Coluna

Tempo de eleição é o momento de debater a crise do capitalismo contemporâneo?

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O capitalismo contemporâneo não absorve a força de trabalho, que passa a ser uma massa sobrante não funcional à acumulação - Gabriela Moncau
Está aberto edital sobre mudanças na economia e política mundiais e seus impactos nos trabalhadores

por Olivia Carolino Pires

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Estão em curso as eleições no Brasil. Uma verdadeira jornada pelo futuro da nação em que as atenções internas e os olhares do mundo estão voltados ao pleito que deve decidir a presidência do país, eleger governadores e cargos do legislativo. As forças progressistas e democráticas da sociedade brasileira enxergaram na elegibilidade de Lula a possibilidade de alijar do poder as forças fascistizantes. A esquerda vislumbra e trabalha para construir um efervescente movimento político em torno da candidatura Lula, organizando aquela que será a base social das transformações no Brasil para derrotar o fascismo, enfrentar a fome, o desemprego e a violência.

Como se estivéssemos reféns da gravidade da situação política e econômica no Brasil, as análises são de curtíssimo prazo e os cenários políticos desenham tão somente um plano "A": eleger Lula no primeiro turno.

O Instituto Tricontinental de Pesquisa Social existe com o propósito de convidar as forças progressistas da sociedade e, principalmente, a militância, a refletir para além do imediato, promover História e sistematizar o pensamento crítico de esquerda.

Nesse momento, está aberto um edital público do Instituto Tricontinental para premiação de pesquisas, com o objetivo de incentivar a produção de trabalhos originais que serão desenvolvidos a partir do Observatório do Capitalismo Contemporâneo, investindo em análises mais profundas relacionadas às mudanças na economia e política mundiais e seus impactos sobre a classe trabalhadora, em especial, nos países do Sul Global, com destaque para o Brasil.

O Campo Democrático e Popular tem caracterizado a atual crise enquanto uma crise estrutural de padrão de acumulação capitalista que se articula com a crise social, política, ecológica e sanitária. Além disso, com a pandemia impulsionada pelo coronavírus, adentramos em uma nova época, em que se aprofundou as dimensões da crise e o caráter predatório da acumulação capitalista, que temos chamado no Instituto de CoronaChoque.

O desafio tem sido cada vez mais desenvolver a relação entre as crises que se expressam em diferentes dimensões e que se articulam de maneira global, promovendo uma verdadeira ofensiva imperialista sobre os povos e o planeta.

O capitalismo ingressou numa fase de ofensiva mundial contra a classe trabalhadora por meio da retirada de direitos historicamente conquistados e da desorganização das relações de trabalho, lançando os trabalhadores/as ao desemprego, à informalidade e à precariedade. A ofensiva se dá também na disputa do Estado, tanto na dimensão política, adequando o Estado nacional e instituições às exigências da acumulação do capital financeiro - por meio de mudança dos marcos legais - quanto na dimensão econômica, com a privatização de empresas estatais e na disputa da mais valia social com o processo de privatização e capitalização de fundos públicos, além da securitização dos direitos sociais.

A pilhagem de bens naturais e a militarização é outra dimensão estratégica nessa ofensiva do capital, que se traduz concretamente nas disputas por territórios e apropriação privada de fontes energéticas mundiais como petróleo, eletricidade, minérios, terras, águas e biodiversidade, agravando a dimensão ecológica e sanitária da crise. Outro elemento da ofensiva imperialista é o controle social das massas, com a utilização cada vez maior de sistemas digitalizados a nível global que se baseiam na coleta, no processamento e na análise de dados, seja para o aumento de lucros e do consumo, seja para a desmobilização da população.

Levando em conta esse cenário, o escritório Brasil do Tricontinental propõe a seguinte indagação: quais são as alternativas para os países do Sul Global que apontem para um processo autônomo de desenvolvimento em tempos de dominância financeira?

Compreendemos a financeirização como um fenômeno inerente à lógica do capital. No entanto, desde a década de 1970, há uma proliferação de instituições financeiras mundiais (fundos de pensão, seguradoras, planos de previdência) que permite que a classe rentista se coloque socialmente e direcione as políticas de Estado, garantindo os interesses do capital financeiro, bem como sua expansão, desregulamentação das relações do trabalho, transnacionalização produtiva, abertura para capitais especulativos, privatizações e expansão das dívidas públicas.

Nesse sentido, a crise atual aponta para mais intervencionismo estatal em países centrais, procurando sanar esses impactos da financeirização sobre suas economias. Além do mais, há uma tendência em abandonar receitas de austeridade e utilizar políticas fiscais fortemente expansivas para responder à crise. Por outro lado, os países periféricos do Sul Global estão tomando medidas que ampliam as políticas de austeridade e, consequentemente, aprofundam as relações desiguais entre países do centro e dependentes.

Outro fator que aumenta essa relação desigual é o fato das medidas de isolamento social em diversos países terem atingido diretamente a produção. Esse processo de interrupção das cadeias globais de suprimentos e de mercadorias tem levado os países do centro capitalista a reavaliar a forma de distribuição das cadeias produtivas, uma vez que a pandemia mostrou a fragilidade dessa forma descentralizada de organização do processo produtivo.

Por parte dos países imperialistas, há uma corrida pelo chamado "salto tecnológico", uma das saídas clássicas das crises na perspectiva do capital. Nesse momento, o imperialismo está numa busca acelerada por novos paradigmas tecnológicos. Já para os países da periferia do capitalismo, identifica-se a tendência de um deslocamento da produção industrial de ponta para a Ásia, fazendo com que países dependentes, como Brasil, fiquem cada vez responsáveis por postos mais baixos das cadeias produtivas globais.

Além de examinar os impactos da desindustrialização, reprimarização e financeirização na estrutura produtiva no Sul Global e as alternativas a esse modelo, também estamos convidando que os/as pesquisadores/as interessados reflitam os impactos sobre a classe trabalhadora, as transformações no mundo do trabalho e sindical e suas alternativas.

Partimos da compreensão que a crise no capitalismo contemporâneo revela uma situação paradoxal: o desenvolvimento tecnológico se mostra incompatível com o próprio capitalismo. As mudanças de paradigma tecnológico, como a chamada tecnologia 4.0 e a tecnologia 5G, criam uma tendência em eliminar postos de trabalho. Essa não é apenas uma mudança na estrutura ocupacional e na geração de trabalho ou emprego; trata-se da eliminação do trabalho vivo no processo produtivo capitalista. O capitalismo contemporâneo, nesta lógica tecnológica, com esse nível de concentração e jornadas de trabalho atuais, não absorve a força de trabalho, que passa a ser uma massa sobrante não funcional à acumulação capitalista.

Desse modo, a crise atual nos empurra a outra esfera de reflexão: não se trata apenas da disputa do futuro e destino do trabalho, mas da defesa da vida dos trabalhadores/as, à medida em que a massa sobrante é um contingente apto a ser eliminado pelo vírus, pela fome ou pela migração forçada. Essa situação produziu uma nova correlação de forças na luta de classes e uma nova estruturação do Exército Industrial de Reserva: há contingentes cada vez maiores de desempregados que sequer compõem essa reserva de força de trabalho, configurando uma espécie de "superprodução da mercadoria força de trabalho", que, segundo a lógica do capital, também precisa ser eliminada para propiciar novos ciclos de acumulação.

A massa de trabalhadores sobrantes intensifica a exploração do trabalho nos países dependentes. No caso do Brasil, a população negra é o principal elemento que compõe as fileiras dos desempregados. Cria-se, assim, uma contradição no seio da classe trabalhadora, pois as classes dominantes reforçam a cultura racista e patriarcal para colocar em oposição trabalhadores e trabalhadoras, proletários pretos e brancos, nacionais e estrangeiros, reforçando assim os mecanismos de superexploração do trabalho.

No capitalismo dependente, a competitividade das empresas se baseia na superexploração da força de trabalho como forma de compensação da transferência de valores produzidos na periferia para o centro.

Enquanto a solução do capital para a crise social é o encarceramento em massa e o genocídio da juventude negra e periférica, a classe trabalhadora tem desenhado o papel do Estado enquanto instrumento de reindustrialização, geração de empregos e o aumento do salário mínimo, por exemplo. Para tanto, é imprescindível um movimento de massas ativo e enraizado na sociedade.

O Tricontinental Brasil está preocupado em fomentar pesquisas que reflitam sobre quais são as alternativas de organização da classe trabalhadora hoje. Acreditamos que é preciso identificar os principais aspectos que contribuem para o novo condicionamento e reconfiguração do mundo do trabalho sob o modo de produção capitalista neste primeiro terço do século 21.

Outro tema para o qual temos voltado a atenção em nossas pesquisas é o avanço do conservadorismo e do fascismo em escala global. Entendemos que o fascismo do século 21 possui uma base econômica, não se resumindo a uma questão ideológica ou uma resposta irracional à crise econômica. Se o fascismo do século passado fez uma fusão do poder político com o capital nacional, o fascismo de hoje - ou neofascismo - tenta fazer uma fusão do poder político com o neoliberalismo e suas políticas antinacionais, ainda que de forma contraditória, dado que o discurso se assenta no nacionalismo e no populismo.

É interessante notar que nos países em que o neofascismo ganhou maior expressão, constata-se uma diminuição da participação da população nas eleições. A ofensiva sobre a cultura da classe trabalhadora favorece o autoritarismo e a fascistização da sociedade. É uma guerra ideológica que se dá por meios híbridos, uma combinação da guerra convencional com métodos de guerra para provocar o caos.

O edital de premiação de pesquisas do Tricontinental está aberto até o dia 05 de outubro. Nesse momento em que muitas coisas estão em jogo no Brasil, convidamos a todas e todos que possam se interessar a se desafiar na trincheira da Batalha de Ideias a engajar-se na produção de conhecimento que amplie o horizonte de nossas ações.

*Olívia Carolino Pires é pesquisadora, militante da organização Movimento Brasil Popular e integra a coordenação do Projeto Brasil Popular. Bacharel em economia, mestra em Desenvolvimento Econômico, na área de História Econômica e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires