Desprotegida

Em Salvador, Lagoa do Abaeté pede socorro

Avanço urbano, obras nas dunas e esgoto: entidades e especialistas alertam para riscos à paisagem eternizada pela arte

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Crianças observam avanço da cidade nas dunas do Abaeté - ©Thiago Teixeira/AFP

Há milhões de anos, o recuo do mar formou – onde hoje é a cidade de Salvador (BA) – um conjunto de dunas que viria a se tornar símbolo da capital baiana e paisagem celebrada e eternizada pela cultura. 

A Lagoa do Abaeté, no bairro de Itapuã, é a última região desse tipo ainda preservada na cidade. Apesar de ser considera uma Área de Proteção Ambiental (APA) desde a década de 1980, ainda hoje sofre os impactos da ocupação urbana nos arredores e de intervenções arquitetônicas nas próprias dunas. 

Somente nos últimos três anos, as polêmicas envolveram a construção de uma estação elevatória de esgoto às margens da Lagoa, um projeto de urbanização liderado pela prefeitura de Salvador e até uma tentativa de mudar o nome do local para Monte Santo, em referência à presença constante de congregações evangélicas que usam o local para cultos.

A questão religiosa é permeada ainda por manifestações de intolerância contra povos de santo, da umbanda e do candomblé.

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“É um espaço poderoso, ancestral. Um espaço territorializado de longa data. Antes das próprias populações invasoras que vieram (para o Brasil), já havia ali ancestralidades que ocupavam esse espaço”, afirma o professor Marco Tomasoni, geógrafo da Universidade Federal da Bahia e que compõe Conselho Gestor da APA Lagoas e Dunas do Abaeté.

Mestre em antropologia pela Universidade Federal da Bahia, a artista e pesquisadora, Clara Domingas, cresceu no bairro de Itapuã e ainda jovem percebeu que vivia em um lugar de luta. Hoje ela atua no Fórum Permanente de Itapuã e no Conselho Gestor da APA Lagoas e Dunas do Abaeté, resultado da formação coletiva que a comunidade proporciona.

A militante relembra o impacto do assassinato do ambientalista Antônio Conceição Reis, conhecido como Antônio Come Lenha. Ele era presidente da entidade Nativo De Itapua - Grupo Ecologico Desportivo E Cultural e, em 2007, foi morto a tiros, às 7h30 da manhã de uma segunda-feira, em uma emboscada na frente da própria casa. 

“Como uma pessoa que teve infância aqui e que tem a restinga como essa paisagem constitutiva de base, fundacional e matricial, foi impactante ver ruas nascerem. Eu vi essas transformações muito rápidas. A morte do Come Lenha me chocou. Eu era mocinha e lembro dessa noção de zona de conflito.”

História de devastação

O que se conhece popularmente como Lagoa do Abaeté é uma área de dunas de areia branca, que margeiam uma lagoa de água escura e têm restingas de grande biodiversidade. Ela está dentro do Parque Metropolitano do Abaeté, que faz parte da APA Lagoas e Dunas do Abaeté.

Próxima ao aeroporto da Salvador, a região foi muito impactada pelo próprio terminal, mas também por empreendimentos imobiliários. Na vizinhança da lagoa, o crescimento da capital baiana nas últimas décadas fez se multiplicarem estruturas turísticas na orla e comunidades periféricas. A geração de esgoto e o uso da água pressionaram os recursos naturais de maneira incalculável. 

Um artigo publicado em 2020, assinado pelos pesquisadores Diego Idelfonso de Oliveira e Ricardo Galeno Fraga de Araújo Pereira (Instituto de Geociências da UFBA), traduz o estrago histórico em números. 

Entre os anos de 1976 e 2017 o crescimento de áreas urbanizadas dentro da APA foi de 1.161%. Houve redução de 14% das lagoas, 21% das dunas e 35% da vegetação nativa. O trabalho analisa o estado de conservação da APA Lagoas e Dunas do Abaeté com um mapeamento do local e uma avaliação sobre os conflitos ambientais.  

Embora o período de maior expansão urbana tenha sido registrado entre 1976 e 1989, com a construção do Polo Petroquímico de Camaçari, a ocupação irregular persiste até os dias de hoje. O ritmo de perda dos elementos naturais da área caiu, mas restam apenas pouco mais de 40% de área protegida. 

“A expansão urbana começou a entrar nos limites dessa área de proteção. Não só as populações de baixa renda, como também empreendimentos imobiliários grandes, que começaram a extrair água do subsolo. O nível da lagoa começou a reduzir em função das grandes demandas desses empreendimentos imobiliários. Um deles tinha um campo de golfe, que precisava ser irrigado constantemente. Ao mesmo tempo, a lagoa também acabou recebendo, em função do processo de urbanização, grandes quantidades de esgoto”, conta o professor Tomasoni.

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A pesquisadora Clara Domingas conta que essa explosão na ocupação já causa danos à paisagem há décadas. O desequilíbrio altera o solo, a água doce da região, o mar – que recebe as águas da lagoa – e até o vento. Ele pode causar o desaparecimento de todas as fontes e até a desertificação. O estrago impacta consideravelmente modos de vida milenares.

“Esse sistema de lagoas e dunas, toda a restinga, um sistema que envolve brejos, córregos, vegetação, modos de vida e modos culturais de múltiplas espécies. A Lagoa do Abaeté é um símbolo maior de um sistema todo ameaçado. Os relatos dos povos antigos e a memória ambiental das pessoas é de ter muitas fontes, muitas baixadas. Essa rica restinga com suas diferentes fisionomias tem sido empobrecida. ” 

Entre as intervenções mais polêmicas está a recente instalação de uma estação elevatória de esgoto às margens da Lagoa do Abaeté. A obra começou em 2020 e, apesar dos protestos da população, de entidades e personalidades, foi concluída.

Na época o governo da Bahia afirmou que a estrutura tinha autorização do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) e que não traria riscos à área de proteção. Mas organizações e a população afirmam que o perigo de que os resíduos extravasem é real e que nem mesmo o Conselho Gestor da APA foi ouvido no processo de definição da obra.  

Religiosidade nas dunas

Em setembro passado, a Defensoria Pública da União (DPU) ajuizou uma ação civil pública contra o município de Salvador e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A prefeitura da cidade é responsável por um projeto de urbanização na Lagoa do Abaeté. Já o Iphan foi cobrado para que agilize a análise do processo de tombamento do local.

Com obras em cima das areias das dunas, a proposta da prefeitura já está em andamento. A estrutura será composta por um prédio para recepção de visitantes, estacionamento, banheiros e outras edificações. Correm boatos na comunidade de que até mesmo um teleférico e uma escadaria seriam construídos.

Nos últimos anos, o local vem sendo usado por religiões evangélicas para cultos. Essa presença religiosa inspirou um projeto de mudança do nome de uma áreas conhecida como Dunas do Campo para Monte Santo, apresentado na Câmara Municipal. Frente a indignação da comunidade, o texto foi retirado de pauta.

O planejamento das obras foi apresentado à casa em maio pelo então secretário municipal de Infraestrutura e Obras Públicas da cidade, Luiz Carlos (Republicanos), pastor da Igreja Universal há mais de vinte anos. 

A presença evangélica na Lagoa do Abaeté é recente, mas a religiosidade e a espiritualidade estão no local há séculos. Inicialmente por meio de comunidades originárias e, após a invasão portuguesa, pela população negra trazida de maneira forçada do continente africano. A diferença é que, agora, o processo envolve a desconfiguração da paisagem original e contribui para a destruição da biodiversidade. 

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“Para nós, das religiões de matriz africana, as divindades só sobrevivem se houver essa parceria com o meio ambiente. Nós sobrevivemos das águas, das folhas, da vegetação de tudo que o nosso espaço sagrado nos oferta. Jamais o povo de religião de matriz africana iria destruir, com suas atividades, o meio ambiente”, ressalta a Ialorixá Maria Clara da Silva.

Ela vive na comunidade Nova Brasília de Itapuã há mais de cinco décadas. Mãe Cacau de Sobô, como é conhecida, é filha do terreiro Mina Jeje Guerebetā Gumé Sogboadã. A religiosa reforça o caráter sagrado do espaço e a obrigatoriedade de preservação.

“É por eles, é com eles e é por conta desses espaços que nós sobrevivemos. Uma vez que não temos espaços sagrados, também nossas religiosidades não poderiam existir. Em todos esses espações sagrados em Salvador, a religião de base foi candomblecista. Não havia ainda as religiões evangélicas. O que podemos, infelizmente, concluir, é que essas religiões começaram a partir para cima dos nossos espaços sagrados, porque isso faz parte da luta deles para tentar destruir as religiões dos povos oriundos de África.”

Mãe Jaciara Ribeiro, do terreiro da nação Ketu/Nagô Ilê Axé Abassá de Ogum, que também fica em Itapuã, explica que a natureza é fundamental para o Candomblé. Ela representa o próprio axé, energia sagrada essencial e responsável pela harmonia e pela prosperidade do mundo. 

“Cada orixá tem uma força muito importante da natureza. Oxum os rios, os lagos, as nascentes, as fontes. Oxossí as matas, a plantação, as árvores sagradas. Durante esses anos todos, é o povo do Candomblé que cultua sem impacto ambiental a essas entidades que moram nesses espaços. Para nós, ver outro segmento religioso cometer o racismo ambiental, o racismo religioso e a degradação desses espaços é muito doloroso.”

Jaciara é filha de Oxum, a orixá das águas doces muito presente no Abaeté. Para ela, o Abaeté “é a morada de Oxum, é a morada de Oxossi, é onde está toda a força do encantamento da ancestralidade que nós cultuamos. Em nome de todas as mulheres e homens arrancados na diáspora da África, chegando aqui em condição de escravos, hoje tentamos proteger esse espaço. Cuidar, proteger, replantar essa área, de grande importância para o universo, é também perpetuar o sagrado.”

Outro lado

A Prefeitura de Salvador foi procurada para comentar o assunto, mas disse que o tema é de responsabilidade do governo estadual, por meio do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema). O órgão não respondeu aos questionamentos enviados pelo Brasil de Fato por e-mail.

Edição: Lucas Weber