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Gal e os baianos...

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O Tropicalismo juntou a essa resistência uma irreverência alegre, com uma qualidade musical revolucionária, de belísimos resultados - Arquivo Nacional / Wikimedia Commons
Tem como a gente não gostar desse povo que nos mostra um jeito harmonioso de viver?

Amigas e amigos, a morte da Gal Costa mexeu comigo. Não vou falar dela. Todo mundo já falou e eu não teria nenhuma novidade pra contar.

Mas fico lembrando dela e da sua turma, acho que posso chamar assim os baianos e alguns não baianos que criaram o Movimento Tropicalista, surgido numa época de muitas ruindades no Brasil, a época da ditadura.

Tivemos compositores, cantores e cantoras que ajudavam a gente a encarar aquele tempo encrencado com muita esperança. O Tropicalismo juntou a essa resistência uma irreverência alegre, com uma qualidade musical revolucionária, de belísimos resultados.

Num primeiro momento, várias tendências de esquerda não entenderam bem aquilo. Achavam que era escapismo, aquele modo de contestar certos costumes, com um jeito não tradicional de se opor à ditadura.

Confesso: eu mesmo estava no auditório na PUC de São Paulo, em 1968, assistindo a uma etapa do Festival da Canção, em que Caetano Veloso foi muito vaiado quando tentava cantar "É proibido proibir". Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa...

Mas logo em seguida os paulistas e outros "sulistas" começaram a entender que a vida pode ser mais divertida.

Eu sempre digo que, quando vim para São Paulo, os paulistanos eram muito mais fechados do que atualmente. Só conversavam com a gente se fôssemos formalmente apresentados.

Em 1969, começaram a viajar para a Bahia e ver aquela explosão de alegria e de boa convivência. Pessoas que você nunca viu tratando a gente como velhos amigos. E começaram a mudar o modo de viver aqui, em São Paulo.

Vou contar aqui um pedacinho de uma das minhas viagens pra lá. Fui para Belo Horizonte, com o amigo Quincas, e de lá seguimos de trem para Salvador. Quatro dias de viagem!

No trem, tinha muitos nordestinos que voltavam para sua região. Não deram certo no Sudeste e ganharam apenas a passagem de trem para a família voltar. Nenhum dinheiro para a alimentação.

Como é que podíamos nos alimentar esses quatro dias vendo pessoas sem dinheiro para comer? O Quincas e eu passamos a dividir nossa pouca grana com elas. Resultado: chegamos duros em Salvador, para passar quase um mês.

Na primeira noite, conhecemos moradores de uma república que nos ofereceram hospedagem, de graça. Meros desconhecidos. Não só ficamos lá como fizemos uma baita festa. Arrumei um dinheiro e comprei feijão, farinha e cachaça... e haja samba!

A república era numa casa velha, ficava cheia de gente que levávamos pra lá, e batucávamos e dançávamos dia e noite. Depois de 16 dias, a casa caiu, literalmente. Suas estruturas não aguentaram.

O Elso, líder da república que desabou, trabalhava ali perto e todos os dias, quando ia para o trabalho, parava em frente aos escombros da casa e chorava, e chorava... passou semanas chorando. Ficamos amigos para sempre.

Tem como a gente não gostar desse povo que nos mostra um jeito harmonioso de viver?

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Nicolau Soares