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Argentina promove corte de gastos para cumprir meta com FMI

Decisão é criticada por movimentos populares e faz partido abandonar bloco governista na Câmara

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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O Ministro da Economia Sergio Massa e o presidente Alberto Fernández em reunião para avaliar medidas econômicas no início de agosto. - Presidência Argentina

O Ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, promoveu um corte de gastos de 128 bilhões de pesos (R$ 4,8 bilhões) no orçamento público que será executado no que resta deste ano. Os cortes afetam as pastas da saúde, educação, transporte, moradia e desenvolvimento produtivo para pequenas e médias empresas. São 210 bilhões de pesos (R$ 7,9 bilhões) de redução do orçamento, e aumento orçamentário de 82 bilhões de pesos (R$ 3,08 bilhões) em assistência social e serviços econômicos.

O corte foi anunciado como um reordenamento de contas em que "sobravam" recursos para 2022, com o objetivo de controlar gastos diante da difícil meta de manter o déficit fiscal abaixo do teto de 2,5 pontos do PIB até dezembro, conforme acordado com o Fundo Monetário Internacional (FMI).

As medidas foram anunciadas antes de uma tentativa de assassinato da vice-presidenta Cristina Kirchner chocar o país. Milhares de manifestantes tomaram as ruas em defesa da democracia após o presidente Alberto Fernández decretar feriado na sexta-feira, dia 2 de setembro.

Medidas antipopulares

A bateria de medidas orçamentárias, anunciadas na semana passada, provoca divisões na coalizão peronista que está no governo. Assim, a coalizão Frente de Todos encara contradições que põem em xeque o caráter nacional e popular da legenda e levanta a pergunta: o governo se desvia da promessa de atender, primeiro, os últimos?

Para os movimentos sociais e sindicalistas, a questão fundamental está na postura diante da dívida com o FMI. "O governo priorizou os acordos e metas com o FMI antes da necessidade da população", aponta o integrante da Frente de Organizações em Luta (FOL) Carlos Fernández.

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"Ou se cumpre com o povo ou com o FMI. É algo que nossa geração, especialmente a militante, sabe bem. As receitas do FMI, mesmo que sejam um tanto disfarçadas, são sempre as mesmas. É típico e o mesmo que estão pedindo agora: ajustar o déficit fiscal e cortar os gastos", descreve Carlos, destacando que o setor popular já prevê que o próximo ajuste pode recair sobre as aposentadorias.

Na quarta-feira (31), o dirigente Juan Grabois, do partido Frente Pátria Grande, anunciou a saída da legenda do bloco da Frente de Todos na Câmara dos Deputados. "Nos defraudaram e nos decepcionaram", afirmou ao jornal Página 12.

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O governo federal, por sua vez, reforçou um dos auxílios sociais mais importantes da Argentina, o Auxílio Universal por Filho, em 20 mil pesos (R$ 750). A medida foi classificada como "insuficiente" por Grabois. "Esqueceram, como sempre, dos que não têm nada de nada, dos jovens abandonados, os indigentes, os sem terra, teto e trabalho", disse, sem apontar nomes de culpados, mas elogiando as gestões de Cristina Kirchner (2007-2015). "Cristina reduziu a pobreza e a indigência", destacou.

Os programas sociais representam um auxílio importante em um contexto de alta inflação, prevista para 90% neste ano, segundo o Banco Central. Em julho, a inflação mensal foi de 7,4%, o valor mais alto em 20 anos.

"Hoje, os programas sociais de complemento do emprego, mal chamados ‘planos sociais’, representam muito menos do PIB do que há dois anos", destaca Carlos Fernández. "Aproveitam para deixar que a própria inflação faça o ajuste e, de alguma maneira, liquidam do orçamento total o que representa em termos do PIB."


O presidente Alberto Fernández e sua vice Cristina Kirchner / AFP

Decisões ingratas

Em setembro começa a ser executada outra política de ajuste anunciada pelo ministro logo depois de sua posse na pasta da economia: a extinção gradual de subsídios em serviços de água, luz e gás para setores de renda média e alta.

As medidas de ajuste, incrementadas com os últimos anúncios, são consideradas um aceno ao FMI nas vésperas da primeira viagem internacional de Massa. Na próxima quarta-feira (6), o Ministro da Economia desembarcará nos Estados Unidos em busca de investimentos para setores considerados estratégicos pelo governo: energia, gás, agroindústria, mineração, turismo e indústria do conhecimento.

A equipe econômica argentina irá a Washington e Houston para reunir-se com entidades financeiras – o FMI, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento – e com empresas investidoras, como Volkswagen, Amazon e as mineradoras Rio Tinto e Livent.

A escolha de Massa para o Ministério da Economia representou, para a Frente de Todos, um consenso entre a ala kirchnerista e albertista de assumir as políticas de ajuste necessárias para cumprir o acordo com o FMI e credores privados.

"A Argentina está na mesma situação de muitos outros governos que são progressistas, mas não têm os recursos para tomar decisões políticas progressistas", ressalta o consultor e analista político Facundo Cruz, contextualizado que o alto déficit fiscal – ou seja, o gasto maior que a entrada – era um problema já quando Alberto Fernández assumiu a presidência, no contexto da dívida contraída pelo seu antecessor Mauricio Macri.

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"Se o governo atual não tem os recursos para aplicar políticas progressistas ou de redistribuição, e ainda tem um compromisso de uma dívida com um órgão internacional que o obriga a cortar o gasto público, todas essas condições fazem com que a Frente de Todos se defina como um governo nacional e popular, mas suas medidas econômicas não sigam essa direção", conclui Cruz.

Nesse sentido, o analista político destaca que as medidas antipopulares são sabidamente caras ao peronismo. "A escolha de Massa foi uma clara intenção de buscar uma solução política com um dirigente político de peso dentro da Frente de Todos para tomar decisões econômicas ingratas."

Há poucos meses para o fim do ano, há pouca margem para o cumprimento da meta de teto de 2,5 pontos do PIB para o déficit fiscal de 2022. Da viagem de Massa aos EUA, poderão sair novas possibilidades de aumento das reservas do Banco Central e um possível crédito do Fundo de Resiliência e Sustentabilidade do FMI – com prazos mais folgados para devolução. A questão que fica é se a população poderá suportar mais ajustes em prol do pagamento da dívida macrista e se, efetivamente, a eleição do ano que vem pode resultar no retorno do mesmo macrismo ao governo.

Facundo Cruz destaca a possibilidade de que o governo consiga baixar a inflação, atualmente flutuando entre 6 e 7% na variação mensal, a uma média de 3%, como uma esperança eleitoral. "Se o ministro Sergio Massa conseguir essa melhoria, chegaria a um melhor posicionamento para a eleição do ano que vem", afirma o analista.

Edição: Thales Schmidt