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A luta segue: povos e comunidades tradicionais devem ser contemplados por uma política nacional

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Quilombola de Serra do Apon (PR), Dona Vani é uma importante guardiã de sementes crioulas - Jaqueline Andrade / Terra de Direitos
Medidas do governo Bolsonaro expõem ainda mais os territórios e conhecimentos tradicionais

Neste 03 de outubro, em que é celebrado o Dia Nacional da Agroecologia, há muito a celebrar, mas principalmente reivindicar. São tempos de luta e organização popular.

As práticas culturais dos povos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais, muitas vezes não estão atreladas com a agroecologia, mas é através dos conhecimentos tradicionais que se revela que os modos ancestrais de produzir e conviver com a natureza compreendem os pilares do que recentemente na história conhecemos por agroecologia. São, portanto, modos próprios desses povos e comunidades fazerem agroecologia. Compreendendo a agroecologia como algo coletivo, no trabalho em cooperação e mutirões, no respeito à natureza, aos ciclos, na guarda e reprodução das sementes crioulas.

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São os povos e comunidades tradicionais que protegem os biomas, as florestas, os rios, que possuem sabedoria para viver e conviver com a natureza. É através da sabedoria popular desses sujeitos, na compreensão das fases lunares, manejo das serras, das vazantes, da sabedoria medicinal sobre cascas, folhas, frutos, bulbos, raízes, do manejo adequado do solo e das pragas, do tempo certo e modo da limpa (como as roças-de-toco), plantio, colheita, da pesca e caça, pelas músicas, danças, hábitos alimentares, cultivo e proteção das sementes crioulas que se mantém e perpetua os territórios tradicionais e, logo, a preservação e conservação da biodiversidade.

A exemplo da quilombola Dona Vani Rodrigues dos Santos, residente na Comunidade Quilombola Serra do Apon, em Castro (PR), que aos 75 anos segue na luta pelo direito ao território tradicional, à alimentação saudável e à autonomia campesina pelo direito de plantar, em seu alto zelo e compromisso com a terra, com as sementes e os conhecimentos passados de geração em geração. Dona Vani, guardiã quilombola de sementes, comenta: “Meu pai guardava sementes. A gente aprendeu com o pai a guardar sementes. Era criança e o pai fazia isso. A minha semente é pura. Nasci e me criei aqui, nesta terra. Ainda estou na luta pela nossa terra e pra gente comer o que a gente planta”.

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Outro exemplo de modo de vida atrelados à conservação dos biomas são as feiras de sementes crioulas que são espaços para o intercâmbio de experiências entre povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares. Esses intercâmbios de saberes ocorrem por meio do diálogo entre os povos e comunidades tradicionais nos momentos de troca de sementes durante os eventos, por meio de oficinas, rodas de conversa, etc.

Esses conhecimentos tradicionais reunidos e perpassados ao longo das gerações é um conjunto de sistemas de adaptação/resistências e evolução de grande importância para a subsistência a longo prazo desses sujeitos. Sem esses conhecimentos tradicionais certamente a sociedade não teria o alcance do entendimento sobre diversas práticas da agricultura, formulação de medicamentos, manejo adequado das florestas, etc

Entretanto, a proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade vem enfrentando desafios, especialmente com o avanço da biopirataria praticada por empresas do ramo farmacêutico, cosmético, sementeiro e industrial alimentício. O

resultado da presença dessas empresas no interior dos territórios é a devastação da biodiversidade, desestruturação dos sistemas produtivos e das comunidades locais, integrando a população local a um sistema explorador e de apropriação ilegal da natureza e dos conhecimentos tradicionais.

O avanço da legislação brasileira sobre a proteção dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, ainda que com as normativas internacionais e nacionais fundamentais, ainda não significam a efetiva proteção à biodiversidade e aos direitos dos saberes em comum dos povos originários, quilombolas e tradicionais.

A situação de descaso e destruição promovida pelo governo de Jair Bolsonaro contra os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais é grave. Logo em suas promessas eleitorais o atual presidente já manifestava: "Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígenas ou para quilombola”. Além da promessa ser cumprida, a escalada de violência contra as populações do campo, águas e florestas aumentou exponencialmente nestes anos de governo.

Além disso, políticas públicas do campo tiveram orçamento profundamente reduzido. O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) atualmente Alimenta Brasil, Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) e Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos, por exemplo, tiveram reduções de orçamento acima de 50% nesses quatro anos.

Ainda, o governo Bolsonaro extinguiu ou esvaziou 75% dos conselhos e comitês nacionais mais importantes do Brasil. Órgãos que acolhiam representantes da sociedade civil para amparar iniciativas do governo. Esse desmonte da participação popular nas discussões sobre políticas públicas começou já num dos primeiros decretos do presidente, o Decreto n° 9.759/2019. Por meio dele foram extintos os conselhos que respondiam por povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores. Pela medida foram extintos o Conselho Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e a Comissão Nacional da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), que teve como objetivo a elaboração e acompanhamento de políticas que fortaleçam a Agroecologia no país.

Com o Decreto n° 10.253/2020 alguns destes espaços foram restabelecidos, como o CNPCT. Todavia, verificam-se inúmeras dificuldades para uma efetiva participação das organizações sociais nos processos de tomada de decisão política neste conselhos e comitês nacionais: pela assimetria de representação entre organizações da sociedade civil e poder público, ausência da efetivação da legislação, violação ao direito à informação, ou seja, obstaculiza-se a participação de forma qualitativa desses sujeitos da sociedade civil.

Ao compreender a importância do modo de ser, fazer e viver, as práticas e conhecimentos dos povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais para a produção de alimentos, manejo dos ecossistemas, formulação de medicamentos naturais, e logo para a salvaguarda da biodiversidade e do bem viver, estamos falando que as ameaças inerentes, seja pela prática da biopirataria, extinção ou esvaziamento de espaços de participação da sociedade civil, imposição de normativas que retira ou restringe direitos, põe em risco não só os territórios, mas também toda a sociedade.

Um novo governo precisa estar comprometido com o direito constitucional fundamental da alimentação adequada e saudável a todos os cidadãos; com a redução das desigualdades sociais através da promoção efetiva de políticas públicas de abastecimento e renda familiar como Bolsa Família/Auxílio Brasil, PAA, PNAE, Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos; com a titulação dos territórios quilombolas, demarcação das terras indígenas, reforma agrária

e regularização fundiária para os territórios dos povos e comunidades tradicionais. Bem como deve estar comprometido na garantia do acesso à água, sementes, crédito e acompanhamento técnico e extensão rural; na participação e poder de deliberação dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais em quaisquer assuntos que lhes afetam, especialmente na garantia da consulta prévia, livre e informada; na retomada de conselhos e comitês essenciais sobre políticas públicas para esses grupos; e com a agroecologia como modelo de agricultura incentivado e implantado pelo estado brasileiro.

*Jaqueline Andrade é assessora jurídica popular da Terra de Direitos.

**Claudia Sala de Pinho é articuladora da Rede dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil e Coordenadora da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira.

***A Terra de Direitos é uma organização de Direitos Humanos que atua na defesa, na promoção e na efetivação de direitos, especialmente os econômicos, sociais, culturais e ambientais (Dhesca). Criada em 2002, a Terra de Direitos incide nacional e internacionalmente nas temáticas de direitos humanos e conta com escritórios em Santarém (PA), em Curitiba (PR) e em Brasília (DF).

****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo