Catar 2022

Sequência de títulos europeus na Copa do Mundo vem desde 2006: o que explica essa hegemonia?

Capitaneadas por Brasil e Argentina, equipes de outros continentes tentam tirar a taça de mãos europeias após 20 anos

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Franceses erguem o troféu da Copa do Mundo em 2018: europeus levaram os quatro últimos Mundiais - Kremlin / Wikimedia Commons

Quando Cafu ergueu a taça da Copa do Mundo no Japão, em 2002, o Brasil confirmou seu quinto título mundial: o nono troféu para seleções sul-americanas. Àquela altura, equipes europeias tinham vencido a Copa oito vezes. Sinal de uma disputa que sempre foi apertada desde a criação do torneio, na década de 1930. Desde 2006, porém, a situação mudou. Itália, Espanha, Alemanha e França, pela ordem, venceram as quatro últimas Copas, virando o placar entre os continentes para 12 a 9 em favor dos europeus. Não há como esconder: a Europa tem a hegemonia do futebol neste século.

Alguns outros dados ajudam a ilustrar a disparidade entre europeus e o "resto do mundo" - especialmente os sul-americanos, que sempre rivalizaram como grandes forças no futebol mundial.

Depois do título em 2002, o Brasil foi eliminado de todas as Copas do Mundo logo que enfrentou a primeira seleção europeia na fase eliminatória, os famosos "mata-matas". Em 2006, o time brasileiro passou por Gana (equipe da África), mas perdeu na sequência, quando encarou a França. Em 2010, o Brasil venceu o Chile (América do Sul) antes de encarar a Holanda e ser derrotado. Em 2014, vitórias sobre Chile e Colômbia (sul-americanos), e derrota por 7 a 1 para a Alemanha. E em 2018, após passar pelo México, o time brasileiro caiu ao encarar a Bélgica.

Com a Argentina a situação não é muito diferente. Na verdade, é até pior. A última vez que nossos vizinhos conquistaram o título foi no longínquo ano de 1986, ainda sob a batuta de Diego Maradona, vencendo a Alemanha na decisão.

Os argentinos foram eliminados por europeus em 1990 (perdendo para a Alemanha na segunda final consecutiva entre eles); 1994 (Romênia, oitavas de final); 1998 (Holanda, quartas de final); 2002 (perdeu para a Inglaterra na primeira fase e nem chegou aos mata-matas); 2006 (Alemanha, quartas de final); 2010 (novamente Alemanha nas quartas); 2014 (Alemanha de novo, desta vez na decisão); e França (2018, oitavas de final).

Outra situação sintomática é o domínio quase total dos europeus nas finais. Após 2002, só uma equipe de fora da Europa chegou à final: a Argentina, em 2014, na já citada final contra a Alemanha. Em 2006 e 2018, aliás, todos os semifinalistas vieram do chamado "velho continente". Com a bola prestes a rolar no Catar, cresce a expectativa: chegou a hora de mudar esse cenário?

Sem favoritos, com "candidatos"

O comentarista Paulo Vinícius Coelho, o PVC, que atua nos canais Globo, afirma que não vê uma Copa com favoritos, mas diz que há uma lista de "candidatos". A maioria, europeus: França, Alemanha, Inglaterra, Bélgica, Holanda e Espanha. Mas Brasil e Argentina também estão na disputa, e podem romper a hegemonia europeia das últimas quatro edições do torneio.

PVC afirma que o aumento do poderio econômico dos clubes europeus, aliado a mudanças de legislação das últimas décadas que permitiram que os clubes do continente se tornassem verdadeiras seleções internacionais, moldou as características do futebol, criando uma cultura que favorece a bola jogada nos países da Europa.

"Você cria para o futebol de clube uma cultura e um tipo de jogo europeu que não é o jogo que o brasileiro estava acostumado a jogar, que o argentino estava acostumado a jogar. Você muda a cultura do jogador brasileiro, do jogador argentino. Você passa a ter um tipo de jogo que o Europeu está acostumado. É um jogo globalizado, um jogo global. É o jogo que se joga na Inglaterra, na Itália, na Espanha. É natural que seja isso", disse ao Brasil de Fato.

O especialista aponta que a vida das seleções europeias também não tem sido fácil nos últimos anos, e equipes que antes eram mais frágeis hoje em dia dificultam os jogos contra as mais fortes. A Itália, por exemplo, está fora da Copa do Mundo pela segunda vez consecutiva, tendo sido eliminada da disputa ao perder em casa para a Macedônia do Norte.

"Basta você ver as seleções campeãs do mundo, e são europeias: a Itália campeã em 2006, foi eliminada na fase de grupos em 2010; a Espanha, campeã do Mundo em 2010, foi eliminada na fase de grupos em 2014; a Alemanha, campeã do mundo em 2014, foi eliminada na fase de grupos em 2018. O equilíbrio fico muito maior", ponderou.

Apesar de afirmar que há chances de o Brasil superar os adversários do "velho continente" e voltar do Catar com o troféu, PVC avalia que é necessário investimento para que o país volte a ser efetivamente um dos centros de desenvolvimento do esporte no dia a dia, nos clubes. E, ainda que o poderio econômico seja uma questão inescapável, não é o único fator envolvido.

"O Brasil não vai concorrer nunca com a economia da Alemanha, mas a Inglaterra já não concorre, e tem um campeonato melhor que o da Alemanha", afirma. "O que a gente precisa é se inserir na globalização no futebol. A gente pode ter um campeonato muito melhor, a gente precisa voltar a ser um centro produtor de cultura do jogo. A gente deixou de ser. O grande centro cultural do jogo hoje é Inglaterra, Alemanha, Espanha, Portugal", alertou.

Tentativa de imitar não dá certo

A jornalista e escritora Milly Lacombe, colunista do UOL e da revista Trip, não esconde: gostaria de ver o argentino Lionel Messi erguer o troféu naquela que deve ser a última Copa do Mundo dele. "Se houver uma explicação para a gente estar aqui, se houver um mistério maior, o Messi ganha. Existindo Deus, Deus não vai deixar o Messi se aposentar sem uma Copa do Mundo, embora ele tenha deixado o Zico, né?!", afirmou, aos risos.

Para Milly, os argentinos têm mais chances que os brasileiros no Mundial do Catar por uma razão: eles não abriram mão de jogar de acordo com a cultura futebolística histórica do país, "um futebol mais dramático, mais trágico, mais de entrega no campo", segundo ela.

Por outro lado, para a comentarista, o Brasil mudou muito para tentar bater de frente com o poderio financeiro do futebol europeu, especialmente após a traumática derrota para a Itália no Mundial de 1982, na Espanha, quando a seleção recheada de craques comandada por Telê Santana ficou sem o troféu.

"Quando o Brasil tenta imitar tatica e tecnicamente tudo o que acontece na Europa, jogando um futebol mais de lançamento, mais de cruzamento, menos de drible, menos de triangulação, ele perde muito do que ele teria de diferente para tentar furar esse bloqueio econômico. As seleções do Telê foram 'culpadas' por um futebol muito bonito que não ganhava. E a gente esqueceu de pensar que talvez existisse outra opção, que é jogar feio e perder", avaliou.

Para Milly, as conquistas brasileiras mais recentes, nas Copas do Mundo de 1994 e 2002, aconteceram por que havia jogadores de enorme talento que conseguiam "ser quem a gente é". Ela citou alguns dos craques daquelas conquistas, como Bebeto e Romário em 94; Ronaldo, Ronaldinho e Rivaldo oito anos mais tarde.

América do Sul na briga

O jornalista britânico Tim Vickery, que vive no Brasil há cerca de trinta anos, reforça a importância da questão econômica no domínio europeu recente, e afirma que isso interfere, por exemplo, na dificuldade que têm seleções da Ásia e da África, que raramente conseguem bater de frente com europeus e sul-americanos. Para ele, se a taça não voltar para a Europa, virá para a América do Sul.

"É uma Copa. Tem o fator de sorte numa Copa. É um tiro curto. Nem sempre o melhor ganha. Eu acho que o Brasil, apesar de ter sido surpreendido pela Bélgica quatro anos atrás, nos 90 minutos foi melhor, mas perdeu. A Copa sempre tem sorte. Mas quando essa sorte acontece a cada quatro anos, sempre, obviamente tem coisas a mais", destacou.

Para Vickery, um fator relevante deixa as análises um pouco mais difíceis: nos últimos anos, diminuíram os confrontos entre seleções da Europa e as dos outros continentes. Ele destaca que desde o encerramento da Copa do Mundo da Rússia, em 2018, o Brasil, por exemplo, só teve um jogo contra seleções europeias: um confronto contra a República Tcheca em amistoso em 2019.

"É difícil pesar a força relativa. Lembra um pouco das Copas da minha juventude, muitos anos atrás, quando você realmente tinha que esperar até a Copa pra descobrir a força das seleções de continentes diferentes. Mas, tanto Brasil quanto Argentina estão na briga, não precisam ter medo de ninguém. A Europa hoje em dia tem uma profundidade. Tem dez seleções da Europa que num dia feliz, com muita sorte, são capazes de vencer o Brasil. Mas acho que não tem ninguém que o Brasil não é capaz de vencer. A Argentina também, o processo da Argentina é impressionante. Em 2022 a América do Sul está na briga, sem dúvidas", resumiu.

Edição: Nicolau Soares