Coluna

Do Mato Grosso ao Pará, Ferrogrão tem sido sinônimo de falsas promessas e violação de direitos

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Indígenas Kayapó Mekragnotire em protesto contra a Ferrogrão na BR-163 em 2020. - Instituto Kabu
Povo indígena Kayapó luta pelo direito a consulta prévia e reparação pelos impactos socioambientais

Doto Takak Ire* e Pedro Martins** 

Os indígenas foram os primeiros a chegar às Américas e estão aqui há pelo menos 6 mil anos. No período colonial, se duvidava que fossem humanos e tivessem alma. O reconhecimento dos mais de 300 povos indígenas como sujeitos de direito e cidadãos brasileiros plenos só veio a partir da promulgação da Constituição de 1988. Mesmo assim, sendo responsáveis pela grande sociodiversidade brasileira, continuam a ter seus direitos negados.  

Neste mês, que vem sendo chamado de Agosto Indígena, novamente os povos indígenas do Brasil ecoaram suas vozes em mobilização contra o marco temporal – tese em julgamento no Supremo Tribunal Federal –, pela demarcação e contra o desmonte promovido na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), pedindo o afastamento do atual presidente da instituição, Marcelo Xavier. Enquanto o governo planeja, executa e autoriza políticas e empreendimentos que atacam diretamente sua existência, os povos originários têm dia após dia articulado resistências e lutas em seus territórios, nas ruas, redes, instâncias governamentais e judiciárias. 

Um dos projetos do agronegócio para Amazônia e que tem representado a violação de direitos de povos indígenas e ameaças a preservação da Floresta Amazônica é o da ferrovia EF-170, conhecida como Ferrogrão. O projeto visa ligar o município de Sinop, no Mato Grosso, aos portos fluviais de Miritituba, no Pará, com o objetivo de baratear os custos de escoamento da soja e de outros grãos produzidos em sistema de monocultura no Centro-Oeste.   

O estudo de viabilidade que foi bancado pelas grandes “traders” (empresas compradoras e exportadoras) do mercado de soja foi realizado em 2012, no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Em 2017, quando o presidente era Michel Temer, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) se comprometeu a consultar indígenas Kayapó, como previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), antes de enviar o projeto para avaliação do Tribunal de Contas da União (TCU).   

O Brasil é signatário da Convenção desde 2002. Ela garante a consulta prévia, livre e informada aos povos tradicionais cujos territórios sejam impactados por empreendimentos em planejamento. Essa consulta deve ser realizada antes de qualquer andamento no projeto, no entanto, mesmo com ata assinada por agentes do governo federal, a promessa não foi cumprida.  

Os Kayapó foram retirados do processo de consulta por uma Portaria que estabelece que apenas serão considerados os impactos aos povos tradicionais que estejam a uma distância de até 10 quilômetros do empreendimento. Por isso, eles foram ao TCU em 2021, acompanhados de lideranças Munduruku (cujo processo de consulta também foi atropelado), protestar e protocolaram uma carta que resultou num parecer favorável a eles por parte do representante do Ministério Público Federal no TCU. O que não foi suficiente, assim como não havia sido suficiente a carta assinada por 14 Procuradores da República no ano anterior, reconhecendo a ilegalidade do processo e o desrespeito aos direitos indígenas. 

O processo da construção da Ferrovia, que teria os riscos bancados pelo governo e os lucros usufruídos pelo setor privado, tornou-se a menina dos olhos do então ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.   

Freitas prometeu o edital de concessão da Ferrogrão para 2021 e só não cumpriu porque o Supremo Tribunal Federal aceitou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) impetrada pelo PSOL, alegando que a alteração dos limites e a exclusão de parte do Parque Nacional (Parna) do Jamanxim, cortado pelo traçado da ferrovia, não poderia ter sido feita por Medida Provisória. O julgamento da ação em plenário, marcado para junho de 2022, foi retirado de pauta e deve ficar para o ano que vem.  

O Parna Jamanxim foi criado dentro do corredor de áreas protegidas da Terra do Meio, em 2006, como resposta à espiral de desmatamento na região. Foi o primeiro passo para que o Brasil pudesse reduzir taxas de desmatamento na Amazônia em mais de 80% na década que se seguiu. Área de perambulação tradicional dos Kayapó, o Parna tem em seu interior fazendas griladas, garimpos e cemitérios indígenas. E mesmo tão maltratado, faz parte de um importante mosaico ecológico.  

Mais importante nas prioridades do então ministro Freitas foi um roadshow pelos Estados Unidos, Europa e Oriente Médio para atrair investidores. Apesar da falta de interesse em avaliar os impactos socioambientais sobre povos indígenas já afetados pela BR-163 (Cuiabá-Santarém) e lutando contra desmatamento, invasões e garimpo, o então ministro ressaltava aos investidores as credenciais “verdes” da Ferrogrão, que reduziria o tráfego de mais de 250 mil carretas/ano na rodovia e, consequentemente, as emissões de gases do efeito estufa (GEE).  

Todo este tempo, os Kayapó afirmam que não são contra a ferrovia e nem contra o desenvolvimento. Querem ser consultados, gostariam de ter opinado sobre o traçado, querem entender que impactos ainda sofrerão e querem que os impactos que eles já sentem sejam devidamente reparados. Cada anúncio de avanço nas etapas da Ferrogrão provoca especulação imobiliária e aumenta o risco de invasões nas Terras Indígenas Baú e Menkragnoti, onde vivem os Kayapó do grupo Mekragnoti.  

Muito se fala da falta de segurança jurídica do agronegócio. Pouco se fala da insegurança jurídica dos indígenas. As condicionantes indígenas impostas pelo Estudo de Impacto Ambiental, que permitiram aos Kayapó florescer e manter sua cultura e sua floresta em pleno Arco do Desmatamento, foram suspensas e judicializadas no governo Bolsonaro. O próximo passo pode ser a saída do Brasil da Convenção 169, pedida recentemente em carta de empresários paraenses ao Presidente da República. A cada 10 anos, os países signatários podem deixar a Convenção e isto pode acontecer por iniciativa do Executivo até 22 de setembro deste ano.  

Direitos são inalienáveis. E negar direitos de minorias que vivem sob ataques sistemáticos e protegem as últimas florestas do leste da Amazônia é tão cruel quanto defender a assimilação de povos que lutam há mais de 500 anos para preservar suas culturas. Ou afirmar que não são humanos.

*Doto Takak Ire é líder indígena Kayapó Mekrãgnotí e relações públicas do Instituto Kabu 

**Pedro Martins é assessor jurídico popular e coordenador do Programa Amazônia da Terra de Direitos 

***A Terra de Direitos é uma organização de Direitos Humanos que atua na defesa, na promoção e na efetivação de direitos, especialmente os econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca). Criada em 2002, a Terra de Direitos incide nacional e internacionalmente nas temáticas de direitos humanos e conta com escritórios em Santarém (PA), em Curitiba (PR) e em Brasília (DF).

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria