Coluna

Abandonada no governo Bolsonaro, agricultura familiar resiste a desmontes de políticas públicas

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A camponesa Analice Andrade, moradora do Sítio Campo Formoso, na zona rural do município de Esperança, é uma das agricultoras que abastecem as feiras do Polo da Borborema - Ana Lira/ Arquivo AS-PTA e ASA
O PAA e o Pnae praticamente acabaram; Isso impacta diretamente no modo de vida das famílias

*Por Rafael Oliveira

 

"Nós conhecemos agricultores de cabo a rabo e nunca vimos uma calamidade como estamos vendo hoje, de gente passando fome. Em muitas regiões, a coisa está feia, o povo não tem dinheiro. O dinheiro que circula é de aposentadoria, coisa pouca, que não rende pra cuidar dos filhos, dos netos. Nas periferias das cidades, nem se fala, é muita fome". 

As palavras do coordenador do Polo da Borborema, no estado da Paraíba, Manoel Antônio de Oliveira, são ditas em tom de tristeza e revolta ao ser perguntado sobre a conjuntura atual do Brasil, que após quase 10 anos voltou a constar no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) e contabiliza cerca de 33 milhões de pessoas passando fome todos os dias - conforme pesquisa divulgada pela Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional).


Manoel Antônio de Oliveira, o Nequinho, participa de reunião com famílias camponesas do Polo da Borborema, na Paraíba / Divulgação/Polo da Borborema

Assentado da reforma agrária e figura conhecida na luta camponesa no estado da Paraíba, Nequinho, como é popularmente conhecido, avalia que a situação de vulnerabilidade social que a população brasileira vive provém diretamente do enfraquecimento de diversas políticas públicas de apoio à agricultura familiar ocasionadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). 

De acordo com o coordenador do Polo da Borborema, nos governos do Lula, foram criadas ou aprimoradas muitas políticas públicas que beneficiaram a agricultura familiar, como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). “Isso potencializou a produção das famílias que já estavam na terra e também daquelas que foram assentadas posteriormente. A comparação é entre o bem e o mal. Esse governo atual [de Bolsonaro], durante todo o mandato, não fez nada para o povo", critica.

Por meio do PAA, o governo comprava alimentos diretamente da agricultura familiar e os distribuía nas periferias e em regiões acometidas pela fome. Em 2012, o valor investido no programa chegou a cerca de R$ 585 milhões em todo o país, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Se considerar os recursos repassados pelo Ministério do Desenvolvimento Social para estados e municípios, esse valor chega a R$ 840 milhões no período. Na gestão de Bolsonaro, o recurso destinado ao PAA - hoje renomeado de Alimenta Brasil - alcançou somente R$ 59 milhões em 2021.

"O PAA e o Pnae praticamente acabaram. A gente vendia os produtos por meio desses programas, eles eram muito importantes porque abasteciam diversas instituições, escolas, universidades, creches. Isso impacta diretamente no modo de vida das famílias", recorda Nequinho.

Sob o argumento de que a proposta é “contrária ao interesse público”, em agosto deste ano o presidente Jair Bolsonaro vetou a emenda parlamentar à Lei de Diretrizes Orçamentárias que previa o reajuste de 34% ao Pnae. A proposta, que havia sido aprovada pelo Congresso Nacional, destinaria cerca de R$ 5,5 bilhões à alimentação escolar. Além da possibilidade de abastecer escolas públicas com alimentos de qualidade, o Pnae pode fomentar a aquisição de produtos da agricultura familiar e de comunidades indígenas e quilombolas.

Na avaliação da coordenadora nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Andreia Silvério, os governos de Lula e Dilma Rousseff pecaram na não-concretização da reforma agrária, mas ainda assim suas gestões garantiram a implementação de importantes políticas públicas para as famílias do campo. "Houve investimento para garantir a permanência das famílias na terra. Elas tiveram acesso a créditos para produção, a programas de aquisição e distribuição de alimentos provenientes da agricultura familiar. Além de políticas públicas de educação para as crianças, ingresso de jovens e adultos nas universidades, através do Pronera [Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária], por exemplo. E agora, vemos, de fato, um bloqueio dessas iniciativas", pontua Silvério.


Andreia Silvério: No governo de Bolsonaro, os desmontes perpassam por todas as áreas que envolvem as pautas camponesas / Divulgação/CNBB Norte 2

A coordenadora da CPT destaca a paralisação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como outro fator de desmobilização das demandas da família camponesa no governo Bolsonaro. Em maio deste ano, o presidente do Incra anunciou a suspensão de atividades da autarquia por falta de verbas federais. 

"Bolsonaro trouxe prejuízos muito significativos para a política nacional de reforma agrária como um todo. Uma das primeiras medidas da sua gestão foi paralisar completamente os processos administrativos de compra e venda e de desapropriação de novas áreas de assentamento. A Ouvidoria Agrária Nacional, que era um espaço no qual as famílias tinham a possibilidade de apresentar suas denúncias, foi extinto. Os desmontes perpassam por todas as áreas que envolvem as pautas camponesas", afirma.

Do povo, para o povo

Para sobreviver a períodos de crise semelhantes aos vividos nesta gestão do governo federal, Nequinho aponta que a articulação e a organização da classe trabalhadora é um fator determinante. Ele cita a experiência concreta do Polo da Borborema, que reúne 13 Sindicatos de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais (STTRs), 150 associações e cerca de 6 mil famílias. 

"Nós criamos uma grande rede agroecológica. O polo tem 13 feiras agroecológicas espalhadas por diversas cidades da Paraíba, além de quitandas, bancos de sementes e cooperativas que trabalham produtos a partir do beneficiamento do milho. Todos os nossos alimentos são cultivados sem nenhum tipo de agrotóxico, esse é um importante diferencial a ser dito. Graças ao nosso modo próprio de organização, nós conseguimos garantir a comercialização da nossa produção", explica.


Campina Grande (PB) recebe uma das feiras agroecológicas organizadas pelas famílias camponesas do Polo da Borborema / Divulgação/ASP-TA

Andreia Silvério recorda também de iniciativas recentes de organizações e movimentos sociais que se articularam para suprir demandas da população que não estavam sendo respondidas pelo Estado. Como exemplos, ela cita as ações de produção e distribuição de cestas básicas protagonizadas pelas famílias camponesas, indígenas e quilombolas para atender necessidades urgentes da população em maior situação de vulnerabilidade nos períodos mais críticos da pandemia. "Durante a pandemia, foram iniciativas de solidariedade dos povos do campo que garantiram alimentos para periferias de grandes centros urbanos. Isso mostra a resistência e a potência de produção da agricultura familiar", destaca Silvério.

Mesmo atravessando tempos tão difíceis, o sindicalista Nequinho afirma que os povos do campo sempre se mantiveram lúcidos em relação à  situação do país - e que continuarão assim. "Nós nunca paramos de lutar, nós sempre brigamos muito. Se Lula conseguir a reeleição, temos que seguir organizados e travar uma luta com ele para continuarmos reivindicando e garantindo nossas demandas", finaliza a liderança.

 

*Rafael Oliveira é comunicador popular da Articulação Nacional de Agroecologia.

**Acompanhe a coluna Agroecologia e Democracia. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) é um espaço de diálogo e convergência entre movimentos, redes e organizações da sociedade civil brasileira engajadas em iniciativas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e de construção de alternativas sustentáveis de sistemas alimentares. Leia outros artigos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo