Análise

O Auxílio Brasil não é o Bolsa Família. Saiba por que isso é ruim para a população

Quando se trata de combater a pobreza e a extrema pobreza, o dinheiro, apesar de um dos elementos principais, não basta

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Auxílio Brasil começou a operar no final de 2021, substituindo Bolsa Família, programa instituído pelo governo Lula que durou 18 anos - Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Ao ser criado em agosto de 2021, o Programa Auxílio Brasil provocou o fim do mundialmente reconhecido por seus êxitos Programa Bolsa Família. Sem estudos que embasassem esta decisão ou mesmo discussão com a sociedade, a trajetória de um dos maiores programas de transferência condicionada de renda teve um fim abrupto. O Bolsa Família foi criado em 2003, início do governo Lula, e teve por objetivo combater a pobreza e a fome, enquanto oferecia e se apoiava em uma robusta rede social que atendia trabalhadores em situação de pobreza e extrema pobreza.

Apoiado por uma série de políticas sociais tais como de valorização do salário mínimo, incentivo à agricultura familiar e geração de emprego, políticas de saúde e educação, o Bolsa Família foi um programa que apresentou resultados expressivos e marcantes na trajetória de experiências democráticas no país.

Para pontuar somente alguns de seus feitos, em 2014 conquistamos a saída do Mapa da Fome, o que significou que menos de 5% da população no país passava fome, o acompanhamento nutricional e de vacinação de crianças ocorria de forma consistente, assim como as redes de educação atuavam de forma colaborativa com a gestão do programa para garantir a frequência escolar.  

A linguagem pública se modificou com a existência do Bolsa Família; passamos a falar abertamente sobre assistência social, sobre fome e pobreza como questões sociais urgentes que só podem ser resolvidas a partir da atuação do Estado orientada pela gestão democrática. Assim, a participação da sociedade nos programas sociais do governo federal foi ampliada, assistentes sociais, pesquisadores, representantes de movimentos sociais e de diferentes setores da sociedade eram chamados a falar e aprimorar o o Bolsa Família.

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Para que tudo isso fosse possível, foram criados os Centro de Referência de Assistência Social, CRAS, inseridos no quadro maior do Sistema Único de Assistência Social, o SUAS. Era a partir dos CRAS que as famílias eram atendidas por assistentes sociais e servidores preparados que as encaminhavam para os programas federais, estaduais ou municipais disponíveis, de acordo com suas necessidades.  

Ao chegar em um CRAS, o preenchimento do Cadastro Único para Programas Sociais do governo federal, o CadÚnico, era realizado, cobrindo uma série de questões, desde a composição familiar, nível de ensino, descrição das habitações, acesso ao saneamento básico, à saúde e à educação. Povos indígenas, ribeirinhos, pescadores e a população em áreas rurais recebiam atendimento de acordo com as especificidades que fogem às das famílias em centros urbanos.  

Com o Número de Inscrição Social, o NIS, as famílias acessavam uma gama de políticas e programas sociais: isenção em concursos públicos, tarifa social de energia elétrica, atividades em contraturno para crianças, programas de capacitação profissional, acompanhamento de vacinação, atendimento psicossocial e assim por diante.

Na esteira do Auxílio Emergencial, o Auxílio Brasil promoveu forte apelo e propaganda em torno dos valores das parcelas a serem pagas às famílias beneficiárias. Deixemos claro: dinheiro é importante, e dinheiro em quantia suficiente para que as pessoas vivam com o mínimo de dignidade é um direito. Entretanto, quando se trata de combater a pobreza e a extrema pobreza, o dinheiro, apesar de um dos elementos principais, não basta. Todos nós precisamos acessar serviços de saúde, de educação, ter condições de comprar alimentos saudáveis e em quantidade suficiente, ter acesso a remédios e às campanhas de vacinação. São direitos o acesso a oportunidades de emprego, à qualificação profissional e ao ensino escolar.

Ao propor parcelas de R$ 400 aos beneficiários, desviando o foco para o valor aparentemente maior que o do Bolsa Família, somos induzidos a esquecer de toda a rede de proteção social necessária para que a vida funcione em sua totalidade. As parcelas do benefício não consideram a composição familiar, o que pode diminuir o valor quando dividido entre os beneficiários de uma mesma família, e também não acompanham o custo de vida. Em cidades como Belo Horizonte, no início de outubro, uma cesta básica chegou a R$ 650,16.

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Com o encerramento de um programa social bem-sucedido era de se esperar que outro melhor seria implementado. Ampliando a cobertura da assistência social, o atendimento médico, o acesso à alimentação saudável e o acesso à educação.

Porém, não foi isso que aconteceu e ficamos em situação pior. Atualmente, o fracasso do programa se expressa no crescente número de 33,1 milhões de pessoas passando fome, na queda da capacidade de atendimento dos CRAS devido ao desfinanciamento da rede de proteção social e a ausência de formas de acompanhamento em saúde e educação.  

Como se tudo isso já não fosse ruim o suficiente, se apegando somente à ideia de que dinheiro basta, o Auxílio Brasil, ao invés de ampliar as oportunidades para a população, gera o endividamento das famílias atendidas por este programa e pelo Benefício de Prestação Continuada, o BPC, jogando-as nas mãos de agências financeiras com a liberação do crédito consignado. Ou seja, liberando empréstimos com juros imorais, tomando parte do dinheiro das parcelas e instituindo um mecanismo de transferência de dinheiro que, ao invés de ser utilizado, por exemplo, para melhorar os serviços públicos, irá diretamente para os bancos, pois as parcelas do empréstimo são descontadas diretamente no benefício.

São aposentados, pessoas em situação de rua, trabalhadores informais, mães e desempregados sendo assediados desde junho para a contratação de um empréstimo de pouco mais de R$ 2.000 a serem utilizados para a compra de comida, remédios, o aluguel de um quarto, dentre outros e que, ao fim, deixará as parcelas do benefício menores que o esperado. A promessa de manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600 não se sustenta. As simulações do empréstimo consignado têm ocorrido a partir do valor base de R$ 400. Se as agências financeiras não acreditam na promessa dos R$ 600 por que nós acreditaríamos? Não há interesse político em aumentar o valor do benefício, caso houvesse, isto já teria ocorrido de forma permanente.  

Além de valores insuficientes, não há vagas na previsão orçamentária para que todos que precisam sejam atendidos. O Auxílio Brasil é ruim para a população como um todo, pois não combate a pobreza e a fome, terceiriza este papel para os indivíduos, beneficiários ou não, em meio ao desemprego e a alta do custo de vida. São mais pessoas nas ruas, mais crianças fora da escola e mais custos com a saúde pública. Ao fim, todos pagamos.

Denise De Sordi é historiadora e pesquisadora de pós-doutorado da COC/FIOCRUZ e da FFLCH/USP 

Edição: Glauco Faria