demanda por carne bovina segue fraca, com preços bem elevados frente à queda no poder aquisitivo dos consumidores". Mesmo com uma recente redução no produto, ele segue tão caro que afasta os brasileiros.

Quem comia carne, come frango; quem comia frango, come ovo. E quem comia ovo e não tem mais como comprar? Bem, no ano passado e neste ano, tivemos cenas que ficaram tristemente célebres, como as de famílias revirando caçambas de caminhão de lixo e disputando doação de ossos de boi.

Não são as únicas em situação de penúria. Em menos de dois anos, o número de famintos subiu de 19 milhões para 33,1 milhões, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar.

Quanto o acréscimo de R$ 200 no Auxílio Brasil se converterá em votos dos mais pobres - que, hoje, votam em sua maioria em Lula? Se isso acontecer, quando acontecerá? Essa conversão não é automática - pagou, mudou. Depende da percepção da melhoria da qualidade de vida na comunidade em que a pessoa está inserida. No auxílio emergencial, em 2020, demorou meses. Por isso, timing é tudo.

Tendo perdido a chance, na última segunda, durante a entrevista ao Jornal Nacional, de se vender como o "Pai dos R$ 600", Bolsonaro começará a oferecer esse discurso no horário eleitoral de rádio e TV a fim de sensibilizar quem ganha até dois salários mínimos.

Faria um bem à transparência eleitoral, que ele tanto defende, se repetisse a frase "Não tem filé mignon pra todo mundo!" em seus programas.

Mas lá, como eu disse, será um outro discurso para uma outra necessidade. Se puder aparecer vestido de filé mignon para conseguir votos, ele aparecerá.

 

*Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.