Direitos humanos

Copa do Mundo: a frenética contagem regressiva do Catar para um torneio cheio de controvérsias

As críticas da Hummel sobre o Catar não foram as primeiras e, conforme o torneio se aproxima, mais virão

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Local de retirada de ingressos em Doha - Giuseppe Cacace / AFP

Quando a seleção masculina de futebol da Dinamarca jogar na Copa do Mundo da FIFA neste inverno (no hemisfério Norte) no Catar, a camisa de seu uniforme não mostrará o nome e a logo de seu patrocinador, a marca de roupas esportivas Hummel. Uma das tiras que cobre a logomarca é toda preta e foi descrita pela Hummel como “a cor do luto”.

A empresa explicou o design inusual como uma referência direta às mortes de imigrantes que trabalhavam no setor da construção civil no Catar, bem como uma menção ao histórico bastante questionável do país árabe em direitos humanos. Uma postagem em rede social afirmou que “Nós não queremos ser vistos durante um torneio esportivo que custou a vida de milhares de pessoas”.

E acrescentou: “Apoiamos a seleção dinamarquesa ao longo do torneio, mas isso não é o mesmo de apoiar o Catar como país sede [da competição]”.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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As críticas da Hummel sobre o Catar não foram as primeiras e, conforme o torneio se aproxima, mais virão. Eric Cantona, ex-estrela do time inglês Manchester United, disse que não assistirá ao evento. Algumas cidades francesas baniram a exibição dos jogos em seus espaços públicos.

Todavia, a resposta do Catar à visão da empresa de material desportivo pareceu demonstrar uma mudança de estratégia. No passado, os catarinos normalmente eram lentos para reagir a críticas desse tipo. No entanto, poucas horas após a Hummel expressar suas preocupações, a organização responsável pela realização do evento emitiu uma declaração contundente.

Nela, o Supremo Comitê para Entrega e Legado do Catar afirmou que o país implementou reformas significativas no mercado de trabalho e acrescentou que todos os países, inclusive a Dinamarca, deveriam focar na promoção dos direitos humanos.

Resposta tão estridente é notável, parecendo marcar um desenvolvimento na natureza, tom e velocidade da comunicação externa do Catar. É visível que as autoridades estão se preparando para um intenso período de escrutínio e ativismo em uma das Copas do Mundo mais controversas da história do futebol.

Elas também têm se preparado para a possibilidade de interrupção do evento, adquirindo desde policiais marroquinos e equipamentos de vigilância estadunidenses a drones turcos e fragatas italianas. Ainda será visto como esses recursos serão utilizados ou se podem estar ligados ao recente anúncio sobre a venda de bebidas alcoólicas por até 19 horas diárias.

Quando o assunto é logística, o Catar também tem praticado. O país sediou vários eventos importantes e de grande público para estabelecer seu nível de preparação. Alguns deles incluem a edição de 2019 da Copa do Mundo de Clubes da FIFA e a Copa Árabe da FIFA, em 2021. Os dois campeonatos ocorreram sem maiores incidentes. Contudo, um evento teste realizado recentemente no Estádio Nacional de Lusail – que sediará o último joga da Copa, em 18 de dezembro – foi menos encorajador, com cortes no fornecimento de água, sistema de ar-condicionado defeituoso e caminhadas de até uma hora sob 35°C para chegar ao estádio.

Tais obstáculos não são insuperáveis antes do início da Copa em novembro, com o jogo entre Catar e Equador. Mas há pouca margem de erro na realização de eventos esportivos dessa natureza. Em março deste ano, o Grand Prix de Fórmula 1 na Arábia Saudita quase foi cancelado após um ataque de drone por parte dos Houthis; em maio, falhas no gerenciamento de multidões causaram sérios problemas na final da Liga dos Campeões da UEFA, na França.

Que o jogo comece

Um grande desafio pode ser simplesmente o volume de visitantes, com algumas estimativas falando em mais de 1,2 milhões de pessoas viajando para o Catar entre novembro e dezembro.

Para um país com uma população de 3 milhões de pessoas, este é um enorme fluxo que testará a resiliência da infraestrutura crítica do país, inclusive estradas, sistema de transporte público, fornecimento de água e capacidade da rede de esgoto. Alguns trabalhadores imigrantes já foram instruídos a deixar o Catar e retornar apenas quando o torneio terminar. Funcionários do governo foram instruídos a trabalhar em casa durante a Copa do Mundo, e escolas, faculdades e universidades serão fechadas.

Temendo congestionamentos, o governo catarino interromperá a entrada do tráfico em Doha, capital do país, na sexta-feira, geralmente o dia mais movimentado da semana. Atualmente, eles estão testando 700 ônibus elétricos da “marca” Copa do Mundo – uma antecipação a possíveis problemas de transporte. Como pude descobrir numa visita ao país em setembro, faltando apenas algumas semanas para o início do torneio, grandes seções das ruas de Doha estão inacessíveis à medida que o país procura, tardiamente, modernizar o seu sistema de água e esgoto.

Durante esta recente viagem, fiquei impressionado com a escala do desenvolvimento de infraestrutura que ocorreu desde a última vez que estive no Catar, antes da pandemia. A capital me pareceu muito mais silenciosa que antes, o que um taxista me disse ser devido ao fato de que a população local foi instruída a deixar o país ou permanecer fora da capital durante os preparativos finais para a Copa.

Em alguns lugares, as estradas ainda estavam por terminar, o que se repetiu em várias áreas onde espera-se que os torcedores se reúnam. Entre alguns dos trabalhadores imigrantes com quem conversei, permanecem problemas como as longas jornadas de trabalho e baixos salários. Mas mesmo eles e outros – e quase sem exceção – falaram sobre sua empolgação com a realização do torneio.

O fato de muitos deles não terem como custear os ingressos para assistir aos jogos não preocupará as autoridades catarinas. Seus 12 anos de planejamento para a Copa do Mundo tem a ver com ambições de construção nacional, projeção de soft power e mudanças nas percepções internacionais sobre o país.

À medida que os preparativos finais avançam, não falta muito para que o governo de Doha decida se sua aposta massiva valeu a pena.