Coluna

Conto do ano sem fim

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Ataques cotidianos aos nossos direitos não nos encontram inertes, mas em luta, aprendizados e resistência constante - Matheus Alves
Entre prazeres e derrotas, seguimos em águas turbulentas

Por André Cardoso* e Cristiane Ganaka**

 

Em poucos dias, não apenas mais um ano irá se findar, mas também chegará ao fim uma visão de Brasil, ou pelos menos parte dela. E como estamos? Exaustos! 

Também não é para menos: a alta nos preços dos alimentos fez muitas fontes de nutrientes virarem vilões, itens básicos como o café, o tomate, a carne, o leite, a cenoura desfilaram entre inimigos do bolso do brasileiro. Mas o que está por trás dos altos preços é o modelo de produção de alimentos. Segundo a própria Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), foi o aumento no custo dos agrotóxicos e rações vindos de fora que pesou. Essa forma de produzir dependente de insumos estrangeiros, além de nos envenenar, agora nos empobrece. Os combustíveis também não ficaram para trás e tiveram altas históricas. A explosão dos preços é resultado da política de Preço de Paridade de Importação (PPI), que reajusta o valor dos combustíveis no país de acordo com a variação do petróleo no mercado internacional em dólar; isso traz o encarecimento em toda economia devido a circulação da mercadoria, e ainda garantiu  lucros extraordinários aos acionistas privados da Petrobras. 

O saque dos bens comuns seguiu gerando destruição. O desmatamento na Amazônia já tinha atingido a pior marca da série histórica faltando ainda mais de dois meses para acabar o ano, segundo dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe) apurados até 21 de outubro. Já o avanço do garimpo e mineração ilegal, além de abrir estradas e levar máquinas a territórios que deveriam ser protegidos, trazem também mortes e mazelas aos povos da floresta. 

O negacionismo científico trouxe consigo não só o terraplanismo, mas também legitimou o discurso anti vacina para além da Covid-19. Vivemos ameaças sanitárias por conta do baixo nível de vacinação da população, de acordo com a Fiocruz. E a fome segue se agravando. Conforme o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, 33,1 milhões de pessoas não têm garantia se vão comer, isso significa que 58,7% da população brasileira convive com algum grau de insegurança alimentar cotidianamente. Diante desse cenário de tamanha vulnerabilidade, o povo teve que esperar o uso eleitoral do Auxílio Brasil para usufruí-lo. 

Os ataques golpistas à democracia e suas instituições promovidos pelo atual governo não são de hoje, eles só escalaram durante a corrida eleitoral e não deram trégua após a derrota de Bolsonaro nas urnas. O questionamento da integridade das urnas eletrônicas foi o mais expressivo, mas não podemos esquecer todos os demais ataques, como o crime eleitoral cometido pela deputada Carla Zambeli. A violência crescente promovida pelo discurso de ódio se reflete não só no campo político, mas também nos altos índices de feminicídio, como aponta o estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública: o número de feminicídios registrados no primeiro semestre deste ano é 10,8% maior em relação ao mesmo período de 2019. 

Já o alto endividamento das famílias, com destaque para os mais pobres, junto a uma taxa Selic que voltou aos dois dígitos, será outro desafio do próximo governo. O endividamento bateu o  recorde de 68,4 milhões de pessoas inadimplentes em setembro deste ano, conforme a Serasa Experian. Já a taxa básica de juros que está na casa dos 13,7% tem uma previsão de cair apenas dois pontos em 2023, devendo ficar em 11,7%, segundo o Relatório Focus. Também houve aumento da população em situação de rua, segundo pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na última década, a população de rua cresceu 200%. O empobrecimento e o endividamento da população, duramente afetada pela crise sanitária, também é reflexo do alto patamar de desemprego e da queda dos rendimentos da classe trabalhadora. 

Mas a vida é movimento, e como dizia o poeta Guimarães Rosa, tudo que ela nos exige é coragem. Os ataques cotidianos aos nossos direitos e a vida não nos encontram inertes, mas em luta, aprendizados e resistência constante. Nossa exaustão não é de derrota, mas semelhante ao atleta que coloca todas as suas forças para superar os desafios da prova que vê à frente. As ruas não foram abandonadas pelos diversos movimentos populares e organizações políticas, pelo contrário, o ano inteiro eles se mantiveram na luta em defesa do povo e pedindo justiça, como no caso do jovem congolês Moise Kabagambe, o ato em defesa da Terra e contra o pacote de destruição, em Brasília. A mobilização nacional “Bolsonaro nunca mais”, que denunciou o aumento dos preços dos alimentos, dos combustíveis e da corrupção do governo, foi um desdobramento das jornadas de luta de 2021. Isso, sem falar das tradicionais datas de luta e mobilizações, como o 8 de março, o abril vermelho, o 1º de maio, o dia do estudante em agosto e o Grito dos Excluídos em setembro, entre outras. 

Mais do que ocupar as ruas, as ações de solidariedade como uma política de garantia de uma vida digna para o povo foram permanentes, tanto no desenvolvimento e construção das cozinhas solidárias, na doação de milhares de toneladas de alimentos para famílias em situação de vulnerabilidade, ações coletivas de combate a fome e marmitaços, quanto nos debates e formações sobre soberania alimentar e alimentos saudáveis. Fomos aprendendo e desenvolvendo com os movimentos populares organizados a não apenas resistir, mas criar novas formas de sociabilidade, em comunhão e igualdade.

Como uma forma de organização popular, foram criados os comitês populares, que tinham como tarefa mais imediata a luta pela vitória dos candidatos e candidatas comprometidos com as mudanças políticas e sociais e na vitória do Lula à presidência da República. À longo prazo, os comitês cumprem a tarefa manter de pé a luta e a manutenção dos direitos do povo, garantindo a posse do novo presidente, resistindo às tentativas de golpe e defendendo as mudanças necessárias para a população. 

A vitória de Lula foi um banho de esperança. Após um longo processo de perseguição política, midiática, judicial e o encarceramento injusto por 580 dias, ele foi eleito à presidência pela terceira vez, com 60,3 milhões de votos, conseguindo unificar as forças populares, resgatar a confiança de sua base militante e contagiar a sociedade. A luta e organização dos comitês populares, dos movimentos sociais e dos partidos políticos ligados à Frente Ampla pela Democracia foram vitoriosas. 

O horizonte ainda é de muitos desafios. A equipe de transição do governo Lula parece ter aberto um armário onde toda a bagunça dos últimos anos estava sendo escondida. As projeções econômicas para 2023 sinalizam para mais um ano de baixo crescimento e desemprego elevado para o Brasil, e para o mundo já se fala em uma recessão no horizonte. Sem contar o desequilíbrio emocional do mercado, que a cada anúncio reage de forma irracional. 

Entre a sensação de um caldo atrás do outro nesse mar de devastação, depois de muitas braçadas, conseguimos colocar o pé no chão, tomar um fôlego e continuar a travessia da vida. Entre prazeres e derrotas, seguimos em águas turbulentas.

Vamos romper o ano trazendo uma bagagem que não vem apenas do governo anterior, mas também da formação social do Brasil interrompido. "O povão tá aí, com uma fome que é espantosa. Por que há fome nesse país?", escreveu Darcy Ribeiro há quase 30 anos. Dia primeiro de janeiro estaremos juntos na posse do presidente Lula, ao mesmo tempo em que comemoramos e nos fortalecemos para mais um ano que virá nesse grande Festival do Futuro, colocando mais uma vez em prática o que este último período nos ensinou: a solidariedade, a construção coletiva e a união nos acampamentos temporários ali montados, nas cozinhas comunitárias e na cultura popular de resistência e criatividade. Seguimos inconformados e esperançosos, juntos com aqueles que aceitam a aventura brasileira de Darcy Ribeiro de tornar o país aquilo que pode ser por meio da luta política: uma coisa nova, que nunca existiu. 

Nos despedimos de 2022 com os versos de ‘Novas Auroras’, da Nação Zumbi: 

 

Feliz pelo que ainda não veio

E saudades do que nem foi

Esperando o melhor dos agoras

Nem temos o antes e já queremos o depois

 

*André Cardoso é economista e coordenador do escritório Brasil do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Cristiane Ganaka é economista e pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

***As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo