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Refugiados afegãos acampam no aeroporto de Guarulhos

Antes de poder seguir a vida no Brasil, famílias passam semanas em abrigos improvisados no aeroporto paulista

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Entidades de proteção alertam para risco de tráfico humano e aliciamento para trabalho exploratório - Gustavo Basso / DW

Nabila Hassani mostra um sorriso nervoso quando questionada se tem conseguido tomar banho. Faz seis dias, desde que chegou ao Brasil, que ela não tem acesso a um chuveiro. Acampada em um corredor do terminal do aeroporto de Guarulhos junto com o marido, Nabila se preocupa sobretudo com o filho de 1 ano, que usa fraldas e conta apenas com toalhas umedecidas para higiene.

Desde que desembarcaram no maior aeroporto internacional do país vindos de Teerã, Nabila e a família se juntaram a dezenas de conterrâneos afegãos que buscam escapar do regime do Talibã, que tomou o poder do país em agosto de 2021.

Mais de 70% dos novos refugiados têm entre 18 e 59 anos, e mais da metade deles possui formação universitária. São pessoas qualificadas que, por medo da perseguição estatal promovida pelo Talibã ou de criminosos comuns, colocaram as vidas inteiras em um par de malas e viajaram a um país cuja língua não conhecem e sem conterrâneos para os receber.

Brasil tem tradição de acolher refugiados

Em setembro do ano passado, o governo brasileiro publicou a Portaria Interministerial 24, que garante aos afegãos o direito a visto humanitário. Foi uma medida única na América Latina e que segue uma tradição da política externa brasileira de dar acolhida a imigrantes que fogem de conflitos em seus países, como ocorreu com os bolivianos no início dos anos 2000 e com os ucranianos em 2022.

Apesar da tradição, a chegada dos afegãos apresentou novos desafios às autoridades brasileiras. "É um cenário absolutamente novo. Além da barreira linguística, com muito poucas pessoas falando dari ou pashto, não há no Brasil uma comunidade conterrânea, fruto de uma diáspora prévia, como com os ucranianos ou sírios", explica Ana Beatriz Nogueira, chefe do escritório da Agência das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) em São Paulo.

Um breve resumo da história do Talibã

Dari e pashto são os dois idiomas mais falados no Afeganistão. O pashto é falado pelos membros do Talibã, cuja maioria é da etnia Pashtun, enquanto o dari é falado, entre outros povos, pelos Hazara, que compõem a maioria dos que ainda acampam no aeroporto. De toda a história que os talibãs têm com outros grupos afegãos, nenhum é mais torturado do que a minoria Hazara.

"O Talibã diz que devemos ser chutados para fora do país ou capturados", diz Nabila, que não quer ter seu rosto fotografado por medo de represálias à família.

Quando os talibãs tomaram o poder no Afeganistão pela primeira vez, em meados da década de 1990, os militantes mataram, raptaram e deportaram milhares de Hazaras xiitas, declarando-os infiéis. Eles também destruíram patrimônio cultural Hazara e ampliaram a sua marginalização política e econômica. Dezenas de milhares de Hazaras fugiram do país. Essa dualidade étnica é retratada, por exemplo, no filme O caçador de pipas, que traz uma família Pashtun rica cujo empregado doméstico é da etnia Hazara.

Fuga dramática após queda de Cabul

O irmão de Nabila era tradutor das tropas americanas que ocuparam o Afeganistão de 2001 a 2021. Com a retirada dos militares e a tomada de Cabul pelo grupo militante em 15 de agosto do ano passado, ele conseguiu embarcar em um avião no mesmo dia e hoje vive no Texas, Estados Unidos. Nabila teve sorte diferente.

Pouco depois da tomada do poder, seu marido, que trabalhava no Ministério da Defesa afegão, foi demitido. Ela, funcionária da Universidade Gawharshad, em Cabul, foi cortada pouco tempo depois. Com um bebê para criar e sem empregos, emigraram para o Irã, onde passaram alguns meses fazendo bicos e aguardando o visto humanitário emitido pela embaixada brasileira em Teerã.

Segundo o Acnur, é da capital iraniana e de Islamabad, capital do Paquistão – ambos vizinhos do Afeganistão –, que saem quase todos os vistos para afegãos. De setembro de 2021, quando entrou em vigor a Portaria 24/2021, a dezembro de 2022, foi autorizada pelo governo brasileiro a emissão de 6.300 vistos humanitários a afegãos. No mesmo período, chegaram ao país 3.367 pessoas, quase todas por Guarulhos.

Serviços de acolhimento sobrecarregados

A intensificação das entradas a partir de maio deste ano sobrecarregou as entidades públicas que acolhiam esses recém-chegados. O Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, serviço municipal de Guarulhos localizado dentro do aeroporto, registrou um total de 1.838 atendimentos de afegãos desde janeiro de 2022, com uma média de 278 atendimentos por mês a partir de junho.

"O Posto Avançado não tem capacidade para isso, nem mesmo preparo, pessoal que fale o idioma, o que prejudica muito, já que são poucos os afegãos que falam inglês. E não há uma acolhida melhor porque não houve coordenadoria federal ou estadual, quebrando um conhecimento e capacidade de anos que o Brasil tinha de receber migrantes", reclama Paulo Illes, representante da ONG francesa Organização para Cidadania Universal, que trabalha pelos direitos de migrantes em todo o mundo.

Entre setembro e novembro, o número de pessoas acampadas chegou a quase 300. Nas últimas semanas de dezembro, baixou para 80, mas ainda com algumas pessoas vivendo no aeroporto por mais de duas semanas antes de serem encaminhados para abrigos nos municípios de Guarulhos e São Paulo.

Risco de tráfico humano e aliciamento

Por todo o mezanino do Terminal 2 do aeroporto transitam crianças, às vezes com bolas, outras apenas tentando passar o tempo de alguma forma. No mesmo espaço, um cartaz escrito em persa e inglês alerta: "Tráfico humano existe, não aceite ajuda de ninguém!"

"Antes de mais nada, precisamos tirar as pessoas do aeroporto, sobretudo as crianças. Aquele espaço não é seguro ou mesmo adequado para adultos, que dizer para crianças", completa Illes. "Não existe abrigo para refugiados, ali qualquer um transita, as crianças rodam por todo espaço, é um perigo enorme."

Pessoas foram vistas rondando o acampamento improvisado tentando aliciar afegãos para trabalho irregular, diz Swany Zenobini, vice-presidente do Coletivo Frente Afegã. "Vemos muitos casos, mesmo entre os que já conseguiram um abrigo ou local permanente para morar, de trabalho sem carteira assinada e exploração para sobreviver. O que mais vemos é dono de empresa 'malandro' querendo se aproveitar de gente em situação vulnerável", afirma.

Desde agosto ela atua no aeroporto e já soma uma rede de 140 voluntários, 50 deles trabalhando diretamente e frequentemente no aeroporto. "Quem combate o tráfico humano é a sociedade civil. Se dependessem exclusivamente do poder público, os afegãos estariam em situação muito pior", diz Zenobini.