DENÚNCIA DO BDF

Comissão da Presidência absolve assessor de Bolsonaro que vendeu cursos para o próprio governo

Com cargo de confiança no Planalto, servidor abriu empresa e ganhou R$ 17,2 mil do Ministério da Infraestrutura

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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David Lustosa e Jair Bolsonaro: ex-assessor da Casa Civil teve caso arquivado por Comissão de Ética da Presidência - Divulgação | Montagem: Brasil de Fato

A Comissão de Ética da Presidência da República tomou uma decisão controversa na sua última sessão, realizada em 8 de dezembro deste ano. Com pauta única, a reunião decidiu pela absolvição de um servidor que ocupava cargo de confiança no Palácio do Planalto no governo de Jair Bolsonaro (PL) e, ao mesmo tempo, vendeu cursos para o próprio governo federal.

O caso foi revelado pelo Brasil de Fato em fevereiro deste ano. A reportagem, que serviu de base para o processo aberto na Comissão de Ética, mostrou que dois funcionários concursados do Poder Executivo Federal receberam, por meio de uma empresa criada por eles, o valor de R$ 17,2 mil do Ministério da Infraestrutura para oferecer um curso a servidores da pasta.

Apenas um dos servidores teve o caso analisado pelo órgão que apura conflitos de interesse no Palácio do Planalto: David Antonio Lustosa Oliveira, que ocupava o posto de gerente de Informações Estratégicas da Casa Civil. O sócio dele, Orlando Oliveira dos Santos, permanece como diretor de Gestão da Informação da Presidência e não foi alvo de investigação.

A ata da reunião da Comissão de Ética da Presidência da República de dezembro registra que o arquivamento do caso se deve, na visão do colegiado, "em face da ausência da prática de infração ética por parte do denunciado". Clique aqui para fazer o download da íntegra do documento, que está disponível no site do governo federal.

:: Assessores de Bolsonaro criam empresa e vendem curso ao Ministério da Infraestrutura ::

"A Comissão de Ética, considerando os fatos relatados e todo o conjunto probatório, deliberou, por unanimidade dos membros presentes, pelo arquivamento da denúncia apresentada em desfavor de David Antonio Lustosa de Oliveira, o então coordenador-geral de Informações Estratégias da Casa Civil da Presidência de República, em face da ausência da prática de infração ética por parte do denunciado", diz o texto.

A sessão da comissão é a última antes da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Os membros responsáveis pelo arquivamento do caso têm mandato para ocupar os cargos. Porém, como são representantes de órgãos do Palácio do Planalto, podem ser substituídos caso não estejam mais na estrutura administrativa da Presidência na próxima gestão.

Relembre o caso

Os dois servidores abriram, juntos, em setembro de 2020, uma empresa chamada Govintelligence para prestar consultorias para governos na área de inteligência de dados. Em novembro de 2021, pouco mais de um ano depois da fundação da empresa, a Govintelligence recebeu o valor do Ministério da Infraestrutura.

A informação foi obtida pelo Brasil de Fato no Portal da Transparência e confirmada pelo governo federal. O valor é quase o máximo para que o Executivo possa contratar uma empresa sem licitação ou concorrência pública.

No início da gestão de Bolsonaro, os dois servidores foram alocados em cargos de confiança na Casa Civil da Presidência, então sob o comando de Onyx Lorenzoni (atualmente, ministro do Trabalho e da Previdência) e mantidos sob a chefia dos generais Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto e do atual ministro, o senador licenciado Ciro Nogueira (PP-PI).

Na época da contratação da empresa, o Ministério da Infraestrutura era comandado por Tarcísio Gomes de Freitas, um dos chefes da Esplanada mais próximos a Bolsonaro. Em outubro, ele foi eleito governador de São Paulo, com o apoio do presidente.

"Drible" na lei?

Funcionários públicos federais são proibidos por lei de participar como sócios-administradores ou gestores de uma empresa. No papel, os dois servidores constam apenas como “sócios” da GovIntelligence. A sócia-administradora é Maynnã Barros do Amaral Lustosa, esposa de David. 

Nas redes sociais, contudo, a suposta gestora da empresa não cita experiência na área de dados ou da gestão pública. Maynnã Barros do Amaral Lustosa se identifica no Instagram como a "Blogueirinha de Deus" e relata uma rotina voltada à religiosidade, além de gravar vídeos para o YouTube sobre maternidade.

A reportagem tentou contato telefônico com a Govintelligence, mas o número fornecido no site não existe. Em resposta a e-mail, a empresa disse que não poderia fornecer um outro telefone, pois a sua sócio-administradora, Maynnã Barros do Amaral Lustosa, estaria "com sintomas gripais". Em seguida, as perguntas foram enviadas por escrito.

A mensagem de resposta enviada pela empresa diz que Maynnã tem "experiência de 8 anos como professora e coordenadora pedagógica atuando em escolas públicas e privadas", com licenciatura em Ciências Naturais e pós-graduação em andamento em Marketing Digital. Questionada sobre uma possível irregularidade, a Govintelligence disse que "não identificou existência de conflito de interesses".

Conflito de interesses?

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato apontaram que o Regime Jurídico Único, legislação que regula as condições de trabalho dos servidores públicos federais, determina a proibição de "exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho" e da "acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas".

Lei de Confilto de Interesses proíbe os servidores de atuar, ainda que informalmente, "como procurador, consultor, assessor ou intermediário de interesses privados nos órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União" e de "praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes ou afins".

Os advogados ligados à área do Direito Administrativo consultados pela reportagem, contudo, afirmaram que as normas não são claras sobre a prestação de serviços de empresa de servidores ao próprio governo. Mesmo assim, foram unânimes em apontar que a contratação pode representar um problema do ponto de vista ético.

"Gestão inteligente"

O site da Govintelligence não cita quem são os profissionais responsáveis pela operação. O slogan da consultoria é “inteligência analítica para governos”. “Conhecemos a fundo a realidade da gestão pública, sua natureza, desafios e limitações. Nossas ofertas são focadas nesta realidade, de forma que você seja capaz de implementar os projetos em sua área de forma ágil”, diz a descrição.

“Podemos te ajudar a promover uma gestão governamental inteligente, pelo uso de dados e tecnologias para melhoria dos serviços prestados aos cidadãos”, afirma o site da empresa.

A Govintelligence também não divulga os clientes que já atendeu. Os perfis da consultoria no Instagram e no LinkedIn não possuem publicações. Um dos poucos seguidores da conta no Instagram é um usuário com o mesmo nome de Orlando Oliveira dos Santos. O perfil não tem publicações. Entre as 16 pessoas que acompanha, estão Bolsonaro, o ministro Onyx Lorenzoni e Ernesto Araújo. O perfil de David Lustosa no Facebook mostra curtidas nas páginas do Movimento Brasil Livre (MBL) e de apoio à comentarista Rachel Scherazade.

Íntegra da nota da Casa Civil da Presidência (fevereiro de 2022)

Não era de conhecimento da Casa Civil a participação dos referidos servidores na empresa citada, nem a prestação de serviços ao Ministério da Infraestrutura. Informamos que será enviada consulta à Comissão de Ética da Presidência da República sobre a existência de conflito de interesses na situação relatada.

Íntegra da nota do Ministério da Infraestrutura (fevereiro de 2022)

A contratação foi realizada respeitando todos os parâmetros legais, que prevêem, entre outras iniciativas, a verificação das certidões da empresa e a pesquisa de mercado. A Lei 8.112/1990 permite que o servidor público participe como acionista em empresa privada e veda a contratação pelo órgão que ele é nomeado originalmente.

Informamos que o curso foi ministrado por David Antonio Lustosa, com os serviços prestados e atestados pela área de capacitação da Coordenação Geral de Pessoas do Ministério da Infraestrutura, que acompanhou a execução e a certificação dos alunos. O curso ocorreu de forma virtual entre 27 de setembro e 3 de novembro de 2021.

A capacitação em Business Intelligence, com foco na utilização da ferramenta "Microsoft Power BI" – solução institucional contratada pelo MInfra como parte do pacote Office 365, estava prevista para 2021 no Planejamento de Desenvolvimento de Pessoas do ministério e no Programa de Transformação Digital Minfra 2021.

Para oferecer a qualificação, o MInfra realizou pesquisa de mercado com instituições e instrutores. A escolha da Govintelligence LTDA se deu em virtude do melhor custo-benefício, considerando carga horária, valor da hora e valor total do curso.

Íntegra das respostas Maynnã Barros do Amaral Lustosa, sócia-administradora da Govintelligence

1) Qual a formação acadêmica e a experiência profissional da senhora?

Pós-Graduanda em Marketing Digital, Licenciada em Ciências Naturais, Experiência de 8 anos como professora e coordenadora pedagógica atuando em escolas públicas e privadas. Atuei em projetos de pesquisa na áreas educacional.

2) A senhora coordenou uma formação direcionada a 37 servidores do Ministério da Infraestrutura em novembro do ano passado?

Sim.

3) Quais foram os demais membros da equipe da empresa no desenvolvimento da referida formação?

David Antonio Lustosa de Oliveira - Instrutor.

4) Quem/quantos são os profissionais vinculados diretamente à empresa formalmente?

Somos uma startup e esta foi por enquanto a nossa primeira e única contratação, então ainda não houve a necessidades de contratações de equipes adicionais.

5) A senhora é casada com o servidor público federal David Antônio Lustosa?

Sim.

6) A senhora, como sócia-administradora, não calculou o possível conflito de interesses existente na prestação de serviço ao mesmo ente público que os servidores Sr. David Lustosa e Sr. Orlando dos Santos, sócios da empresa, são vinculados?

Não identificamos existência de conflito de interesses.

Edição: Rodrigo Durão Coelho