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Cultura, comuna e chavismo radical: coletivo La Minka completa 10 anos na Venezuela

Projeto criado por artistas hoje é responsável por restaurante, padaria e se tornou parte ativa na construção da comuna

Caracas (Venezuela) |

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Minkeros ocuparam casarão abandonado no bairro de Altagracia, em Caracas - Lucas Estanislau

Radicais, revolucionários e chavistas. É assim que os membros do coletivo político e cultural venezuelano La Minka se classificam. Responsáveis pelo projeto que assume múltiplas funções comunitárias no bairro pobre de Altagracia, no centro de Caracas, os jovens minkeros, como se autodenominam, estão em festa nos últimos meses de 2022 para celebrar os 10 anos da empreitada.

O projeto começou em outubro de 2012, quando um grupo de artistas de esquerda decidiu ocupar um casarão abandonado a apenas alguns quarteirões de distância do Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano, e utilizá-lo para oferecer à comunidade cursos e oficinas de dança, capoeira, circo, música e serigrafia, fazendo jus ao nome Minka que, em idioma quechua, significa “trabalho conjunto em comunidade”.

“Nós respeitamos a premissa de que a terra é de quem trabalha nela, por isso entendemos que os espaços urbanos são de quem os habita”, explica Rome Arrieche, fotógrafo e artista independente que faz parte do coletivo, ao Brasil de Fato.

Ao longo dos anos, a Minka foi construindo novos projetos e assumindo diferentes funções na comunidade, se adaptando às necessidades da população geradas pela crise que o país viveu. Hoje o coletivo comanda uma rádio comunitária, um restaurante que serve almoço gratuito todos os dias e uma padaria que se tornou a principal fonte de renda para os projetos. Além disso, os minkeros são responsáveis pelo CLAP (Comitê Local de Abastecimento e Produção) da região, programa criado pelo governo em 2016 que distribui cestas básicas para milhões de famílias venezuelanas.

“Essas ações nascem em um momento de resistência”, afirma Alina Lyon, uma das fundadoras da Minka. “A crise em 2015, 2016 foi muito forte, os episódios de escassez e de sabotagem de muitos empresários deixaram muitas pessoas sem comida”, diz.

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Ao Brasil de Fato, Alina conta como enfrentaram a “guerra do pão”, uma forte onda de escassez do alimento que ocorreu em Caracas em 2017, classificada pelo governo como um ato de sabotagem de comerciantes. Nas vizinhanças da Minka, “o dono da padaria decidiu parar de vender e, pior, começou a estocar farinha sem produzir, enquanto dizia que faltava pão porque a revolução era um desastre”, explica.

Diante da urgência para solucionar a crise no fornecimento de pães, os minkeros e a comunidade organizada decidiram ocupar as estruturas e fundar a Padaria Minka. “Nós não somos padeiros, mas somos revolucionários e com esse trabalho mantemos a padaria funcionando e abastecendo a comunidade por todos esses anos”, afirma Alina.

Comuna ou nada

As ações da Minka, entretanto, ultrapassaram o âmbito cultural e social na medida em que o coletivo foi ganhando um protagonismo cada vez maior na vizinhança. O projeto acabou se tornando parte fundamental da Comuna Miraflores, que abriga sete conselhos comunais formados por cerca de 3,2 mil famílias.

“Nós acreditamos na proposta de ‘comuna ou nada’, nesse chavismo radical que [o ex-presidente Hugo] Chávez propôs, nós compramos esse problema da comuna e com o passar do tempo fomos organizando conselhos comunais em vários territórios onde não existiam”, diz Rome.

Forma de organização territorial popular, as comunas são núcleos autônomos geridos pela própria população nos bairros ou regiões onde vivem, sejam rurais ou urbanas, que estão previstos por lei na Venezuela. Segundo a própria legislação promulgada em 2010, as comunas são "espaços socialistas [...] que têm como propósito fundamental a construção do estado comunal”.

A ideia ganhou força no país e ficou eternizada pela expressão "comuna ou nada", cunhada pelo ex-presidente Hugo Chávez durante um histórico discurso em outubro de 2012. A fala aconteceu logo após sua vitória eleitoral para o 4º mandato, que também seria o último antes de sua morte, em 2013.

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As declarações passaram para a história como o "Golpe de Timón", expressão que transmite a ideia de uma virada brusca no leme do barco e que representou as intenções de Chávez de aprofundar o chamado "socialismo bolivariano", dando mais poder às comunas.

Na ocasião, o ex-presidente criticou seu gabinete de ministros, citou Mao Tse-Tung e pediu mais envolvimento de seus aliados no processo de construção comunal. “Eu vou dar outra vez 30 cópias a cada ministro e a cada ministra de um livrinho vermelho dos tempos de Mao Tse-Tung sobre as comunas, [porque] parece que ninguém o leu. Parece que ninguém o leu, porque eu não recebi sequer uma folhinha de volta com algum comentário sobre o livro. Estamos transmitindo, sim? Ótimo. A autocrítica. Independência ou nada. Comuna ou nada. Ou o quê estamos fazendo aqui?”, disse Chávez.

“Nós somos filhos do ‘Golpe de Timón’”, defende Rome, afirmando que o fato de o coletivo ter nascido no mesmo mês e ano em que o ex-mandatário realizou o discurso não é coincidência, pois “havia uma necessidade de avançar da nossa parte que era correspondida pelo presidente e isso fica claro no discurso”.

“Chegamos aqui com Chávez radical e a Comuna Miraflores é parte dessa construção, pois Chávez disse que deveria existir uma comuna nos arredores do Miraflores. Bom, essa é a comuna que o Comandante Chávez pediu, aqui estamos pisando em um território que está cumprindo um pedido de Chávez”, afirma.

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Rome, entretanto, pondera que nos últimos dez anos, marcados por confrontações políticas agudas e uma forte crise econômica, o movimento entrou em uma fase de resistência e de defesa dos projetos consolidados. “Aqui existia outro país, não só porque a situação econômica era melhor, mas porque sentíamos que Chávez estava em seu momento político mais radical e era respaldado pela população, que discutia política em cada esquina”, explica.

Segundo o ativista, os anos de crise agravados pelo bloqueio dos EUA acabaram desmobilizando muitos conselhos comunais em todo o país e causaram alguns atrasos para a luta do movimento. No entanto, isso não impede que os membros da Minka sigam contando com o apoio do Estado e convictos de que a construção do poder comunal é irreversível no país.

“A radicalização não vai depender do Estado, não vai depender do governo. Eu tenho certeza de que o presidente Nicolás Maduro confia no chavismo radical, que Diosdado Cabello [vice-presidente do PSUV] confia no movimento, mas isso vai depender de nós, vai depender desse chavismo que Chávez deixou em nós mais do que qualquer outro fator”, afirma.

Edição: Thales Schmidt