cenário inédito

Disputa pelo interior deve definir eleições para o governo de São Paulo

Primeiro petista a liderar pesquisas no estado, Haddad tem desafio de ir além das bases do partido na capital

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Haddad conta com o apoio do ex-governador Geraldo Alckmin para romper resistências no interior do estado - Miguel SCHINCARIOL / AFP

As recentes pesquisas eleitorais mostram um cenário inédito na disputa pelo governo de São Paulo. Nunca em sua história o PT esteve na liderança, posição agora ocupada por Fernando Haddad e que tem se consolidado a cada novo levantamento.

Na segunda posição, um embate que simboliza as disputas internas da direita nacional desde a eleição de 2018. O candidato bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) está na frente do tucano Rodrigo Garcia, posição incômoda para um partido que consolidou uma forte hegemonia no estado desde os anos 1990.

O principal desafio para todos é o mesmo: conquistar os votos dos eleitores do interior do estado, um público acostumado a votar no PSDB mas que teve a confiança abalada pela gestão de João Doria à frente do estado.

“É interessante notar que São Paulo é um estado em que o interior tem eleitorado maior do que a capital, e ele é fundamental na decisão das eleições para o governo. Tanto que na última eleição, o Marcio França ganhou na capital, mas perdeu no interior, e foi isso que deu a vitória ao Doria.”, afirma a cientista política Maria Teresa Miceli Kerbauy, profssora da Unesp em Bauru e co-organizadora do livro “Política em São Paulo. Uma análise da dinâmica político-partidária no estado”.

“Não são duas ou três cidades com mais de 200 mil habitantes que são importantes, tem muitas cidades. E todas elas com um perfil. Você tem diversidade, mas é um perfil de busca de políticas públicas mais adequadas", avalia. “Talvez a região do Vale do Ribeira tenha uma característica um pouco diferenciada, mas tem certa uniformidade de desenvolvimento econômico no interior que reflete talvez numa forma de representação que seja mais adequada para esse desenvolvimento.”

Os números confirmam essa relevância. A capital reúne 26,8% do eleitorado paulista, os municípios da região metropolitana são cerca de 10% e o interior concentra os restantes 63% dos votantes do estado.


Em encontro com movimentos sociais e centrais sindicais, o candidato petista recebeu documentos com propostas e várias reivindicações / Roberto Parizotti/CUT

Hegemonia ameaçada

A divisão segue os padrões identificados pela cientista política no comportamento eleitoral dos paulistas. Capital e região metropolitana costumam seguir tendências parecidas, com maior abertura para o PT, que tem seu berço político na região. De outro lado, o interior tem historicamente uma tendência única: o voto no PSDB.

O partido governa o estado desde 1994, quando venceu pela primeira vez com Mário Covas. Desde então, conquistou as eleições em primeiro turno três vezes: em 2006, com José Serra, e em 2010 e 2014 com Geraldo Alckmin, hoje no PSB e aliado de Haddad.

Em 2018, o partido teve sua conquista mais apertada: João Doria recebeu 51,75% no segundo turno, contra 48,25% de Marcio França (PSB), hoje candidato ao Senado na coligação petista. 

O resultado simboliza a perda de espaço da legenda para a extrema-direita liderada por Jair Bolsonaro (PL). Protagonista em todas as eleições presidenciais também desde 1994, o PSDB viu Geraldo Alckmin amargar um quarto lugar, com apenas 4,76% dos votos.

A crise também refletiu nas eleições para o Legislativo, com o partido caindo de 54 deputados federais eleitos em 2014, quando fez a terceira maior bancada, para alcançar 29 cadeiras em 2018, apenas a nona maior bancada. 

Mas mesmo nesse cenário de crise, o partido manteve uma força relevante no estado de São Paulo. Além da vitória de Doria, conquistou 172 prefeituras no estado nas eleições de 2020, de longe o partido com o maior número de eleitos. O segundo lugar coube ao antigo DEM, hoje União Brasil, com 67 prefeitos. O PT elegeu apenas quatro prefeituras.

O estado representou também um terço das 520 prefeituras conquistadas por tucanos em todo o país naquela eleição - uma queda de 265 prefeitos em relação a 2016. 

“O PSDB herdou a forma como o MDB se organizou no estado de São Paulo. A estrutura organizacional do PSDB é originária do PMDB e das suas principais figuras, Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, que foram fundamentais para a organização dessa estrutura no interior de São Paulo e do vínculo com os municípios do estado”, afirma Kerbauy. “O PSDB tem vínculos muito fortes, e tem atuado nessa relação estreita com os municípios, que têm uma influência forte na dinâmica eleitoral.”

“Os governos do PSDB sempre deram muita atenção para o interior. Talvez menos para a capital, ou a atenção que deram para a capital, por conta de sua diversidade, de sua enorme desigualdade, tiveram dificuldades de implementar políticas públicas mais eficientes. No caso do interior, acho que eles foram muito mais eficientes na implementação dessas políticas públicas”, avalia.

Essa ligação histórica com prefeitos do interior é o trunfo de Rodrigo Garcia, que conta ainda com a maior aliança partidária entre os candidatos: além da federação formada por PSDB e Cidadania, o candidato conseguiu apoio de União Brasil, MDB, Avante, Patriota, Podemos, PP e Solidariedade.

A aliança lhe garante o maior tempo de propaganda na TV, que a campanha de Garcia tem usado para reforçar suas raízes no interior do estado – o candidato é nascido em Tanabi, na região metropolitana de São José do Rio Preto.

"Paulista raiz" contra o "forasteiro"

A estratégia busca um contraponto com Tarcísio de Freitas, um carioca que se mudou para São Paulo apenas para disputar as eleições e chegou a declarar que o estado “precisa de alguém de fora” para resolver seus problemas. 

Para Claudio Couto, cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas, a estratégia pode até se mostrar eficaz para aumentar a rejeição a Freitas, mas isso não quer dizer necessariamente que esses eleitores vão escolher Garcia. 

“Não convence o eleitor a votar nele por ele se diz ‘paulista raiz’. Tem que ter alguma coisa a mais. Ele pergunta: ‘olha, efetivamente qual a sua capacidade de me produzir um bom governo?' E o problema, com relação a essa questão, é que o Rodrigo Garcia é automaticamente associado ao João Doria, que saiu do governo com uma avaliação péssima”, lembrou ele, em entrevista ao Jornal Brasil Atual, da TVT.

De fato, Doria deixou o governo no final de março e uma taxa de reprovação de 36% e aprovação de apenas 23%, taxa que especialistas consideram proibitiva para governantes que queiram busca a reeleição - ou eleger seus sucessores. 

Depois disso, viu suas pretensões de disputar a Presidência atropeladas por seu próprio partido, mesmo depois de vencer prévias internas. Os conflitos fomentados por Doria durante sua ascensão meteórica levaram o PSDB a não ter um candidato ao maior cargo do país pela primeira vez desde a redemocratização. 

Agora, é um peso para seu antigo vice, um tucano neófito que se filiou apenas para disputar o governo. "Mesmo que as pessoas avaliem um pouco melhor, como as pesquisas mostram, o governo Garcia do que o governo Doria, ele ainda carrega esse passivo", avalia Couto. 

Enfraquecido, o governador se vê "ensanduichado” entre os dois concorrentes, na visão do cientista político: não consegue votos à esquerda, majoritariamente com Haddad, e nem de eleitores à direita do espectro ideológico, que vêm escolhendo Tarcísio. Pelo menos é o que que indica a recente pesquisa Ipec, que mostra o ex-ministro crescendo para 17%, sete pontos percentuais acima do tucano. 

“Ele fica ali num limbo, em que ele não agrada nem a um lado, nem ao outro”, resume Couto. “Até acho que ele é um candidato perigoso do ponto de vista eleitoral no segundo turno, porque acaba ocupando um certo centro que, dependendo de com quem ele concorrer, pode atrair eleitores do centro para o outro lado, e aí ele se torna mais competitivo. O problema dele é chegar no segundo turno, e aí realmente até agora, mesmo com o uso da máquina, esse grande tempo de propaganda, a grande coalizão, nada disso tem convencido o eleitorado.” 

O apoio de Tarcísio à direita vem de sua ligação com o bolsonarismo, força que roubou dos tucanos a hegemonia deste campo político. Com sua gestão à frente do ministério da Infraestrutura bem avaliada por empresários, o candidato tem tentado se mostrar como uma opção moderada – logo, disputando votos mais ao centro – sem perder o apoio da extrema-direita. 

A operação ganha um complicador na imagem de “forasteiro” de Freitas, que chegou a ter sua mudança de domicílio eleitoral questionada na Justiça. A visão é de alguém que não conhece São Paulo – e especialmente o interior do estado. 

Teresa Kerbauy aponta ações da campanha de Tarcísio para defender esse flanco, partindo da escolha de seu vice, o ex-prefeito de São José do Rio Preto Felício Ramuth (PSD), cidade que foi uma das primeiras visitadas pelo candidato. 

Dificuldade programática

A cientista política aposta na realização de um segundo turno com a presença de Fernando Haddad, mas não arrisca prever quem será o adversário do petista. "Haddad larga na frente porque tem um peso maior na capital e na região metropolitana, São Bernardo, Diadema, aquelas cidades que já foram petistas e têm ainda um eleitorado petista muito grande”, avalia. 

No entanto, precisa trabalhar para vencer resistências a sua candidatura no interior do estado. A campanha de Haddad parece ter se dado conta disso, apostando em propostas como a integração por trilhos entre a capital e grandes cidades como Campinas, Santos, Sorocaba e São José dos Campos, demanda antiga desses locais.

Outra proposta dialoga diretamente com um dos motivos da rejeição a Doria: o aumento da contribuição de servidores aposentados para até 16%, fruto da reforma da Previdência estadual e de um decreto emergencial do então governador durante a pandemia – que originalmente tinha data para ser revisto, mas foi mantido tanto por Doria como por Rodrigo Garcia. 

"O funcionário público do estado de São Paulo odeia o Doria por causa disso", diz Kerbauy. Haddad tem tratado a medida como um “confisco” do governador sobre o funcionalismo e prometido negociar com cada categoria para recompor as perdas geradas pela medida. 

O próprio petista chegou a admitir problemas enfrentados no passado pelo partido no diálogo com o interior. “O PT teve uma dificuldade programática de dialogar com todo o estado, justamente por ter conversado muito com as grandes cidades de São Paulo, já governadas pelo partido. Mas acho que faltava um discurso mais abrangente sobre o estado. Creio que nós acertamos a mão no nosso programa de governo e no arco de alianças que conseguimos patrocinar de um ano e meio para cá", afirmou em sabatina promovida pelos jornais O Globo, Valor e a rádio CBN

Essa aliança inclui como parceiro preferencial o PSB do ex-governador Márcio França, que decidiu retirar sua candidatura ao governo e concorrer ao Senado. E, mais importante, Geraldo Alckmin, ex-governador por três vezes e grande conhecedor do interior do estado. 

"O Alckmin é fundamental para o Haddad ganhar o interior do estado de São Paulo. E o Haddad tem que ter um discurso que chegue mais na população”, avalia Kerbauy.

Edição: Rodrigo Durão Coelho