Entrevista

Alienação Parental: entenda como a lei coloca em risco crianças e mulheres

Advogada Andreza Santana explica origens e impactos dessa lei, criada para proteger casos de abuso sexual e pedofilia

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
"Se essa lei da alienação parental trouxesse a criança como eixo central, a gente não precisaria dela. A gente teria outros instrumentos", aponta Andreza - Arquivo pessoal

Nas últimas semanas, o Senado Federal divulgou uma consulta pública sobre a revogação da lei de Alienação Parental. Isso porque, no começo de novembro, peritos da Organização das Nações Unidas (ONU) apelaram ao novo governo para que eliminasse a lei, apontando que ela pode levar à discriminação contra mulheres e meninas e favorecer casos de violência doméstica e abuso sexual.

Para entender melhor essa discussão, entrevistamos a advogada Andreza Santana. Andreza é integrante do Instituto Baiano de Direito e Feminismos e especialista em violência obstétrica e direito da família.

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Brasil de Fato Bahia: A alienação parental é uma prática presente em muitas narrativas de família e em muitos lares disfuncionais, mas tem gente que sequer conhece o termo. Como você define alienação parental?

Andreza Santana: Quando a gente fala em alienar, a gente fala em separar algo. De tirar algo daquele lugar. Quando a gente fala da alienação parental, a gente fala – geralmente – de um sujeito ativo que retira uma criança do convívio, do estar com o outro familiar. Mas para falar de alienação parental e sobre a lei da alienação mesmo, a gente precisa ir à criação do conceito da Síndrome da Alienação Parental. 

Esse conceito foi criado por um psiquiatra norte-americano, Richard Gardner. Ele era um perito judicial que defendia homens que eram acusados de abuso sexual e pedofilia no Estados Unidos. Essa Síndrome foi um conceito criado por ele para fazer a defesa em processos em que esses homens eram acusados desses crimes. Ele dizia que as crianças, que eram ali o centro da discussão, tinham falsas memórias de abuso criadas pelas mães. Então, os abusos e estupros nunca aconteciam. Essas "mães ressentidas" que queriam retirar as crianças do convívio com os pais.   

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Foi esse conceito, a partir dessas defesas, que deu origem à lei que a gente tem. Por isso, desde a sua concepção ela é super problemática. Até porque essa Síndrome da Alienação Parental nunca foi reconhecida mesmo como uma síndrome ou como uma doença. 

Em 2022, a Lei da Alienação Parental (12.318/2010) completa 12 anos. Você poderia falar um pouco mais sobre as consequências dessa experiência na vida das crianças?

Toda criança tem o direito fundamental de conviver com ambos os pais. Isso é tão saudável para a criança quanto para os pais. É muito importante que as crianças tenham esse direito garantido, esse direito respeitado. Só que na prática dessa lei da Alienação Parental, a gente percebe que a criança é o sujeito menos pensado nesses conflitos existentes. 

O que acontece são pais, geralmente, homens, que utilizam a Lei da Alienação Parental para amedrontar mulheres para reforçar o estereótipo de gênero também no judiciário. Ao mesmo tempo, a gente vê que são homens que não fazem questão de participar da vida dessas crianças. Então, quando acham um motivo, uma brecha, vem aquela questão: "Ah, eu não vou pagar pensão? Não. Então vou pedir a guarda só pra mim". Aí traz a alienação parental como argumento. 

Na prática dessa lei da Alienação Parental, a gente percebe que a criança é o sujeito menos pensado nesses conflitos existentes 

O que a gente percebe são essas narrativas. Homens que usam o que está na lei para se beneficiar. Desta forma, a lei não observa os interesses da criança e, sim, o interesse desse pai. A gente precisa entender as miudezas. Entender a criança como o centro. Se essa lei da alienação parental trouxesse a criança como eixo central, a gente não precisaria dessa lei. A gente teria outros instrumentos, como na Constituição, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em outros locais para preservar essa criança. 

Um Projeto de lei foi aprovado em abril deste ano pelo Senado (PL 634/2022). O que mudou na lei? Quais os impactos dessa mudança?

A principal modificação foi em relação ao genitor ou genitora acusados de serem alienadores, que não perdem mais a guarda. Existem outras sanções presentes na lei que visam a preservação da criança, mas a perda do poder familiar, essa perda da guarda não é mais uma das sanções. Em grande parte dos casos não se comprova alienação e é muito difícil perder o poder familiar. Essa é a mudança mais relevante. 

O que acontece são pais, geralmente, homens, que utilizam a Lei da Alienação Parental para amedrontar mulheres para reforçar o estereótipo de gênero também no judiciário

Tem ainda a mudança de que visitas assistidas devem acontecer no prédio do Fórum em que tramita o processo ou em entidades conveniadas justamente para esses fins. Não é mais em qualquer outro lugar ou na casa de qualquer um dos genitores. E agora também é necessário laudo psicológico do processo e, não havendo profissional capacitado judicialmente para realizar esses laudos, o juiz pode designar perito da sua própria confiança. 

Um levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao longo da pandemia de Covid-19, diz que os processos de alienação parental dispararam no Brasil. Só em 2020, foram 10.950 ações em todo o país, o que representou um crescimento de 171% em comparação com 2019. Como interpretar esses dados? As famílias confinadas enfrentaram mais dificuldades de convivência? 

Houve alguns fatores que contribuíram para isso, como o aumento recorde do número de divórcios. Veio a pandemia, as pessoas estavam em maior convívio e se divorciando mais também. Esse é um ponto. Havia essa disputa da guarda com os filhos porque, separados, com quem ficavam essas crianças?

Outra questão que eu percebi na prática era – principalmente - pais que queriam levar a criança para situações de risco, festas. Ou que estavam com Covid e queriam continuar com o regime de convivência. Quando as mães diziam que não (ou porque eram pais que não queriam se vacinar e queriam expor essas crianças ao risco), os pais vinham com a questão da alienação parental. 

Se essa lei da alienação parental trouxesse a criança como eixo central, a gente não precisaria dessa lei

Outra coisa que eu percebi também na prática eram pais que queriam fazer chamadas de vídeo o tempo todo para as crianças. "Ok, não posso visitá-la, mas quero ligar para essa criança o tempo inteiro". E a criança sem aparelho celular, acaba demandando do celular da mãe. Essa mulher tinha que estar ali disponível o tempo todo para este pai ligar quando quisesse para essa criança. E quando a mãe não atendia ou estipulava horários, vinha novamente essa narrativa da alienação parental de que não queriam deixar essa criança conviver com esse pai. Agora, pós-pandemia, eu comecei a inserir nos acordos, nos processos, esse pedido de horários. 

Nos últimos dias, circulou uma Consulta Pública sobre a revogação da Lei da Alienação Parental (12.318/210) por considerar que tem propiciado desvirtuamento do propósito protetivo da criança ou adolescente, submetendo-os a abusadores. Pode explicar melhor toda essa repercussão e quais as brechas deixadas por essa lei? 

Quando a gente fala de atuar com mãe e mulheres, a gente percebe narrativas que reforçam estereótipos e que acabam vitimizando mulheres. Já atendi mulheres que conseguiram um trabalho em outro estado e não sabem o que fazer para aceitar esse trabalho, porque estão com a criança e se mudarem de estado o pai vai acusar de alienação parental. Ou seja, a mulher acaba tendo que viver uma vida fechada, limitada, porque tem medo do pai usar essa narrativa de alienação. 

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A gente não pode afirmar que não existam pessoas que utilizam a criança como uma forma de atingir outras, mas isso não é a regra. Na maioria dos casos, a gente vê mulheres sobrecarregadas. Mulheres com medo. Mulheres que acabam parando a vida inteira para cuidar das crianças. Enquanto homens vão refazer as suas vidas. São pais ausentes. E quando querem, ainda se favorecem de toda uma narrativa para benefício próprio. 

Existe o desvirtuamento desse propósito e, como eu falei, a criança ou adolescente é o último a ser pensado nessa discussão judicial. Quando a gente fala da luta de advogadas feministas que atuam com mães e mulheres que passam por esses processos, a gente atua para o bem delas e no combate a abusadores e estupradores usarem essa lei como forma de se defender. 

Fonte: BdF Bahia

Edição: Lorena Carneiro