NO BIXIGA, EM SP

Conheça a luta do Quilombo Saracura pela preservação de seu sítio arqueológico

Mudança do nome da estação do metrô e construção de um memorial estão entre as reivindicações de ativistas e moradores

Ouça o áudio:

Gisele Brito faz fala na frente de mapas que evidenciam a presença da população negra no centro de SP - Pedro Stropasolas
Não somos contra o metrô, somos contra o apagamento histórico

Garrafas, louças, talheres. O que poderiam ser simples objetos, encontrados a três metros de profundidade durante as escavações da Linha 6-Laranja do Metrô no centro da capital paulista, compõem nada menos que o sítio arqueológico de um dos mais importantes quilombos da história de São Paulo.

Os materiais, que datam do século 19 ao início do século 20, foram registradas no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como peças de alta relevância. A comunidade negra que constituiu o Quilombo Saracura deu origem ao bairro do Bixiga, nomeado formalmente como Bela Vista. Agora, a disputa política pelo futuro desta memória está em aberto. 

A descoberta do sítio arqueológico fez surgir o movimento Mobiliza Saracura Vai-vai, formado por moradores do bairro, coletivos do movimento negro, sambistas, pesquisadores e outros ativistas. Eles reivindicam a paralisação temporária das obras do metrô, um projeto de preservação do sítio arqueológico que inclua a construção de um memorial e uma política de educação patrimonial permanente. Exigem, ainda, a mudança do nome da estação: em vez de 14 Bis, que seja Saracura Vai-vai.

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Além disso, a articulação defende que, para garantir a permanência da população negra na região, sejam implementadas estratégias contra a previsível gentrificação - processo de expulsão da classe trabalhadora de locais que recebem melhorias urbanas - que a chegada do metrô deve trazer. 

A Linha 6-Laranja do Metrô, que pretende ligar a estação São Joaquim à Brasilândia, está sendo feita por uma parceria público-privada. A Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo contratou a concessionária Linha Uni e as empresas Acciona e Alstom. Orçada em R$ 14 bilhões, está prevista para ser entregue em 2025. 

"Não somos contra o metrô, somos contra o apagamento histórico", explicam cartazes espalhados pelas ruas do Bixiga. A luta é para impedir um processo já em curso, que tem a remoção da quadra do Vai-vai como sua faceta mais evidente. A quadra foi deslocada permanentemente para a marginal Tietê. Mas o acordo firmado entre a agremiação e a Acciona é que uma sede social da escola seja construída pela empresa ali no bairro onde há quase 100 anos o Vai-vai nasceu. 

"O povo dos quilombos"

Aulas públicas no bairro estão entre as várias atividades organizadas pelo Mobiliza Saracura Vai-vai. Em uma delas, Gisele Brito, do Instituto de Referência Negra Peregum e da Uneafro Brasil, defendeu a desnaturalização da ideia de que o metrô tinha, necessariamente, que passar por onde passa. 

"Imagina se falam 'ah, vamos desapropriar o MASP porque o metrô vai passar por aqui'. Ou a Igreja da Sé? É impensável, porque o Estado legitima esses lugares como de interesse de todos. E, no entanto, isso acontece com a quadra do Vai-vai, um patrimônio da cidade e do país. São mecanismos do racismo estrutural que naturalizam processos violentos e silenciosos", disse Gisele ao público que se reuniu nas escadarias do Bixiga em um sábado de frio. 


Em aula pública nas escadarias do Bixiga, mapa mostra onde, no coração de São Paulo, nasce o rio Saracura que deu nome ao quilombo / Pedro Stropasolas

Pedro Luiz da Silva, de ascendência angolana, nasceu na rua Asdrúbal do Nascimento, no Bixiga, há 61 anos, pelas mãos de uma parteira comunitária. Considerado um dos griots - contadores de histórias - do bairro, ele também fez uma fala na aula pública, contando que sua mãe lavava roupa nos rios da região, incluindo o Saracura, córrego aterrado que deságua no rio Tietê e que deu nome ao quilombo.  

Quando os pais de Pedro saíam para trabalhar, era nessas ruas que ele brincava. "Não queriam que a gente fosse para o centro, onde a gente podia ser desrespeitado. Meus pais confiavam no povo dos quilombos. Uma mãe cuidava do filho do outro", lembra. 

Não por acaso foi ali, onde vivia o "povo dos quilombos", a primeira sede do Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978, em plena ditadura empresarial-militar. 

"A concessionária e a consultoria que está fazendo o trabalho arqueológico dizem que a obra está respeitando as normas e que o sítio está preservado. Nós temos dúvida e acreditamos que é importante que o Ministério Público Federal (MPF) acompanhe", conta Gisele. 

As respostas institucionais às reivindicações  

Procurado pelo Brasil de Fato, o MPF informou que existe um procedimento sobre o Quilombo Saracura que "está em fase inicial de apuração e análise" e que, portanto, "ainda não é possível fazer qualquer manifestação específica sobre o caso". 

A Prefeitura de São Paulo, sob gestão de Ricardo Nunes (MDB), tampouco tomou posição sobre as reivindicações do movimento. Afirmou que "o assunto está em curso visando os procedimentos legais estabelecidos" e que "ainda não foram realizadas reuniões específicas sobre o tema". 

Já o governo do Estado de São Paulo, comandado por Rodrigo Garcia (PSDB), afirmou que quem responde sobre a questão é a Linha Uni, ou seja, a parte privada da parceria. Em nota, se limitou a informar que "solicitações como a troca de nomes de estações devem ser formalizados nos meios oficiais da Secretaria de Transportes Metropolitanos onde passam por análises técnicas".  

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A Linha Uni informou que os objetos encontrados "poderão fazer parte do acervo do Centro de Arqueologia de São Paulo, vinculado ao Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura, ou serão identificadas alternativas de exposição em conjunto com a comunidade do entorno". 

A concessionária também afirmou que "foi autorizada a continuidade da etapa construtiva com a execução das paredes de contenção do local", para a escavação e para "a continuidade das obras". 

O nome da estação 

Acontece que, a despeito do poder público afirmar que ainda não fez "reunião específica sobre o tema" ou que "solicitações precisam ser formalizadas", foram inúmeras as maneiras pelas quais as demandas comunitárias foram expressas. Além de um manifesto e uma petição, foram feitas manifestações, audiência pública, reuniões e ofícios.  

Luciana Araújo, moradora do Bixiga há 15 anos, integrante do MNU e da Marcha de Mulheres Negras, lista uma série de reuniões institucionais feitas com os órgãos públicos a respeito do tema desde junho.  

O movimento já se reuniu com o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (Conpresp) em 22 de junho; com a Linha Uni e a Lasca (empresa contratada para fazer o estudo arqueológico) em 27 de junho e fez uma audiência pública na Câmara Municipal de São Paulo no último 12 de agosto. As iniciativas formais e informais foram, no entanto, tão numerosas quanto a falta de respostas.  

"Não há nenhuma restrição legal para a alteração do nome da estação, que é uma prerrogativa do governo do Estado. Ainda mais que essa é uma estação que ainda não foi construída, ou seja, teria gasto zero fazer essa alteração", aponta Luciana.  

O nome que a comunidade busca evitar que a estação tenha é o mesmo da praça em frente ao local: uma homenagem a Santos Dumont e ao 14-bis, o avião por ele construído em 1906. O precursor da aviação brasileira era filho de Henrique Dumont, considerado um dos quatro reis do café na metade do século 20.   

A continuidade das obras e a incerteza sobre o memorial 

"Também não há nenhuma restrição legal que a demanda da comunidade pela manutenção do acervo no território seja garantida. Isso é o que a gente está cobrando. Vai construir a estação? Constrói o memorial. Na própria estação. Também é uma questão que eles têm tangenciado a responder. Vão ou não construir o memorial?", questiona Araújo.  

"Em relação à continuidade da obra, é uma preocupação gigantesca que a gente tem. E por isso acionamos o Ministério Público. Porque a obra está autorizada desde 2015 pelo Iphan, independente da pesquisa arqueológica, o que nós consideramos um ataque à legislação, inclusive", critica Luciana.

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De fato, o artigo 216 da Constituição Federal é bastante direto. Considera "patrimônio cultural brasileiro" os bens "portadores de referência à identidade, ação, memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". E determina, ainda, que "ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos".  

"Agora que a existência deste patrimônio veio à tona, não podemos permitir que nossa história seja mais uma vez escondida", afirma o manifesto do Mobiliza Saracura Vai-vai: "É preciso respeitar o direito de nossas crianças, jovens e adultos conhecerem o seu passado. Resgatar aos idosos os direitos que lhes foram tirados. Assegurar a preservação e o repasse cultural e educacional dos importantes momentos de nossa comunidade. É hora de devolver às gerações de descendentes negros do bairro seus direitos à memória, à terra e à presença neste solo".

Edição: Thalita Pires e Nicolau Soares