Guerra na Ucrânia

Recuo de tropas de região recém-anexada na Ucrânia deixa Rússia em ‘beco sem saída técnico’

Retirada das tropas de Kherson e continuidade dos bombardeios na Ucrânia indica redefinição da estratégia russa

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Moradores de Kherson colocam flores para militares mortos no centro da cidade durante a visita do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky à região após a retirada das tropas russas. - Serviço de imprensa presidencial da Ucrânia / AFP

O Ministério da Defesa russo anunciou a retirada das tropas do país de boa parte da região de Kherson, território ucraniano anexado pela Federação Russa no final de setembro. De acordo com a versão oficial do Kremlin, trata-se de um reagrupamento das tropas na margem esquerda do Rio Dnieper. O lado ucraniano, por outro lado, trata como uma libertação da cidade e uma derrota de Putin na guerra. O anúncio pode ter iniciado uma nova fase do conflito. 

A retomada do controle da região de Kherson por parte das forças ucranianas contou com a visita do presidente do país, Volodymyr Zelensky, que caminhou pelas ruas da cidade e celebrou o que chamou de “início do fim da guerra”. Em cerimônia de hasteamento da bandeira da Ucrânia no prédio administrativo da cidade, Zelensky agradeceu à Otan e outros aliados internacionais pelo apoio contra a Rússia. 

Vale lembrar que a Rússia anunciou a anexação da região de Kherson ao seu território há pouco mais de um mês, no fim de setembro. Na ocasião, a declaração foi que Kherson estaria “com a Rússia para sempre”. 

No entanto, apesar do forte simbolismo da retomada do controle de uma região que os russos consideravam estratégica criar um clima de euforia do lado ucraniano, logo no dia seguinte, na terça-feira (15), a Rússia realizou uma nova onda de bombardeios em arredores da capital, Kiev, e em outras grandes cidades da Ucrânia. Foram relatadas fortes explosões e prédios residenciais bombardeados. Alertas de ataque aéreo foram emitidos em grandes cidades do país.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, que vive em Kiev, relatou que, apesar de a capital “ainda não viver uma catástrofe humanitária”, a cidade vive um cenário de guerra desde que Moscou voltou a realizar bombardeios em larga escala em todo o território do país. 

“Em Kiev diariamente ocorrem desligamentos de energia em grande escala, em quarteirões e bairros inteiros, bem como em outras regiões da capital, como Zhytomirsky, Paltavosky, Chernigosky. Em torno de um terço da Ucrânia, ou até metade da Ucrânia, regularmente sofre com desligamentos de luz, bem como acontecem desligamentos de emergência inesperados em qualquer momento”, relata.

“Se você anda de carro por Kiev, ao entrar em um quarteirão onde tem luz, lá funcionam os mercados, postos de gasolina, tem internet no celular, ou seja, a vida anda. Ao andar 100 metros, você entra em um quarteirão sem luz, e onde não tem luz, não tem conexão de celular, internet móvel, nada funciona, por isso é uma vida entre sombras e luz. Em Kiev, em geral, não tem luz por quatro horas, depois tem quatro horas de luz, esse é o cronograma aqui”, completa. 

Os intensos bombardeios russos na Ucrânia da última terça-feira (15) chegaram a gerar alardes de uma expansão do conflito, após surgirem relatos de que supostos mísseis russos teriam caído na Polônia, perto da fronteira com a Ucrânia, e matado duas pessoas. O Ministério da Defesa russo logo se pronunciou negando qualquer ataque ao país, classificando as insinuações como “provocação”. 

Nesta quarta-feira (16), a situação foi atenuada pela falta de indícios de que teria sido um ataque deliberado russo. O próprio presidente da Polônia, Andrzej Duda, reconheceu que era altamente provável que os mísseis pertencessem à Ucrânia. O presidente dos EUA, Joe Biden, após uma reunião de emergência dos líderes do G7, afirmou que os dados preliminares não confirmam que as tropas russas lançaram o míssil caído. O Pentágono disse que não pretende operar com especulações. 

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No entanto, incidente criou um cenário de animosidade a mais em relação à Rússia, deixando elevada a temperatura das declarações. De acordo com a porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, Adrienne Watson, os EUA responsabilizam a Rússia pela queda do míssil na Polônia, independentemente do resultado da investigação sobre o incidente. 

“Não vimos nada que contradissesse a avaliação preliminar do presidente Duda de que essa explosão provavelmente foi resultado de um míssil de defesa aérea ucraniano que, infelizmente, caiu na Polônia”, afirmou Watson, destacando que a Ucrânia "tinha e tem o direito de legítima defesa".  

Redefinição dos objetivos russos

Assim, a retomada do controle de Kherson por parte da Ucrânia e a continuidade dos bombardeios russos mostram que o conflito, ainda longe de uma perspectiva de fim, entra em uma nova fase. Para o cientista político Ruslan Bortnik, esta nova etapa pode ser um redesenho geográfico da estratégia militar russa. Segundo ele, “é possível que a derrota em Kherson force a Rússia a rever sua tática pela terceira vez na Ucrânia”.

“Se o primeiro plano da Rússia foi uma rápida tomada de Kiev com uma mudança do governo ucraniano, alcançando seus objetivos por esse caminho, o segundo plano da Rússia foi a tomada de Donbass, cercando as tropas ucranianas nessa região e reforçando a pressão sobre o sul da Ucrânia, mantendo ambições sobre as regiões de Nikolayev e Odessa”, analisa. 

O pesquisador afirma que “é possível que agora a Rússia se concentre apenas na margem esquerda do Rio Dniepre”. Desta forma o Rio Dniepre, que divide a Ucrânia praticamente pela metade, pode se tornar “uma nova linha de divisão política da Ucrânia”.

A Rússia, por sua vez, não reconhece que a retirada de Kherson tenha sido uma vitória da Ucrânia. De acordo com Moscou, o recuo foi um reagrupamento estratégico para poupar a vida de soldados russos e civis da região. A expectativa entre analistas pró-Kremlin é que Moscou consiga realizar uma nova ofensiva na região com o apoio dos soldados convocados na mobilização anunciada em setembro pela Rússia.

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É o que afirma o cientista político, Ivan Mezyukho, ao Brasil de Fato. Segundo ele, de acordo com a Constituição da Federação Russa, Kherson representa uma parte integrante do Estado russo. “Assim, ninguém abandonou Kherson, ocorreu um reagrupamento das tropas para combater o inimigo de maneira efetiva. E a Rússia necessariamente retornará à região de Kherson”, afirma o pesquisador, que atua como presidente do Centro de Educação Política regional da Crimeia. 

Portanto, se por um lado o cientista político observa que a retirada das tropas russas de Kherson não pode ser entendida como uma vitória da Ucrânia, ao mesmo tempo reconhece que Moscou passa por um momento delicado no campo de batalha. 

“É preciso entender que, diante da difícil situação da Rússia em Kherson, não foram todas as pessoas convocadas pela mobilização militar parcial (em setembro) que se encontram hoje no front. A grande maioria se encontra em treinamento antes de ir para o campo de batalha. Quando esses mais de 300 mil militares russos foram convocados pela mobilização militar parcial chegarem diretamente à linha de frente, aí sim começará uma nova fase [da guerra]”, destaca. 

Já para o diretor do Instituto Ucraniano de Política, Ruslan Bortnik, a situação de Kherson deixa o conflito em um beco sem saída para ambos os lados. Segundo ele, para a Rússia será muito difícil sair dessa situação justamente porque os territórios anexados de Kherson, Zaporozhye, Donetsk e Lugansk foram oficialmente fixados na Constituição da Rússia, portanto “qualquer forma de uma paz formal hoje representaria uma violação da legislação da Federação Russa”. O mesmo valeria para a Ucrânia, que ainda reivindica os territórios anexados como parte do país. 

“O que observamos hoje é um beco sem saída técnico-jurídico. Por isso, as partes só podem chegar a algum acordo sobre cessar-fogo. Uma paz de larga escala só é possível com uma mudança da Constituição da Rússia ou da Constituição da Ucrânia, porque ambos os países fixaram estes territórios como seus”, completa.  

Edição: Arturo Hartmann