Ceará

Lei de Cotas

Entrevista | "Ascender socialmente por meio da educação já era uma demanda antiga do movimento"

Cristiane Sousa da Silva conversou com o Brasil de Fato sobre a Lei de Cotas e sobre o processo de heteroidentificação

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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A heteroidenficação tem por função fazer com quem, de fato e de direito, tenha acesso a essas vagas sejam os sujeitos negros e negras da nossa sociedade.
A heteroidenficação tem por função fazer com quem, de fato e de direito, tenha acesso a essas vagas sejam os sujeitos negros e negras da nossa sociedade. - Foto 01: Agência Pará; Foto 02: Rianne Paim / Estudantes NINJA

Novembro foi o mês escolhido para visibilidade às lutas contra o racismo e de fortalecimento da consciência negra no Brasil. Isso porque é celebrado no dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, uma homenagem a Zumbi dos Palmares e faz referência ao dia de sua morte. Muitas são as pautas do movimento negro no Brasil, um país em que o racismo possui traços coloniais e a marca do combate a pobreza.

Entre tantas batalhas, uma importante conquista que merece destaque foi a implantação do sistema de cotas no país. Este ano, a Lei de Cotas, promulgada no dia 29 de agosto de 2012, completa 10 anos. Mas como funciona o processo seletivo dentro das cotas? Você já ouviu falar sobre heteroidenticação? Sabe o que significa isso? Para responder essas e outras perguntas o Brasil de Fato conversou com Cristiane Sousa da Silva, professora doutora e mestre em educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará, vice-presidente da Comissão Institucional de Heteroidentificaçao do IFCE, e atualmente está na chefia do Departamento de Extensão Social e Cultural da Pró-Reitoria de Extensão do Instituto. Confira.

O que é heteroidentificação?

A heteroidentificação trata de um procedimento. Quando digo procedimento é que ele tem algumas características específicas. É algo que faz parte hoje, que é um processo complementar à autodeclaração. Então, quando você realiza processos seletivos em universidades federais, institutos federais você marca a opção da sua autodeclaração, ao marcar essa opção, ela sendo preta ou parda, você vai passar por esse procedimento de heteroidentificação, que ele é complementar à autodeclaração. Não é aquela coisa “Ah, esse procedimento é para dizer se a gente é negro ou não é negro?”, não. Não é sobre isso. É justamente para a gente coibir e dirimir aquelas pessoas que estão querendo burlar essas vagas.

Quem é sujeito de direito dessa política? São as pessoas negras. Quem são as pessoas negras no nosso país? É o somatório de pretos e pardos, logo, a reserva de vagas para negros é reservada para esses sujeitos negros que é o somatório dessas duas populações, mas que infelizmente, quando a gente começa a adentrar nos espaços de poder algumas pessoas começam a burlar esse processo.

Então a heteroidentificação é um mecanismo de avaliação dessa política pública e que tem o objetivo de dirimir de diminuir o número de fraudes. Ela tem por função fazer com quem, de fato e de direito, tenha acesso a essas vagas sejam os sujeitos negros e negras da nossa sociedade.


Então a heteroidentificação é um mecanismo de avaliação dessa política pública e que tem o objetivo de dirimir de diminuir o número de fraudes. / Agência Brasil

E como é que funciona a comissão de heteroidentificação em um processo seletivo?

Ela é um procedimento e ela vai variar de instituição para instituição. A banca de heteroidentificação está ligada mais diretamente, vamos dizer assim, com a Lei de Concurso, que é a 12.990 de 2014. Com a Lei 12.990 nasce a portaria nº 04 de 2018. O que é que diz essa portaria 04 de 2018? É ela que vai orientar as instituições: quais são as principais características de um processo de identificação, de um procedimento de heteroidentificação, o que é fundamental para esse procedimento acontecer. Então ela vai falar desde a composição da banca, desde a composição quantitativa e qualitativa dessa banca até os processos de recurso. Então ela orienta nesse sentido, mas as instituições têm essa autonomia, a partir dessas orientações, de fazer o seu procedimento de heteroidentificação, fica a cargo da instituição essa normatização desse procedimento, fazendo com que ele seja o mais humanizado possível. Por que que eu digo isso? Mais humanizado possível? É porque hoje estão colocando para a conta da heteroidentificação algo que está eliminando dos concursos. “Olha, esse procedimento está eliminando dos concursos, os processos seletivos”, como se fosse esse o procedimento que dissesse assim: “Olha, são vocês que estão dizendo se a gente é ou não é negro, que está fazendo com que a gente não fique dentro”, enquanto na realidade não é isso.

Na realidade, esse procedimento, que consiste nesse mecanismo, esse mecanismo de monitoramento de uma política pública está lá fundamentalmente para garantir o funcionamento dessa política de cotas. Então o que é que a gente preza? A gente preza, como a gente sempre prezou nos nossos processos, por um processo humano, humanizar esse processo que também é um processo educativo. A gente não pode esquecer que é um processo educativo porque na história da educação brasileira, na nossa história não se fala sobre a história de negros, não se fala sobre o que é ser negro, o que é ser pardo, o que é branco, não racializamos a discussão, infelizmente, que faz com que desague esse desdobramento desse silenciamento e faz com que nesses processos eu acabo assinalando que eu não sou.

Retomando a pergunta. Como é que se dá o procedimento? Eu sou professora do Instituto Federal, então vou dizer como é que acontece basicamente um procedimento de heteroidentificação no geral. Tem uma sala de acolhida onde o candidato vai assinar essa autodeclaração onde ele vai dizer se ele é preto ou pardo e esse formulário vai variar de acordo com a instituição. É importante que nesse espaço da acolhida o responsável pelo processo seletivo diga o que é heteroidentificação, como é o funcionamento da heteroidentificação, porque é um processo novo e inovador que as pessoas não sabem, então é importante. E como processo educativo, como eu falei anteriormente, é fundamental que quem esteja organizando o processo oriente esse candidato a dizer como é o procedimento daquela instituição.

No IFCE existem algumas salas e ela vai passar por essas salas, e é onde ele vai ficar mais tranquila em relação a esse processo também. Aí depois dessa sala de acolhida ele vai para sala de aferição. Nessa sala de aferição, dependendo também da instituição, a banca avaliadora é composta por três, ou cinco, tem instituição que é composta por sete pessoas, mas sempre em números ímpares, porque se tiver uma dúvida tem um voto de Minerva ali nessa banca. Então é importante ter uma banca ímpar justamente por isso. E nessa sala de aferição vai variar, tem instituição que tem entrevista, outras instituições têm uma pergunta de partida que ele só vai responder sim ou não: “você confirma sua autodeclaração como pessoa negra?”, esse candidato vai dizer sim ou não. Nessa sala de aferição tem uma pessoa gravando todo o procedimento para também dar lisura desse processo.

Então assim, acontece basicamente esses dois momentos, especificamente no IFCE, a gente tem uma outra sala que é a sala de fotografia, onde esse candidato é fotografado antes de ir para sala de aferição. Então ele tem a sala de acolhida, a sala de fotografia e a sala de aferição, onde na sala de aferição ele responde essa pergunta básica para poder dizer se ele é “sim ou não”.

É um procedimento rápido, mas é um procedimento que requer muita responsabilidade porque nós estamos lidando com sonhos, sonhos de pessoas que querem entrar em um concurso público, sonho de uma pessoa que quer adentrar na universidade, sonho de uma pessoa quer entrar no Instituto Federal. Então assim, é um processo que requer compromisso também em estar ali, nesse processo de complementação de confirmação dessa autodeclaração. Entenda que para os avaliadores não é fácil, é muito difícil, principalmente quando a gente vai falar sobre o pardo. Quem é branco a gente já sabe que vai indeferir, quem é negro preto a gente defere, mas o pardo ainda é esse nosso calcanhar de Aquiles, essa mestiçagem que fez com que hoje essas confusões acontecessem, e volto a falar novamente sobre o silenciamento dessa discussão nas nossas escolas que ainda é muito grande, e faz com que hoje as pessoas assinalem aquilo que elas não são à sua realidade.

É comum acontecerem casos de questionamento às decisões das bancas de heteroidentificação, e de pessoas brancas que se afirmam negras para concorrer dentro das vagas de cotas?

Sempre. Eu digo sempre porque... vamos lá, vamos contar uma história que ninguém conta que é sobre a sub-representação da população negra nos espaços de poder. Com as cotas houve esse alargamento das universidades para que a população negra pudesse adentrar nesse espaço de poder. Por que a universidade é um espaço de poder? Porque se eu falo que conhecimento é poder e esse conhecimento ele perpassa a universidade, ele é inerente à universidade, aos espaços escolares, então estou adentrando nesse primeiro espaço de poder.

A Lei de Cotas começa a romper com algo hegemônico. Quem era que tinha acesso anteriormente às universidades? Na sua maioria, pessoas brancas, então eu começo a não disputar, mas adentrar nesse mundo que também é da população negra, mas que foi negado por muito tempo. Então a Lei 12.711, que é a Lei de Cotas, é essa política de reparação do Estado brasileiro para com a população negra, por todos os danos causados e por toda a exclusão sofrida pela população negra. Então o Estado brasileiro disse assim: “eu preciso fazer isso porque é uma dívida histórica que eu tenho com essa população”. Por pressão também do movimento negro acontece que em 29 de agosto de 2012, tardiamente, esse Estado brasileiro vem reconhecer. No primeiro momento o movimento negro disse: “olha, eu quero cotas raciais”, porque antes mesmo da Lei de Cotas existir, em 2003 a UNEB já tinha uma lei, não era essa Lei, mas era uma lei de cotas raciais; a UNB já tinha essa lei de cotas raciais, então eram universidades estaduais que protagonizaram, vamos dizer assim, esse primeiro passo para a Lei de Cotas, mas em uma perspectiva racializada. Então a UERJ, a UNB e a UNEB foram essas protagonistas, as estaduais.

Vamos ter, mas vamos ter a Lei de Cotas Sociais, onde eu vou atrelar a questão econômica com a questão racial. Entende que também tem um gargalo dentro dessa lei? Porque ao mesmo tempo, se eu sou uma estudante pobre, negra e tenho uma bolsa em uma escola particular, por exemplo, que minha mãe conseguiu, ou que a patroa da minha mãe paga para mim, ou porque meu filho é bom no esporte e ele conseguiu a bolsa, essa pessoa não vai adentrar pelas cotas sociais. Por quê? Porque ela estudou em escola particular e a lei de cotas é só voltada para escola pública. Então esse grande gargalo que beneficia muito mais aos brancos pobres, se a gente for essa lógica, né? Então a gente entende que a Lei de Cotas vai priorizar e vai beneficiar as pessoas que são brancas pobres.


Protesto na Universidade de São Paulo (USP) por cotas raciais / Reprodução

Este ano a Lei de Cotas completou 10 anos. Neste mês da consciência negra você pode falar um pouco sobre as conquistas alcançadas com a Lei de Cotas?

A primeira conquista: romper com essa hegemonia branca nos espaços de poder. Acho que essa foi uma grande conquista. Ascender socialmente por meio da educação já era uma demanda antiga do movimento negro e antes mesmo da instituição da Lei, Abdias Nascimento já brigava por isso nos seus palanques. Ele era essa pessoa, defensor ferrenho dessa igualdade de oportunidades para negros, porque o que a gente fala é de oportunidade. Então, quando a gente fala de Lei de Cotas é oportunizar essa população por caminhos diferenciados de entrada, porque eu vou tratar os diferentes de forma igual, para que eu possa acessar da mesma forma. Então essa igualdade de oportunidade ela é fundamental nesses espaços onde há uma hegemonia branca e eu digo no mercado de trabalho, nas universidades, nos concursos públicos, porque a gente sabe, e aí volto a falar, nós somos fruto de uma hierarquia racial, então quem está lá no topo da pirâmide são os homens brancos, cis que constituem esse topo da pirâmide, e na base estão as mulheres negras.

Como é que a gente vai inverter a lógica? Como é que a gente vai inverter e fazer com que mais mulheres negras estejam no mercado de trabalho? Mais mulheres negras e homens negros estejam nas universidades? Na universidade indo para pós-graduação, concurso público? São pequenos grandes passos que nós temos dado. Aí quando eu digo pequenos grandes espaços é porque a gente falta caminhar muito. Alargar a entrada foi boa, mas a gente precisa também pensar na permanência dessas pessoas negras nas instituições, romper com os filtros raciais que faz com que a gente seja deixado para trás, esse meio do caminho ainda precisa ser cuidado. Quando eu digo “esse meio do caminho” é: “entramos na universidade, e agora?”, “entramos em um Instituto Federal, e agora?”, “entramos do concurso público, e agora?”.

Muitas vezes a gente ainda é o único daquele curso de medicina, as vezes a gente ainda é o único daquele curso de direito, e como é que eu vou terminar um curso diante de tantos percalços que esse caminho tem? Diante de tanto racismo que a gente sofre durante esse caminho? E aí é algo que também a gente precisa pensar: a permanência dessa população nos Institutos Federais, nas Universidades Federais e nos concursos públicos e acompanhar o final dessa jornada acadêmica que é a saída desse estudante para o mercado de trabalho.

Quando a gente fala da eficácia e eficiência de uma política pública como a política de cotas é pensar o acesso, a permanência e o acompanhamento desse cotista. Então são essas três vertentes que a gente precisa pensar.

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Edição: Camila Garcia