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Presente no Festival do Futuro, acessibilidade falhou para o público que foi à posse

Embora os shows tenham garantido espaço reservado para PcDs, o cuidado não envolveu os atos oficiais de Lula

Brasília (DF) |

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Andrea precisou sentar no chão durante a espera da cerimônia de subida da rampa - Martha Raquel

No dia 1º de janeiro de 2023, Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado de um grupo de pessoas que representa a diversidade do povo brasileiro. Uma liderança indígena, uma catadora de materiais recicláveis, um menino negro, um metalúrgico e uma pessoa com deficiência (PcD) são alguns dos que estavam com o presidente no rito. 

O influenciador digital Ivan Baron foi a pessoa PcD a receber a faixa presidencial junto de Lula. Embora a representação da diversidade que compõe a população brasileira tenha sido ovacionada por quem estava presente na cerimônia e nas redes sociais, as pessoas com deficiência (PcDs) e mobilidade reduzida (PMR) que foram até a posse vivenciaram vários problemas de acessibilidade no evento. A representação não significou inclusão para elas.

Entre os problemas estavam a falta de rampas, acessos diretos, banheiros adaptados, prioridade de locomoção nos espaços, postos de água exclusivos, intérpretes de libra (para quem estava no local) e áudio descrição. 

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O Festival do Futuro, série de shows realizados durante todo o dia, teve acessibilidade para PcDs e PMR. O Festival recebeu consultoria de Baron e da Organização Não-governamental Vale PCD. Contudo, o mesmo não aconteceu no espaço reservado para que militantes do Brasil todo assistissem o presidente Lula subir a rampa do Palácio do Planalto. Questionada sobre os problemas de acessibilidade, no Twitter, a ONG afirmou que o festival e a posse são eventos separados, de modo que a Vale PcD foi responsável apenas pela consultoria relativa ao festival.

A reclamação dos participantes pela dificuldade de acesso à água foi generalizada. O número de postos de água disponíveis não foi suficiente, o que levou a  filas de até duas horas para encher copos e garrafas. Para pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida, a situação se torna mais grave.

Fernanda Marques, professora, saiu de ônibus de Americana (SP) rumo a Brasília (DF) e conta que sofreu com a situação. Ela possui baixa visão e Roger, seu marido, tem deficiência visual. O casal acredita que não seria possível ter permanecido no evento se não tivessem acompanhantes. Eles foram para posse junto com duas outras pessoas. 

"Eu esperava encontrar um lugar separado e com um pouquinho de infraestrutura. Porque, por exemplo, a gente não iria conseguir localizar onde eram os tais pontos de distribuição de água. Então eu esperava uma área restrita, que tivesse acesso mínimo a água, banheiro e alimentação, que fosse separada e que tivesse recursos de acessibilidade, como interpretação em libras, áudio descrição e toda a questão de mobilidade para pessoas com deficiência física", diz ela sobre suas expectativas.


Fernanda e Roger em frente à rampa do Palácio do Planalto / Arquivo pessoal

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Para ela, o planejamento adequado da acessibilidade do evento da posse precisava levar em consideração a diversidade que existe entre as pessoas com deficiência. "Uma coisa que eu já tinha reparado, que eu tinha lido no site do evento [Festival do Futuro], é que não ia ter áudio descrição, por exemplo. Ia ter a interpretação em libras, mas não ia ter nada referente à deficiência visual. Acho que o planejamento de eventos tem que reunir gente das mais diversas deficiências, senão fica bagunçado", comenta a professora.

A fotógrafa Kamilla Dantas, de 34 anos, foi do Rio de Janeiro (RJ) para a posse. Ela possui mobilidade reduzida e teve dificuldade de se locomover entre os espaços onde a posse do presidente aconteceu durante todo o dia. Kamilla ressalta a importância de planejamento para que os espaços e eventos sejam acessíveis para as pessoas com deficiência. "Acho que esse é um tema extremamente necessário. Parece clichê falar isso, mas acho que tem que ser repetido, porque sempre que tem um evento se coloca essa questão, mas acaba que, de fato, na materialidade, não acontece. A gente acaba tendo muitos transtornos", lamenta. 

"Para os próximos eventos, isso talvez precise ser pensado de uma maneira melhor, para que se corrijam os erros, para que se escute as pessoas que tiveram problemas agora, para que nas próximas possa ser melhor. Agora temos um governo que em teoria nos ouve e que deve prestar mais atenção nisso", afirma Kamilla. 


Kamilla durante o evento de posse / Arquivo pessoal

A Lei 10.098 de 2000, estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de comunicação. 

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O texto define que os eventos organizados em espaços públicos e privados em que haja instalação de banheiros químicos deverão contar com unidades acessíveis a pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. O número mínimo de banheiros químicos acessíveis deve corresponder a 10% do total, garantindo-se pelo menos uma unidade acessível caso a aplicação do percentual resulte em fração inferior a um. 

Constrangimentos e falta de informações

Andrea Albuquerque, advogada e PcD com mobilidade reduzida, viajou de Maceió (AL) para acompanhar a cerimônia de posse. Ela conta que antes mesmo da eleição já estava com passagem comprada. "A preparação para a posse começou em agosto, quando comprei as passagens para Brasília já acreditando na vitória do Lula. Lemos manual, adequamos todas as regras e eu, que possuo deficiência física que acarreta dificuldade de locomoção, junto com uma amiga, que está com o pé quebrado e usando cadeira de rodas, montamos nossos kits de sobrevivência e fomos".

"Quem é PcD sabe que participar de eventos grandes não é só um desafio, mas quase um impedimento. Quando vi que haveria um projeto de acessibilidade para a posse, fiquei mais tranquila", conta a advogada. 

O primeiro bloqueio de segurança não contava com fila preferencial, direito garantido pela Lei 13.146 de 2015, e foi ali que Andrea enfrentou a maior violência do dia, segundo ela. Por não possuir deficiência visível, ela apresentou o laudo de deficiência permanente para justificar sua entrada com prioridade. Sem ler o documento, um policial civil informou que ela não poderia entrar com prioridade porque o laudo "não tinha serventia''. Foi preciso que Andrea informasse que era advogada, que conhecia seus direitos, e só assim o policial leu o laudo e a liberou. 

Andrea passou 9h sentada no chão em frente a rampa do Planalto. "Pedimos ajuda a policiais federais, a bombeiros, a jornalistas. A todos que passavam na frente da grade. Avisamos que precisávamos de água e não conseguíamos sair e todos diziam a mesma coisa: não podemos fazer nada", explica.

A falta de informações sobre acessos abertos e fechados também foi um problema para a população PcD. Além de vias fechadas, boa parte dos caminhos cimentados do gramado foram ocupados por barracas do festival, impedindo a passagem de pessoas que utilizam cadeira de rodas, muletas ou bengalas. 

Andrea conta que se emocionou muito por viver o momento histórico, mas que não o fará novamente. "Nem consigo descrever o que o momento da posse significou. Foi emocionante demais. Apesar de não me arrepender de ter participado, é uma experiência que não pretendo repetir porque, se eu tivesse que descrever o dia em uma palavra, eu escolheria violência. Na verdade, violências, no plural", desabafou a advogada.

Edição: Thalita Pires