Coluna

Golpismo impresso e auditável

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PF encontrou na casa de Anderson Torres um plano golpista impresso e auditável - EVARISTO SA / AFP
Pode-se dizer que o resultado da crise que eclodiu no dia 8 é ambíguo

Olá! A aparente irracionalidade do golpismo esconde uma sistemática articulação. Quais são as peças desse intrincado jogo de verdade ou consequência?

 

.Lua de fel. O governo Lula assumiu há poucos dias e estava recém empossando ministros, tomando as primeiras medidas administrativas e esboçando sua política econômica quando foi pego desprevenido numa tarde de domingo. Passado o olho da tormenta, pode-se dizer que o resultado da crise que eclodiu no dia 8 é ambíguo. Por um lado, até as emas do Planalto sabiam que os bolsonaristas estavam a caminho de Brasília e pode-se dizer que a ameaça foi negligenciada. Mas Lula e seus ministros têm a seu favor o álibi de que estavam há poucos dias no poder para ter pleno conhecimento e controle da situação. Mais importante são as consequências políticas. A começar pela imediata mudança da pauta: saíram de cena as políticas que o governo vinha propondo desde as eleições (combate à fome, crescimento econômico, reconstrução das políticas públicas…), assim como o rançoso mantra do mercado contra a política fiscal, e entrou em pauta a repressão ao golpismo e a defesa das instituições. A intervenção no Distrito Federal e o afastamento de Ibaneis Rocha reafirmaram a autoridade de Lula sobre os governadores. E a indiscriminada destruição que atingiu a sede dos três poderes contribuiu para endossar a posição de Lula como chefe de Estado. No geral, pode-se dizer que as instituições saem fortalecidas, ao menos simbolicamente, com a unidade em defesa da democracia e de enfrentamento ao golpismo, assim como os que ocupam os postos de comando no momento: o presidente da República, os presidentes da Câmara, do Senado, do STF e, em especial, o presidente do TSE Alexandre de Moraes. E, para provar que a política brasileira não é para amadores, a gravidade do momento inverteu até o posicionamento sobre o crime de terrorismo. A proposta que sempre foi defendida pela direita agora é mobilizada pela esquerda para enquadrar os bolsonaristas. O risco, no entanto, é que o governo se torne um permanente refém da agenda golpista.

 

.O inimigo agora é o de sempre. Seja por omissão, participação ou o silêncio institucional que se seguiu ao dia 8 de janeiro, há digitais dos militares das forças policiais e das forças armadas por todos os lados. Há indícios suficientes para que Lula não confie nos mais altos postos, nem sequer no seu andar no Palácio do Planalto. Segundo o Estadão, o aparato político e policial montado por Bolsonaro e pelo General Heleno continua funcionando como uma “Abin paralela”. Além da afinidade ideológica com o núcleo bolsonarista, a aversão à esquerda, a cumplicidade corporativista com generais como Heleno e Braga Netto e a contemporaneidade de formação militar com Bolsonaro, os militares ainda têm muitas coisas escondidas embaixo do tapete do “sigilo de 100 anos”: a fabricação de cloroquina pelo Exército, os voos oficiais em aviões da FAB e o processo disciplinar contra o general Eduardo Pazuello. E o acampamento golpista em frente ao QG do Exército era justamente a materialização desta desconfiança recíproca. Lula queria a retirada dos fascistas desde a posse, enquanto parte dos manifestantes eram parentes de oficiais, incluindo a esposa do General Villas Boas. Por isso, a postura conciliadora do ministro José Múcio e a infeliz declaração que os “acampamentos eram democráticos” o colocaram na linha de frente para ser fritado antes do fim do primeiro mês de governo. A resposta dura de Lula na reunião com os governadores - fazendo menção a dois temas que causam arrepios por baixo das fardas: a responsabilidade pelas tortura e pela ditadura militar e depois mandando às favas a balela de que as forças armadas são o poder moderador - é sinal de que a paciência acabou e que o governo sabe que precisa tomar as rédeas do aparato armado de uma vez. Por hora, Múcio e os militares se sustentam em cordas bambas. Menos sorte tiveram as faces públicas da intentona: Ibaneis Rocha e Anderson Torres. A ressaca do dia seguinte foi suficiente ainda para respingar no guarda costas de Bolsonaro, Augusto Aras, na candidatura do ex-ministro bolsonarista Rogério Marinho para a presidência do Senado e para deputados e filiados do PL, PP, PSD, Podemos, Republicanos e Cidadania. E tudo indica que a hora de Bolsonaro está para chegar depois que a PF encontrou na casa de Anderson Torres um plano golpista impresso e auditável, enquanto os dados revelados de gastos do cartão corporativo indicam o financiamento público das motociatas e da doce vida de Carluxo e irmãos.

 

.Faltou combinar com os Yankes. Independente de ter sido uma tentativa de golpe ou um balão de ensaio em uma operação de desestabilização mais longa, a questão é saber se as medidas tomadas até aqui serão suficientes para debelar a ameaça. O aparente isolamento do golpismo e a falta de apoio de dois atores importantes, a alta burguesia e o governo dos Estados Unidos, podem ter sido decisivos. Claro que Steven Bannon ajudou a chocar o ovo da serpente, mas o governo dos Estados Unidos, assim como a OEA, condenou o ataque às instituições brasileiras, enquanto deputados americanos querem que o FBI investigue se o golpe foi planejado por lá e que o visto de Bolsonaro seja cassado.nem mesmo a extrema-direita mundial apoiou integralmente a ação dos aloprados em Brasília. O segundo ator de peso, o mercado, teve uma reação ambígua. Afinal, a normalidade da bolsa de São Paulo no “day after” pode ser interpretada tanto como conivência com o bolsonarismo quanto como demonstração de fé na força das instituições. Mas, à exceção de uma fração empresarial que financiou o atentado, concentrada em São Paulo, Paraná e Mato Grosso do Sul, os donos do PIB ou condenaram as ações golpistas ou mantiveram-se em silêncio. Neste caso, é possível que as medidas repressivas que estão em curso sejam capazes de enquadrar tanto a massa de patriotas que serviu de bucha de canhão quanto os empresários que financiaram a ação. Outro fator que esteve ausente foi o apoio da sociedade, o que não significa que o golpismo não tenha uma base social que cause preocupação, como indica a pesquisa AtlasIntel. Felizmente, enquanto a esquerda conseguiu fazer uma demonstração de força no dia seguinte à intentona bolsonarista, o esforço da direita de sair às ruas na quarta-feira (11) em todo o país fracassou provavelmente por medo da repressão. Mesmo assim, desmontar a base ideológica do bolsonarismo continuará sendo uma das tarefas do governo e da esquerda para os próximos anos.

 

.E agora? Se por um lado, a ação bolsonarista fracassou e gerou uma unidade das instituições civis contra os fascistas, por outro, não deixou de ser uma demonstração de força social, ambição política e capacidade de ação. Derrotados, mas não neutralizados, alerta Valério Arcary. Na Folha, Rodrigo Nunes avalia que, ainda que mantenha uma relação simbiótica com Bolsonaro, a iniciativa do bolsonarismo agora está a cabo de sua camada intermediária, formada pela baixa elite. Ao mesmo tempo, sem apoio institucional e sem mais novos prazos fantasiosos de 72 horas, só restou ao bolsonarismo assumir publicamente o golpismo sem melindres. A radicalização dessa base social é um problema para Valdemar da Costa Neto, que pretendia gerir apenas o patrimônio eleitoral do movimento e é quem -literalmente - paga pelos devaneios do capitão,  co-proprietário do PL. As diferenças internas entre moderados - que pretendiam fazer de Bolsonaro um mero ativo para a oposição e para as eleições municipais - e os radicais - Bolsonaro e filhos - devem se acentuar no próximo período e dificilmente são conciliáveis. Uma das duas alas deve ou sucumbir ou ser abandonada pela outra. Derrotados ou não, a questão que permanece é como “desbolsonarizar” a sociedade e as instituições. Para Luis Nassif e Elias Jabbour, a resposta é econômica. “O bolsonarismo só começará a ser passado quando algum consenso em nossa sociedade alcançar a necessidade de crescimento econômico acelerado, industrialização e construção das bases materiais para um Welfare State brasileiro”, escreve Jabbour. Neste caso, o primeiro passo começaria a ser dado pelo primeiro pacote de medidas do ministro Fernando Haddad, buscando recursos para pôr a casa em ordem.

 

.Ponto Final: nossas recomendações.

 

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Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Vivian Virissimo