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Trunfo de Bolsonaro, leilão 5G é criticado pelo TCU e especialistas: "chance perdida"

Licitação foi repleta de irregularidades; país poderia ter ganho mais e garantido serviço melhor

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Bolsonaro e o Ministro das Comunicações, Fábio Faria - Evaristo Sá / AFP

Em seu plano de governo, o presidente Jair Bolsonaro (PL) defende que o leilão do 5G que seu governo realizou teve uma "rápida decisão" e coloca o Brasil no caminho do desenvolvimento tecnológico. Mas a licitação que repartiu o uso da tecnologia para o mercado brasileiro foi duramente questionada pela área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) e pesquisadores do tema afirmam que o processo foi apressado e sem rigor técnico. Além disso, a pressa com que foi conduzido o processo fez o Brasil perder a oportunidade de ganhar mais e assegurar um serviço de qualidade melhor, segundo especialistas.

Previsto inicialmente para o primeiro semestre de 2020, e depois adiado para o primeiro semestre de 2021, o leilão do 5G aconteceu de fato em novembro do ano passado. Por R$ 47,2 bilhões, quatro faixas de radiofrequências (700 MHz, 2,3 GHz, 3,5 GHz e 26 GHz) foram arrematadas. As operadoras Claro, Vivo e TIM levaram o lote principal.

Dos R$ 47,2 bilhões do leilão, estão previstos que R$ 7,4 bilhões serão pagos para o Governo Federal pelo direito de explorar as frequências. O restante será investido em contrapartidas e investimentos em infraestrutura definidos pelas regras do edital, como conectividade em escolas e rodovias. 

Na ocasião, o ministro das Comunicações, Fábio Faria, afirmou em sua rede social que o "leilão fez história" e que "o futuro chegou". Bolsonaro, em live ao lado do ministro, disse que a nova tecnologia permitirá que os indígenas possam "mostrar a verdade do que acontece na Amazônia para a Europa". 

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Questionamentos 

Ainda que o regulamento do edital estavam sendo discutidas na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) desde fevereiro de 2018, afirma o acórdão do TCU sobre o leilão, essas regras foram criticadas pela área técnica do TCU que assessora o órgão em suas decisões.

Responsável pela área de telecomunicações do TCU, a SeinfraCOM fez críticas tanto ao conteúdo quanto à forma como o assunto foi deliberado no organismo de controle da máquina pública. Nos primeiros documentos enviados pela Anatel, a SeinfraCOM afirmou ter encontrado "diversos indícios de ilegalidade" e "oito incompletudes relevantes" com o valor estimado em "pelo menos" R$ 28,4 bilhões.

Após o questionamento dos técnicos, o acórdão afirma que parte das dúvidas foi sanada por novos documentos enviados pela Anatel, mas destaca que haveria então um prazo do regimento do TCU de 75 dias para a análise das novas informações. Mas houve uma reunião com os ministros do TCU "em que foram abordadas as expectativas quanto aos prazos para conclusão da fiscalização" e solicitado um prazo de 20 dias para a área técnica.

Técnicos e ministros acabaram por chegar a um meio termo, com os primeiros aceitando um prazo de 44 dias, ou seja, 41% menor do que o previsto nas instruções normativas do TCU.

Dólar desatualizado e taxas mais generosas do que as da própria indústria

A SeinfraCOM questionou uma série de escolhas do edital. Por exemplo: a Anatel calculou a precificação em território brasileiro com base nos valores obtidos em outros leilões similares, ocorridos em países como  Austrália, Finlândia, Grécia, Tailândia e Tawain. Não houve qualquer justificativa para a inclusão desses países — e o Brasil sequer reconhece Taiwan como nação independente.

Além disso, os países tiveram diferentes metodologias ao se fazer o câmbio de suas moedas para o real. Enquanto para Tailândia e Taiwan foi usada a cotação de taxa de câmbio de mercado, para os outros países foi usada a taxa de paridade de poder de compra calculada pela OCDE de 2020. Essa taxa, todavia, foi calculada com um dólar bem diferente daquele da época da elaboração do documento. Enquanto a OCDE fez suas contas com um dólar a R$ 2,362, o Banco Central estimava um dólar na casa dos R$ 5 para os próximos três anos em seus relatórios.

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A Anatel também precisou calcular a taxa de depreciação de torres e cabos de fibra óptica da infraestrutura do 5G. Esse tópico é especialmente sensível porque a nova tecnologia de conexão necessita de uma quantidade maior de torres do que o 4G.

A Anatel estimou uma vida útil de 25 anos para torres metálicas. Mas a SeinfraCOM descobriu em documento da União Internacional das Telecomunicações (UIT) que torres metálicas têm vida útil de até 30 anos.

Os cabos de fibra óptica têm uma situação semelhante. Enquanto a Anatel prevê uma vida útil de 5 anos, a UIT fala em 20 anos.

"Os efeitos de se adotar, por exemplo, uma vida útil de cinco anos para os cabos de fibra óptica no dimensionamento dos investimentos necessários em um projeto com duração estimada de vinte anos, consistem, essencialmente, na substituição de toda a infraestrutura de cabos de fibra óptica instalados por quatro vezes ao longo do projeto", destacou a SeinfraCOM.

Embora algumas das recomendações da área técnica terem sido adotadas, a taxa de depreciação ficou do jeito previsto inicialmente. No voto do relator, vencedor da votação no TCU, há a previsão de aperfeiçoamento do "cálculo de depreciação", "para as próximas precificações de outorga de uso de espectro".

Por sete votos a um, o plenário do TCU decidiu aprovar o edital do leilão. O único voto contrário foi do ministro Aroldo Cedraz.

As secretarias e áreas técnicas do TCU podem fazer recomendações, mas a decisão final nos julgamentos é dos ministros do Tribunal. São nove ministros e seis deles são indicados pelo Congresso Nacional, um, pelo presidente da República e dois são escolhidos entre auditores e membros do Ministério Público.

Dois dos ministros do TCU que votaram pela aprovação do edital, Augusto Nardes e Jorge Oliveira, foram meses depois condecorados com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito pelo governo Bolsonaro.

Antes de ser ministro do TCU, Oliveira foi subchefe de Assuntos Jurídicos e ministro da Secretaria Geral no início do mandato de Bolsonaro.

A advogada especialista em telecomunicações Flávia Lefèvre avalia que o Brasil "jogou fora" uma oportunidade de conseguir melhores contrapartidas das operadoras e arrecadar mais dinheiro com um leilão apressado e sem rigor técnico.

"Ela [a licitação] foi feita com interesse eleitoreiro, de poder usar para dizer que o governo Bolsonaro fez o 5G, etc e tal. Porque as contrapartidas exigidas são absolutamente pífias diante do valor que essas frequências têm e da demanda que o Brasil tem por infraestrutura", diz a integrante da Coalizão Direitos na Rede.

Lefèvre traz o exemplo da educação remota durante a pandemia de covid-19, quando as aulas presenciais foram substituídas por lições pela internet. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios, enquanto na classe A apenas 11% relatam usar a internet exclusivamente pelo celular, nas classes D e E esse número é de 85%. Enquanto 51% dos brancos afirmam usar a internet apenas pelo celular, esse número é maior entre negros (65%) e indígenas (75%).

A internet exclusivamente pelo celular pode estar condicionada pelos planos das operadoras, que costumam oferecer pacotes de dados que privilegiam redes sociais e assim influenciam as informações que os usuários podem acessar.

"Nós jogamos [fora] uma oportunidade de conseguir mais investimentos, proporcional ao valor dessas frequências, e pelo tempo que elas foram contratadas, ignorando a demanda que a gente tem, e os efeitos da falta de infraestrutura para a população brasileira, como ficou claro na pandemia, então é gravíssimo", diz a advogada.

O que diz a Anatel e o Ministério das Comunicações?

Procurada pelo Brasil de Fato, a Anatel afirmou por meio de sua assessoria de imprensa que "os pontos suscitados pela SeinfraCOM e os correspondentes esclarecimentos prestados pela Anatel foram objeto de apreciação pelo Plenário do Tribunal de Contas da União nos autos do TC 000.350/2021-4, tendo sido o processo devidamente analisado e aprovado pelo Tribunal de Contas, nos termos da legislação vigente, conforme Acórdão 2032/2021-TCU-Plenário e nas declarações de Voto dos Ministros daquele Tribunal."

Já o Ministério das Comunicações disse por meio de nota enviada ao Brasil de Fato que as "questões levantadas pela área técnica (SeinfraCOM)" foram "discutidas e resolvidas no âmbito da Agência e do Ministério das Comunicações (MCom)".

"O TCU autorizou a proposta para o Leilão do 5G em setembro daquele ano e o certame foi realizado em novembro [de 2021]. O valor arrecadado superou as expectativas previstas pelo MCom chegando a R$ 47 bilhões com o arremate de 85% das faixas de radiofrequência disponibilizadas", diz o Ministério das Comunicações.

Edição: Rodrigo Durão Coelho