Retomada

Em quatro anos de Bolsonaro, área da saúde perdeu verba, qualidade e capilaridade

Novo governo assume com bilhões a menos para o setor e enfrenta desafio de reconstruir atenção primária

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Arte de rua no Rio de Janeiro protesta contra ações do governo ao longo da pandemia. - Mauro Pimentel/ AFP

A proposta orçamentária para financiamento de ações em saúde no ano que vem, deixada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), reduz os investimentos no setor em R$ 22,7 bilhões de reais. O tombo é um espelho do que a gestão atual do governo federal representou para a área, especialmente para o Sistema Único de Saúde (SUS).

Desde antes de ser eleito, Bolsonaro expunha a defesa de um projeto privatista para o SUS no próprio programa de governo. O documento não trazia nenhuma proposta de garantir mais financiamento para a saúde.

Em 2019, quando a gestão de extrema direita teve início, o orçamento do setor já estava comprometido por causa do teto de gastos. A limitação foi gestada e aprovada quando Michel Temer (PMDB) ocupava o Palácio do Planalto, após o golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT).

Com a Emenda Constitucional (EC), o investimento no SUS, que era de 15,77% da receita corrente liquida em 2017, caiu para 13,54% em 2019. O texto prevê que a verba ficará sem nenhum tipo de reajuste acima da inflação durante vinte anos.

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Getúlio Vargas de Moura Júnior, coordenador adjunto da Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS) lembra que o desfinanciamento do SUS é um problema histórico.

"Na Constituição de 1988 e na lei do SUS em 1990, já falávamos no debate do financiamento da saúde. Ela nunca teve os recursos necessários para cumprir todos os desafios que estão colocados. Então, precisamos compreender que, de 1990 até 2016, os recursos sempre foram menores do que as necessidades. Com o teto de gastos, partir de 2016, temos um processo de aprofundamento. Aquela área que, historicamente, já não teve os recursos necessários, passa a ter um processo de esvaziamento, de desmonte, que fragiliza ainda mais."

O presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde, Franciso Funcia, professor na Universidade Municipal de São Caetano, afirma que as perdas decorrentes do teto de gastos e dos cortes da gestão Bolsonaro podem chegar a R$ 60 bilhões. Ao longo das duas décadas previstas com o teto de gastos em vigor, o Brasil perderia 30% dos investimentos em saúde.

"Para quem gosta de filmes de ficção, se vivêssemos na realidade de um filme de ficção, você congelaria também a vida das pessoas. Congelaria a sociedade e, 20 anos depois, volta todo mundo na situação que estava. Mas a vida continua, não é? As necessidades de saúde da população, as necessidades de educação continuam. A população cresce a uma taxa de 0,8% ao ano, a taxa de crescimento da população idosa é de 3,8% ao ano. Infelizmente, é uma história de terror."

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A única movimentação do governo de Jair Bolsonaro para ampliar o orçamento da área ocorreu em 2020, primeiro ano da pandemia da covid-19. Em março daquele ano, foi decretado estado de calamidade pública, o que abriu a possibilidade de furar o teto de gastos. Ainda assim houve morosidade na aplicação dos recursos. Até a primeira semana de junho de 2020 a maior parte dos valores sequer tinha sido executada. 

Na ocasião, o Brasil já apresentava patamares muito altos de contaminação e mortes. Por quatro meses, permaneceu em um platô de mais de seis mil óbitos por semana por causa do coronavírus.

Meses depois, a CPI da Covid revelaria um relatório do Ministério Público de Contas que apontava o direcionamento de recursos do SUS para bancar despesas militares. 

Para 2021, ainda com o planeta enfrentando a covid-19, o governo apresentou ao Congresso um orçamento para a saúde com valores semelhantes aos de antes da emergência global. Entre fevereiro e agosto a propagação escalou. O Brasil chegou a registrar mais de 20 mil casos fatais a cada sete dias. O sistema colapsou, houve falta de remédios, respiradores, oxigênio e equipamentos de proteção para as equipes.

O orçamento para 2022 reduziu em 20% o que foi aplicado no ano anterior. O médico de família e comunidade Aristóteles Cardona, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, afirma que o aperto orçamentário foi perceptível em vários aspectos cotidianos. Com a fila de espera do SUS multiplicada pela pandemia, a situação piorou.

"Passamos a viver um aumento de uma demanda reprimida de condições crônicas e de outros problemas que não estavam sendo priorizados naquele momento mais crítico da pandemia. Alguns com complicações e um custo maior, financeiro, emocional. Pegou uma situação em que voltamos a ter um arroxo muito duro. Há municípios em que não tivemos ainda uma retomada normal, no nível que nós tínhamos antes da pandemia, de cirurgias eletivas, de consultas ambulatoriais com especialistas e também de forma eletiva. Simplesmente não voltou. É um problema nas costas da atenção primária", alerta.

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A gestão de Bolsonaro termina com o Brasil na lista de países que mais tiveram casos e mortes por causa da covid-19, falta de dinheiro para investimentos em saúde e dados insuficientes para que se possa entender o tamanho do buraco.

Em quatro anos, a pasta teve quatro ministros: Luiz Henrique Mandetta (União Brasil), Nelson Teich, Eduardo Pazuello (PL) e Marcelo Queiroga. O vai e vem em meio à maior crise sanitária do século expôs a ineficiência no trato com a saúde pública.

"Para vermos o desmonte, basta olharmos que houve essa necessidade de recomposição do orçamento imediata, urgente para 2023. Juscelino Kubitschek, quando foi o presidente do Brasil, nos anos 50, tinha como lema do plano de metas crescer 50 anos em 5. O governo atual implementou um lema que seria menos 40 anos em 4. Foi isso que aconteceu. Em muitas coisas, nós voltados à década de 1980", aponta Francisco Funcia.

Trunfo do SUS em perigo 

Em 2020, o Ministério da Economia, comandado por Paulo Guedes, incluiu a atenção primária do SUS no programa de privatizações do governo Bolsonaro. Criticadíssima, a manobra foi derrubada após pressão da sociedade civil e de parlamentares de oposição no Congresso Nacional.

No entanto, a ofensiva contra a porta de entrada do SUS não era novidade e não parou por aí. No ano anterior, o governo já havia desativado o programa Mais Médicos, que contratava profissionais para atuar em locais que não contavam com assistência.

Comunidades tradicionais, cidades do interior, municípios de difícil acesso e periferias foram as mais beneficiadas pelo projeto, implementado no governo de Dilma Rousseff. A medida do presidente foi simbólica para o projeto de extrema direita que Bolsonaro representa. No apagar das luzes do programa, ele causou uma crise diplomática que tirou do Brasil a assistência de médicos e médicas de Cuba. 

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O que se seguiu foi uma série de medidas para diminuir a atuação de um trunfo do SUS elogiado internacionalmente. Ainda em 2020, o governo modificou a lógica de financiamento da atenção primária, manobra que retirou recursos das maiores cidades do país. Com isso prejudicou a maior parte da população brasileira, que vive nesses locais, e atingiu diretamente as grandes periferias do país.

O médico Aristóteles Cardona aponta os danos causados por uma gestão com leitura liberal e privatista da atenção básica.

"O que foi preponderante nesse processo todo é que, essencialmente, todos os comandos que tivemos no Ministério da Saúde foram de pessoas que não tinham o menor conhecimento sobre atenção básica, sobre sua importância. Fora o descompromisso de boa parte deles. Inclusive hoje, há estudos falando que a atenção básica - com toda a sua capilaridade, com toda a sua estrutura no país - foi muito mal utilizada. Poderíamos ter tido outro cenário. É um conjunto de incompetência, de desconhecimento e descompromisso com a saúde da população brasileira, que terminou levando a isso."

Pandemia

A rede de atenção regionalizada e focada na prevenção fez falta na pandemia. Com a porta de entrada do SUS atuando em sua total capacidade, o Brasil poderia ter testado mais, vacinado mais rápido e reforçado campanhas educativas sobre a emergência sanitária. 

Mas a realidade passou longe desse cenário. A gestão de Jair Bolsonaro durante a emergência global rendeu a ele uma denúncia por genocídio no Tribunal de Haia. 

Getúlio Vargas Moura Júnior classifica a situação como uma tragédia e diz que o desfinanciamento esteve no centro do problema. A falta de prioridade e planejamento e o negacionismo custaram vidas que poderiam ter sido poupadas.

"O que aprofundou ainda mais a tragédia da saúde nesse último período foi o enfrentamento da pandemia com a saúde desestruturada, desarticulada, com fragilização do SUS. Os recursos que vieram através dos créditos extraordinários, da pressão da sociedade, foram recursos investidos a conta-gotas. De maneira que o governo federal de Bolsonaro se omitiu do enfrentamento da pandemia. Foi moroso no desenvolvimento e nas aquisições de vacinas, ou seja, uma tempestade perfeita. Então, para nós, o financiamento está ligado a uma política de morte, uma política de atraso que dirigiu o país nesse último período."

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Em janeiro de 2021, uma avaliação das normas jurídicas determinadas pelo governo sobre a covid-19 indicou que houve ação proposital para impedir o combate ao coronavírus. Segundo o documento, as mais de 3 mil leis, medidas provisórias, decretos e outros mecanismos não atenderam às necessidades criadas pela crise e atuaram no sentido oposto ao controle.

De autoria do Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (Cepedisa) da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos, o levantamento embasou uma representação criminal na Procuradoria Geral da República assinada por um coletivo de juristas.

O grupo apontou que o governo "aposta na disseminação do vírus como estratégia de enfrentamento à pandemia". Bolsonaro também foi acusado de "infração de medida sanitária preventiva, emprego irregular de verbas ou rendas públicas, prevaricação e perigo para a vida ou saúde de outrem".

Negacionismo, desmonte e falta de investimento permearam a resposta governamental. Com a chegada da vacina, novas denúncias comprometaram a gestão. A CPI da Covid denunciou que o Ministério da Saúde e o Palácio do Planalto ignoraram e-mails de laboratórios interessados em vender o imunizante por meses. Também foram identificadas tentativas de cobrança de propina nas transações com representantes dos produtos.  

O desafio do novo governo 

Já em campanha eleitoral, no último mês de setembro, Bolsonaro passou a determinar uma série de cortes em projetos essenciais da área da saúde para o orçamento do ano que vem. Ele tesourou 45% a verba destinada para o tratamento de câncer no país. O valor foi destinado ao orçamento secreto para parlamentares.

Outros 12 programas do Ministério da Saúde foram afetados nas previsões para 2023. A distribuição de medicamentos para tratamento de aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais, por exemplo, perdeu R$ 407 milhões. A Farmácia Popular perdeu 60% dos recursos. Responsável pela oferta gratuita de remédios de alto custo, a ação vai ter menos R$ 1,2 bilhões para operar em 2023.

Além de sinalizar que vai recompor programas desidratados por Bolsonaro, o governo eleito busca formas de trazer de volta os investimentos em saúde com a PEC da Transição. Franciso Funcia ressalta que é preciso atuar urgentemente para mudar a regra fiscal baseada no teto de gastos e também do piso da saúde. Ele cita ainda a necessidade de aumento dos investimentos públicos no setor, especialmente por parte da União e a importância de que as políticas de saúde estejam presentes na definição das políticas econômicas.

"O piso da saúde não pode ser vinculado à receita, porque a receita varia em função, digamos, do ritmo da atividade econômica. Quando a economia está em crescimento, quando a economia vai bem, a receita cresce. Mas quando há alguma crise econômica, a receita cai. É justamente na crise que você precisa ter mais gastos com saúde. É ilógico ter menos recurso para a saúde quando a receita cai, porque exatamente por conta da crise, você tem mais demanda."

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O tamanho do obstáculo é considerável, já que desmonte não ocorreu apenas por decisões diretas, na saúde, mas também pela decadência na qualidade de diversas políticas. Da cultura ao meio ambiente, passando pela educação, tudo influencia na manutenção da saúde da população brasileira. Condições sociais, violência, desemprego, carestia, fome também contam. O comando do governo de Jair Bolsonaro nessas áreas contribuiu para esgotar ainda mais a rede nacional de atendimento.

"Se consideramos que a saúde é transversal, vemos que no saneamento, na questão da vigilância, no combate à fome e a pobreza, todas essas outras áreas, foi retirado muito mais dinheiro da saúde. Porque o não atendimento dessas políticas públicas acaba sobrecarregando também. Nós vemos a saúde como uma construção, um direito, uma construção social. Percebemos que, nesse último período, antes da pandemia, em especial, a saúde foi vista como mercadoria. Só que 7 em cada 10 brasileiros, o único plano de saúde que têm é o SUS. Então é essa daí nunca foi uma solução que atenderia a maior parte da população", aponta Getúlio Vargas de Moura Júnior.

Mesmo frente ao desmonte e ao colapso, o Sistema Único de Saúde sai do governo Bolsonaro ainda mais admirado pela população. Na opinião de Aristóteles Cardona, o fato não pode ser deixado de lado, mas a caminhada para recuperar a saúde pública brasileira vai ser longa.

"É importante ressaltar a percepção que se teve de quanto o SUS passou a ser mais valorizado pela população. Percebemos isso no nosso dia a dia e há pesquisas que mostram isso. Eu acho que, assim como muitas áreas no nosso país, nós vamos precisar passar por um processo de reconstrução. Toda a reconstrução é mais difícil. Destruir é fácil. Nós vamos precisar de um esforço enorme e vamos ter que ter paciência. Muitos dados sequer conhecemos. É uma Terra arrasada."
 

Edição: Nicolau Soares