Sem modos

MBL recua em autocrítica e volta a rebaixar o debate político para promover novas candidaturas

Candidatos do movimento apostam em vídeos que culminam em violência e polêmicas, sem aprofundar debates

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Renato Battista é ex-chefe de gabinete de Arthur do Val, o Mamãe Falei - Foto: Divulgação/Instagram

Em 13 de setembro de 2019, o vereador Fernando Holiday (Novo) ainda pertencia aos quadros do Movimento Brasil Livre (MBL), quando deu uma entrevista ao Brasil de Fato falando sobre o processo de autocrítica do grupo e o recuo de determinados métodos para alcançar a midiatização das pautas que defendiam.

“O MBL não tem exatamente recuado de posicionamento, de ideias. Continuamos defendendo diversas delas. A autocrítica, ela veio justamente na forma como defendíamos essas pautas, atacando e demonizando os adversários, o que acabou ajudando a alimentar uma direita radical e truculenta, que não gosta de diálogo nem mesmo dentro dos espaços que foram feitos para o diálogo, como o Congresso Nacional. Quando vimos o que tínhamos alimentado, fizemos essa reflexão”, disse Holiday, que mais tarde, em 28 de janeiro de 2021, anunciou sua saída do MBL.

Meses antes, em 3 de setembro de 2019, o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil - SP), fundador e líder do movimento, em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, também falou sobre o recuo do MBL.

“Para mim, na época do impeachment e do governo Temer, o principal erro do MBL foi ter misturado as pessoas de esquerda que tinham contato com o poder, haviam cometido crime e estavam mal-intencionadas com quem simplesmente era de esquerda e discordava da gente. Isso apequenou a nossa visão do debate, apequenou o debate público, muito catalisado por essa lógica de visibilidade, do espetáculo. Ainda hoje, mas ainda mais na época do impeachment, a briga chama mais a atenção do que a construção e o consenso”, afirmava Kataguiri.

Três anos depois, o movimento parece ter recuado da autocrítica e voltou a apostar na “lógica da visibilidade, do espetáculo” e “apequenando o debate público”, como dizia Kataguiri em 2019.

Para alavancar candidaturas desconhecidas da população e sem trajetória na política, o MBL tem apostado num método antigo do grupo, que consiste em ir às ruas interpelar antagonistas políticos, à esquerda e à direita, sobre suas bandeiras. Sempre gravando, o integrante do grupo argumenta, por vezes grita, até provocar uma reação violenta do “entrevistado”, o que gera maior visibilidade às produções nas redes sociais.

Nas manifestações do último dia 7 de setembro, convocadas pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), Amanda Vettorazzo (União Brasil-SP) e Cristiano Beraldo (União Brasil-SP), integrantes do MBL que disputam uma vaga para deputado estadual e federal, respectivamente, foram às ruas produzir vídeos provocando bolsonaristas.

Conseguiram enfurecer o deputado estadual Gil Diniz (PL-SP), bolsonarista de primeira fileira na Assembleia Legislativa paulista, perguntando sobre o Orçamento Secreto. Durante a briga, Beraldo começa a gritar que o segurança do parlamentar estaria armado. Nas imagens, não é possível ver a arma. O episódio foi narrado nos principais sites do país, alavancando a campanha do integrante do MBL.

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Em outro vídeo, Vettorazzo vai até uma caminhada da campanha de Fernando Haddad (PT), candidato ao governo de São Paulo, para lhe entregar um certificado de “pior prefeito de São Paulo (capital)”. Quando se aproxima do petista e abre o papel é afastada do local e reage gritando com militantes do partido, que revidam e participam da balbúrdia desejada pelo movimento.

Candidato a deputado estadual e integrante do MBL, Guto Zacarias (União Brasil – SP) foi até um evento da candidata a deputada federal Sônia Guajajara (PSOL-SP), na avenida Paulista, região central da capital paulista, e a questionou pelo uso do Fundo Eleitoral para produzir sua campanha, direito garantido pela lei eleitoral brasileira.

Após a insistência de Zacarias, apoiadores de Guajajara reagem e começa mais uma cena de troca de empurrões, ofensas e baixaria. Tudo devidamente registrado pelo celular do integrante do MBL.

Renato Battista (União Brasil-SP) é candidato a deputado federal e ex-chefe de gabinete de Arthur do Val, fundador do MBL que teve o mandato de deputado estadual cassado em São Paulo, pela Assembleia Legislativa do estado. O ex-parlamentar ganhou fama nas redes sociais por produzir exatamente esse tipo de conteúdo, que agora volta à agenda do MBL.

Sucessor de Do Val, Battista foi provocar Guilherme Boulos (PSOL-SP), em um ato de campanha, sobre o uso do Fundo Eleitoral, e quase teve o celular derrubado por um simpatizante do pessolista.
 



 

O nível de superficialidade

“Essa estratégia está centrada no esvaziamento do debate político de sua profundidade em função da reprodução automática e irrefletida de determinados discursos em uma espécie de ‘memetização’ do espaço político. Movimento que reduz o espaço da defesa de ideias e propostas ao nível da superficialidade dos confrontos e das polêmicas em torno de especificidades questionáveis”, explica Flávio Casimiro, autor dos livros Nova Direita: aparelhos de atuação política e ideológicano Brasil contemporâneo, de 2018, e A Tragédia e a Farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo, de 2020, ambos pela editora Expressão Popular.

Para Casimiro, as ações recentes do grupo miram no objetivo de afastá-los da aliança com Bolsonaro, pactuada em 2018. “Mas isso não representa, em nenhuma medida, uma efetiva divergência ideológica entre o MBL e o Governo Bolsonaro. Ambos possuem uma afinidade visceral do ponto de vista ideológico e programático. Ambos reproduzem discursos reacionários, de antipolítica, e ressignificação do papel do Estado, principalmente em seu âmbito social. A relação de membros do governo e do MBL com outras organizações da nova direita, como o exemplo do Instituto Mises Brasil, consiste em mais uma demostração dessa afinidade diante dos pressupostos da Escola Austríaca de Economia, do neoliberalismo e do libertarianismo”, explica o autor, que é doutor em História Social e professor de Economia Política do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-Riograndense (Ifsul).

Procurado, o MBL preferiu não se manifestar sobre os temas abordados na matéria. Confira na íntegra a entrevista com o escritor Flávio Casimiro.

Brasil de Fato: A partir de sua pesquisa, como o senhor avalia o método adotado pelo MBL para alavancar suas candidaturas nas eleições 2022?

Flávio Casimiro: Essa estratégia de atuação do MBL nos remete a algumas considerações importantes. Primeiramente, o Movimento Brasil Livre se constitui como uma organização do conjunto dessa nova direita brasileira, que se caracteriza como uma espécie de plataforma de projeção política e midiática de seus integrantes.

Mesmo o MBL apresentando em seu portal e em suas publicações um determinado conjunto coeso de diretrizes, alicerçadas em preceitos conservadores, neoliberais e libertários, o que realmente parece definir a sua estratégia de ação, é essa busca de autopromoção midiática, por parte de seus integrantes, principalmente por meio desse tipo de vídeo polêmico. Sua existência e representatividade é alimentada por esse tipo de ação.

Esse modus operandi característico do MBL, que se define por uma forma irreverente e mesmo agressiva de abordagem, como observada nos vídeos do movimento nessas eleições de 2022, que busca justamente a desmoralização do interlocutor, tem por objetivo, como já afirmado, a promoção de seus integrantes como representantes de uma suposta alternativa “verdadeiramente antisistêmica”. Dessa forma, o MBL, desde sua concepção, tem reproduzido essa receita que, em grande medida, funcionou para a projeção midiática, assim como projetou politicamente alguns de seus integrantes em eleições anteriores.

Mas houve uma autocrítica em 2019 sobre exatamente esse tipo de comportamento, não?

A estratégia atual de confrontar integrantes dos dois polos principais na disputa eleitoral, da mesma forma que a espécie de meia culpa ou “autocrítica” apresentada pelo MBL, onde afirmava que se sentia responsável pelo rebaixamento do debate político no país, representam uma tentativa deliberada de deslocamento da imagem do movimento em relação aos desgovernos da extrema-direita bolsonarista. Dessa forma o movimento tenta aparecer como uma via alternativa diante da polarização política.

Mas isso não representa, em nenhuma medida, uma efetiva divergência ideológica entre o MBL e o Governo Bolsonaro. Ambos possuem uma afinidade visceral do ponto de vista ideológico e programático. Ambos reproduzem discursos reacionários, de antipolítica, e ressignificação do papel do Estado, principalmente em seu âmbito social.

A relação de membros do governo e do MBL com outras organizações da nova direita, como o exemplo do Instituto Mises Brasil, consiste em mais uma demostração dessa afinidade diante dos pressupostos da Escola Austríaca de Economia, do neoliberalismo e do libertarianismo. As direitas brasileiras não se constituem como um bloco homogêneo, elas são constituídas por distintas frações de classe e, por sua vez, diferentes expressões no conjunto das direitas, carregam contradições e interesses específicos.

Por outro lado, esses diferentes estratos de classe, independentemente de seus interesses e concepções teórico-políticas, também constróem relações articuladas em torno de projetos comuns, alinhando-se em determinadas condições histórico-sociais concretas, no sentido de garantir sua posição em um determinado projeto de hegemonia e garantir seus interesses mais imediatos de ordem econômico-corporativa. É nesse sentido que devemos compreender os movimentos de aproximação e ou as tentativas de deslocamento do MBL em relação ao projeto da extrema-direita. Assim, o MBL busca se manter e atualizar sua atuação no jogo de forças no interior da nova direita e, mesmo defendendo os pressupostos conservadores tradicionais do conjunto das direitas, se apresenta como uma alternativa supostamente “crítica”, “irreverente” e, acima de tudo, “antissistêmica.”

O senhor entende que, mais uma vez, o MBL está cooperando para o rebaixamento do debate político?

O modo de atuação do MBL foi elaborado para a desmoralização do interlocutor ou do público que está sendo abordado, como um mecanismo de ataque a um determinado projeto político. A maneira como a narrativa é construída, a abordagem aparentemente irreverente, mas, ao mesmo tempo, agressiva, com a repetição sistemática de determinados pressupostos que, mesmo sendo absolutamente discutíveis, são apresentados como inquestionáveis, são algumas das características dessa atuação que tem por finalidade o potencial de repercussão das polêmicas.

Esse tipo de vídeo, assim como outras estratégias similares desenvolvidas pelo MBL, que são sistematicamente reproduzidos em diferentes tecnologias de comunicação, partem de uma suposta crítica irreverente e tentam construir essa imagem “destemida”, como recurso para se aproximar do seu público-alvo, que concentra-se, principalmente, entre os jovens.

O fato é que o movimento busca, por meio desses recursos, a desmoralização desses candidatos, assim como a sua autopromoção midiática e política. Essa estratégia está centrada no esvaziamento do debate político de sua profundidade em função da reprodução automática e irrefletida de determinados discursos em uma espécie de “memetização” do espaço político. Movimento que reduz o espaço da defesa de ideias e propostas ao nível da superficialidade dos confrontos e das polêmicas em torno de especificidades questionáveis.

Não há o efetivo espaço do contraditório, além disso, obviamente, que diante das edições por que passam o material, são levados ao produto final apenas as manifestações que alimentam a própria estratégia de desmoralização. É um mecanismo de atuação política e ideológica que se alimenta do vexatório e do polêmico.

Muitos desses vídeos são impulsionados pela tentativa de debater o uso do Fundo Eleitoral. Por que essa é uma pauta cara para esse setor?

A estratégia que estrutura a produção desses materiais, consiste na exploração da polêmica e no esvaziamento do debate político. Nesse sentido, a ideia do Fundo Eleitoral para os partidos políticos é apresentada como se fosse uma imoralidade, como uma espécie de apropriação imoral de recursos públicos.

Isso é acintosamente apresentado como algo pressuposto, como uma “verdade” estabelecida e inquestionável. Assim, legitima-se o ataque aos políticos por uma suposta prática imoral, diante do uso deliberado de um recurso público, que supostamente deveria ser convertido para outra finalidade mais “nobre”. Ou seja, uma abordagem equivocada, absolutamente questionável, porém apresentada como se representasse uma verdade socialmente aceita.

Não há o efetivo espaço para o contraditório. Não abre-se a possibilidade da discussão em torno do Fundo Eleitoral, (resguardadas as críticas e considerações sobre o fundo) como uma garantia de participação política aberta para todos os partidos, que, sem a garantia do fundo, ficariam à merce das doações privadas, que privilegiam determinados políticos e partidos, diante de interesses privados.

O fato é que o MBL sabe muito bem qual é a finalidade desse fundo, mas sua crítica concentra-se (muito mais do que em um debate de ordem moral) na possibilidade de autopromoção, com a desqualificação desses partidos e candidatos. Trata-se de um recurso estratégico que induz a construção de uma imagem de imoralidade de seus oponentes. Isso fica muito evidente no vídeo com a abordagem do representante do MBL sobre a candidata a Deputada Federal por São Paulo, Sônia Guajajara, do PSOL.

Edição: Rodrigo Durão Coelho