PAPO DE SÁBADO

"Não se trata de mim, se trata de nós", diz catadora que passou faixa presidencial a Lula

Aline Sousa, juntamente com outras sete pessoas, entrou para a história ao subir a rampa do Planalto no dia 1 de janeiro

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Passar a faixa foi primordial porque quem não conhecia catador passou a conhecer, quem não conhecia as necessidades e a realidade dos catadores passou a conhecer" - Foto: Ricardo Stuckert

Domingo, primeiro de janeiro de 2023, cerca de quatro horas da tarde, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, sobe a rampa do Planalto pela terceira vez para assumir simbolicamente o comando da nação. Seria um ato já conhecido se não fosse a recusa de Bolsonaro de passar a faixa e saído do país, ação que fez com que a cerimônia da faixa entrasse para a história. Neste domingo Lula subiu a rampa acompanhado do povo brasileiro, representado por oito pessoas. Entre elas, a catadora Aline Sousa.

Mulher, negra, 33, anos, mãe de sete filhos, coube a ela empossar o presidente. Algo comemorado no mundo todo, e que marcou historicamente a vida do Brasil. Aline levava consigo naquela rampa os desejos e sonhos da maioria das brasileiras e brasileiros, que se emocionaram e comemoraram um novo tempo para o país. 

Terceira geração da família a trabalhar com materiais recicláveis, Aline está em seu terceiro mandato como dirigente na CentCoop - DF. Há dez anos faz parte do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis, e é secretária de Mulheres da União Nacional de Catadores e Catadoras de Material Reciclável (Unicatadores). Além disso, é delegada na Aliança Internacional de Catadores, representando o Brasil.

A central de cooperativas dirigida por Aline conta hoje com 21 cooperativas e quase 2 mil catadores, onde chegam cerca de três mil toneladas de resíduos ao mês.

Abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS - Eu queria começar justamente sobre esse momento histórico para o país. Eu me emocionei muito, e acredito que todo mundo que assistiu esse momento se emocionou. Mas imagino que a tua emoção deve ter sido muito forte.

Aline Sousa - Realmente foi um sentimento similar, acredito, das pessoas que estavam ali presentes, assistindo a posse na praça Três Poderes na Esplanada e das pessoas que estavam em casa, sentiram aquela emoção. Um sentimento tomou conta dos nossos corações devido a tanta emoção. Mas para mim foi um pouco mais complicado, porque eu tive que segurar o choro, eu tinha que executar uma das principais missões ali, passar a faixa, e se tornar uma ação histórica.

Eu consegui segurar o choro, me atrapalhei, mas consegui colocar a faixa no presidente. E ainda deixar um beijo, no sentido de abençoar ele nesse mandato, que é um desafio que ele vai ter. Mesmo que já tenha essa carga de experiência de governar o nosso país muito bem, mas esse governo vai ser um desafio. 

Foi uma sensação muito linda, uma honra. Uma nobreza enorme da Janja, da Rosângela, nossa primeira dama. Ela conseguiu surpreender o Lula, fazendo toda aquela estrutura de representação do povo naquela rampa. Foi bem assertiva a decisão dela, de escolher uma catadora de material reciclável, que é tão invisível o nosso trabalho. A gente como ser humano é tão invisibilizado no nosso país.  

Eu gostaria também de destacar que a sensação que eu tive... Vem um filme na nossa cabeça, e naquele momento eu só conseguia lembrar do dia que eu recebi a minha casa própria, que foi do programa Minha Casa Minha Vida, em 2009. Foi a mesma sensação ali, sem acreditar, eu vou ter uma casa, depois de 10 anos morando na ocupação.

BdFRS - E quando tu ficou sabendo que iria passar a faixa presidencial? 

Aline - Minutos antes. A gente foi deslocado para uma sala no Palácio. Nós fomos orientados sobre a posição de cada um na rampa. Estava desenhado com bolinhas brancas, e ao centro tinha uma bolinha amarela onde o presidente iria ficar. E a posição de cada um foi definida, e eu fiquei na última posição. Nessa última posição era a pessoa que tinha a missão de botar a faixa no presidente. E daí eles falaram: é a Aline Sousa que vai passar a faixa. 

Ali eu consegui superar o ar condicionado de tão gelada que eu fiquei, e comecei a chorar muito, não consegui segurar. Eu recebi muito carinho, professor Murilo, vindo me abraçar, me parabenizar, dizendo que eu ia arrebentar, que a gente ia representar bem, que eu ia representar bem todo o segmento que estava ali. E também o metalúrgico Wesley DJ veio, o Ivan [Baron] que é um amor. Recebi carinho deles, tipo vai que vai dar certo, já deu certo. 

BdFRS - Penso que esse é um momento marcante não só pra tua vida, mas para todo o movimento de catadores. Tu estás na terceira geração trabalhando com materiais recicláveis, tem uma história, tem uma liderança no movimento. O que representa pra vocês? 

Aline - É importante você fazer essa pergunta porque eu quero explicar algumas coisas que surgiram depois da faixa. Primeiro as pessoas falam: poxa, terceira geração de catadores e ela ainda é catadora? Não mudou nada na vida dela? Não se trata de mim, não se trata da pessoa Aline Sousa, se trata de nós, se trata da nossa categoria, se trata dos catadores como um todo. 

Se for tratada a questão do avanço da Aline Sousa, eu posso elencar vários avanços que houve na minha vida. Eu saí de uma situação totalmente insalubre. Uma criança que desde cedo participou do índice do PETI, que é um programa de erradicação do trabalho infantil. Desde cedo eu venho trabalhando. Na adolescência, aos 14 anos comecei a catar em uma tentativa de conseguir proteger minha avó sobre uma carroça, que enfrentava violência. Nós catadores autônomos enfrentamos muita violência no trânsito, desrespeito. 

Logo na maioridade consegui ingressar na cooperativa e desenvolver um trabalho bacana. Até ser eleita na CentCoop, representar o movimento nacional dos catadores aqui no Brasil, representar os catadores na América Latina. 

Passar a faixa foi primordial porque quem não conhecia catador passou a conhecer, quem não conhecia as necessidades e a realidade dos catadores passou a conhecer

Quero dizer também que mesmo com essas dificuldades, do catador ser reconhecido, independentemente de bandeira partidária que ocupa o Executivo do nosso país, os catadores tiveram reconhecimento desde 2003 quando o nosso presidente assumiu o seu primeiro mandato. Em 2006 foi sancionado o decreto que fala assim: existe uma categoria que está junto ao resíduo, e que a gente precisa trazer dignidade para eles, que foi o Decreto 5940 de 2006. O que que ele fala? Ele fala que todos os órgãos da administração direta e indireta tem que doar os materiais recicláveis para as cooperativas de catadores. Aí a gente já foi visibilizado, já houve um reconhecimento.  

Em 2007 a gente foi inserido como prioridade na contratação e com dispensa de licitação na lei da política de saneamento básico, que é a 11.445 de 2007. Então já houve mais outro avanço, a gente agora vai passar a não só fazer o trabalho que já faz, mas também ser remunerado por isso. 

Em 2010, foi quando veio de fato os maiores reconhecimentos e avanços que não só o catador de material reciclável tem, mas também a população. Os brasileiros no nosso país têm, e usam como referência fora, a nossa Política Nacional de Resíduos Sólidos, a Lei 12.305. É um instrumento legal que a gente usa, todas as gerações de catadores vão usar, e todo cidadão deveria usar, defendê-la. Porque é de fato o que protege o nosso meio ambiente, protege nossas gerações, protege a saúde pública. Resíduo é questão de saúde pública. E aí vieram na política vários outros avanços. 

Foram vários avanços, e infelizmente o nosso trabalho, a nossa atividade econômica, ela depende muito dos poderes, principalmente o Executivo e o Legislativo, que traz esse reconhecimento e a reestruturação do setor. A gente depende da vontade política. E foi realmente na gestão do presidente Lula que o catador de material reciclável foi respeitado e valorizado. 

Passar a faixa foi primordial porque quem não conhecia catador passou a conhecer, quem não conhecia as necessidades e a realidade dos catadores passou a conhecer. 

BdFRS - Queria que tu falasse um pouco mais sobre ti, sobre a Aline, da tua trajetória pessoal.  

Aline - Eu tenho um sentimento de pertencimento muito grande, na nossa categoria, com nosso trabalho, com nosso movimento nacional de catadores, que já tem 20 anos de luta, defendendo os direitos básicos dos catadores, das cooperativas. E a minha origem vem muito de quando eu decido subir na carroça.

Também sou muito incentivada pela minha irmã, Jaqueline Sousa, que com 15 anos teve que coordenar toda uma ocupação que tinha 60 famílias. Ela decidiu representar aquele grupo no âmbito do governo, buscando melhoria de vida para aqueles catadores. Quando ela chegava e falava que a gente ia ter uma casa própria, que a gente ia parar de tomar banho de chuva, de água de bica de chuva, que a gente ia parar de cozinhar no fogo a lenha, que a gente não ia mais ter que acordar a noite com a chuva molhando a casa por causa das lonas que furavam, todas as insalubridades. As periculosidades que a gente passou naquele lugar, ela sempre era alimento de esperança, de que a gente ia superar aquilo, que a gente ia ter algo melhor. Ela sempre foi e ainda é minha inspiração. Acho que isso também acumulou pra gente estar hoje com toda essa garra, essa força, de dar continuidade ao trabalho. 

A minha família não escolheu a catação, foi a catação que nos escolheu, porque a gente vinha de uma realidade anterior muito pior

Minha infância vem muito disso, das minhas irmãs, do meu pai pernambucano, que faleceu, não conseguiu ver tudo isso que tá acontecendo comigo. Meu pai era um catador que tinha uma comunicação muito boa, acho que parte disso eu puxei dele. Ele não tinha estudo, mas ele se comunicava muito bem, ele sabia defender os catadores junto com minha irmã. 

A gente vem dessa realidade da catação. A gente não escolheu, a minha família não escolheu a catação, foi a catação que nos escolheu, porque a gente vinha de uma realidade anterior muito pior. Se as pessoas acham que trabalhar com a catação é indigno, que é nojento, é feio, não é. Na verdade existe uma situação muito pior, indigna, que é a mendicância. A gente vinha dessa realidade, de depender muito das pessoas. Não que isso seja errado, mas é porque todo mundo busca a sua dignidade. Todo mundo busca querer ir lá no supermercado com o dinheiro do seu trabalho e fazer sua compra, todo mundo busca levar seus filhos para um lazer. É uma questão de dignidade, de cidadania. 

A minha avó que cata hoje, minha mãe também cata, é um orgulho. Acho que estou nessa linha de frente da catação porque além de ter esse sentimento de pertencimento, tem essa esperança de que o catador vai ser um dia valorizado de verdade no nosso país, a ponto de não ter uma quinta, sexta, sétima, décima geração.

A gente precisa ainda resolver vários gargalos, dentre eles, o principal é com a sociedade. A sociedade precisa valorizar o nosso trabalho, não é só o poder público. A sociedade precisa saber que quando ela coloca o saco com resíduo na porta, ali vai começar o ciclo de trajetória daquele resíduo. E esse resíduo vai vir de forma boa ou ruim para mão do catador. Então se a pessoa tomar a decisão correta, de separar e destinar corretamente aquele resíduo, o catador vai ter dignidade. 

E a gente tem que lembrar que 80% dos catadores nesse país são mulheres, e são mães que estão querendo buscar na reciclagem o sustento para seus filhos. Então olha o tanto que essas mulheres sofrem, passam pra poder levar o sustento para dentro de casa. 

BdFRS - Eu acho que essa questão que tu traz é fundamental, da valorização do trabalho dos trabalhadores de materiais recicláveis. Porque muitas vezes tem essa visão da sociedade, eles trabalham com o lixo. Mas é o lixo que é produzido pela própria sociedade. Ou seja, esse é um problema que é mundial. E que daqui a pouco, se a gente não tiver realmente uma política séria de tratamento dos materiais recicláveis e também do lixo que é descartável, vai ter um sério problema no mundo. E tem várias soluções na política nacional, como não permitir mais os lixões. Mas alguns lugares ainda tem lixões, outros lugares tem aterros sanitários, mas esses aterros não atuam como realmente deveriam atuar pra não atingir o lençol freático, para não poluir a natureza, o solo. Enfim, tem toda uma discussão muito importante que precisa ser feita ainda pra avançar na implementação da política nacional. 

Aline - Eu defendo a política nacional de resíduos com garra, com unhas e dentes. Por quê? Porque eu conheço ela, eu sei, como catadora, o jeito que ela tem que ser executada. Então quando a gente vê um município ou um estado executando a política de forma inversa, ou seja, eu começo pelo fim pra tentar alcançar o início, não vai dar certo. E aí entro nessa questão que você colocou, o Brasil ainda tem três mil lixões a céu aberto para serem fechados, com a inclusão socio-produtiva dos catadores que lá estão. 

Para a gente conseguir vencer, diminuir esse percentual no Brasil, a gente precisa trazer as pessoas para o diálogo. Precisa construir juntos, a sociedade, os catadores, a iniciativa privada, os responsáveis por parte daqueles resíduos que ali estão. A gente precisa dialogar pra construir as coisas. 

Essa é a principal característica desse governo, porque ele trouxe as pessoas para o diálogo, ele não é o dono do saber, ele constrói o saber com as pessoas, e as soluções vêm. A gente precisa entender a pirâmide hierárquica que a política nacional de resíduos preconiza. Ela traz todos os erres antes da recuperação energética. 

A gente aceita tecnologias para tratar micros resíduos, desde que essas tecnologias sejam pra valorizar as três parcelas separadamente corretas. Tecnologias pra trabalhar a questão da parcela do reciclável. Eu fui pra Itália para gente trazer tecnologias, pra gente aperfeiçoar o percentual de recicláveis no nosso país. Envolver mais a sociedade, com aquelas lixeiras inteligentes, que você aproxima o celular com o aplicativo, gera um QR CODE, e a partir do momento que você entrega a embalagem você vai receber um ponto, e esse ponto você pode utilizar nas redes de credenciamento para o abatimento de compra de remédios, de alimentos em supermercados, várias redes que foram credenciadas. 

A sociedade precisa valorizar o nosso trabalho, não é só o poder público. A sociedade precisa saber que quando ela coloca o saco com resíduo na porta, ali vai começar o ciclo de trajetória daquele resíduo

E foi essas tecnologias que eu vi na Itália, que a gente pode trazer para o Brasil. A gente quer que as pessoas tenham algum tipo de incentivo para poder participar mais da reciclagem. E aí ter abatimento na conta de energia, de água, porque ela está reciclando, ela vai estar amenizando o tratamento desses resíduos. É nessa lógica que o movimento nacional de catadores está trabalhando. E também a parcela do orgânico, se a pessoa começar a trabalhar com o orgânico, o orgânico ele não é lixo, ele também é reciclável. Trazer tecnologias para priorizar a compostagem, os biodigestores. 

Depois que você separa o reciclável e o orgânico vai sobrar o quê? Vai sobrar o rejeito, o rejeito é aquele resíduo que realmente não tem como ser tratado de outra forma, e que aí sim se tiver potencial calorífico, pode ser tratado como recuperação energética. 

Mas primeiro, antes de falar de recuperação energética, a gente precisa saber gerar energia para quem? O plano de viabilidade econômica e sustentável dessas plantas vão ser de recurso privado ou recurso público? Porque aqui no Distrito Federal o governo vai ter que investir R$ 117 milhões por 35 anos. E essa energia vai ser gerada pra abastecer o quê? Brasília não tem problema de pico de energia, o nosso problema é com água. 

São essas coisas que as pessoas acham que catador não entende, e a vida nos ensina. A gente adquire o saber, a sabedoria com a luta, para poder fazer a defesa de fato, que as ações devem ser feitas corretamente, nem para prejudicar a iniciativa privada, nem pra prejudicar o poder público, e muito menos a sociedade, e ainda mais nós catadores. A gente está pra resolver o problema, porque a gente é parte da solução. 


"A gente adquire o saber, a sabedoria com a luta' / Foto: Ricardo Stuckert

BdFRS - Com essa visibilidade, tu pode dar andamento em alguns projetos. O que tu tens em mente? E o que tu espera do próximo período com o novo governo? 

Aline - Esse governo já começou diferente. O povo já começou a ter o poder que jamais poderia ter tido ao subir naquela rampa. Já foi um aviso que é um governo para o povo, um governo que vai trabalhar para incluir e não pra excluir. Que todas as diversidades vão ter sua oportunidade de estar junto. 

Nós catadores temos vários pontos principais, dentre eles, conseguir revogar vários decretos que foram feitos de baixo dos panos. Tem um que a gente chama de decreto da morte, que é um decreto do Programa Recicla Mais. A logística reversa está prevista na política nacional de resíduos, e a logística reversa tem que remunerar quem faz parte desse ciclo e que faz com que a economia circule, funcione. E o catador está na ponta. A gente está totalmente descoberto desse programa, a gente não construiu esse programa. A gente sabe que é um programa que está viabilizando recursos pra quem já tem concentração de recursos, para quem já usufruiu no ato da compra desses resíduos por meio das cooperativas de catadores. 

O catador, com esse programa, ficou vulnerável, e ele só criou mais um atravessador dentro da cadeia econômica dos catadores. Por exemplo, dos 100% da movimentação econômica que tem no nosso país, os catadores ficam com 10% dessa cadeia econômica. Isso é muito injusto, porque quem está fazendo o trabalho braçal ali são os catadores. 

E o nosso projeto hoje é que a gente consiga reestruturar esse programa, que a gente consiga reavaliar esse programa. A gente não quer que cancelem nenhuma lei que vai ser prejudicial a outros segmentos, a gente só quer ter o direito de construir junto, de participar e mostrar a realidade do catador, a importância do catador. 

Eu represento uma planta pré-industrial aqui no Distrito Federal, que é o complexo integrado de reciclagem, o maior do Brasil e o maior da América Latina

A gente quer trazer também a reestruturação. Nós provocamos e o presidente já anunciou em sua posse a reestruturação do Programa Pró Catador, que foi de 2010. É um programa que vai trazer investimento para reciclagem. A reciclagem precisa ser viabilizada. A gente precisa de investimentos. Várias cooperativas e vários catadores não têm se quer uma estrutura pra trabalhar. Vários catadores sequer são visibilizados pelo seu município. Então o programa vem para trazer essa importância do catador, e que precisa ser incluído. A gente tem projetos para trabalhar essa questão do envolvimento maior da sociedade, avançar na conscientização ambiental das pessoas. 

Quando eu falo que a gente está viajando, não é viagem a passeio, até porque a gente não tem nem condição para isso. A gente, por meio de parcerias, vai mundo a fora levar nossas experiências positivas e trazer também experiências positivas. E no caso da nossa viagem para Itália, e nossa atuação enquanto Rede Lacre, que é a União dos Catadores e Recicladores da América Latina, tem várias experiências. Na Colômbia, por exemplo, eles fazem madeira plástica, através do plástico. Quantas madeiras no Brasil evitariam de serem derrubadas para produzir produtos, sendo que o próprio plástico, que é um dos maiores pivôs dessa parte de contaminação do nosso país, seria reaproveitado de forma inteligente, gerar madeira plástica. 

São tecnologias que a gente pode trazer para o nosso país. É e isso que o movimento nacional de catadores vai trabalhar aqui. A única coisa que a gente precisava era dialogar com as esferas de governo e com a iniciativa privada, os investidores, para conseguir executar. Porque saber fazer o catador é expert. E eu represento uma planta pré-industrial aqui no Distrito Federal, que é o complexo integrado de reciclagem, o maior do Brasil e o maior da América Latina. 

A gente tem toda a condição de mostrar o que a gente sabe melhor fazer, que é industrializar alguns produtos que tem sua reciclabilidade prejudicada. Ou que a gente pode agregar valor para o catador deixar de estar em um cenário de renda muito baixa, para ampliar sua renda, ter uma renda digna.

Para mim, o catador deveria receber de todo o poder público, pelo serviço que presta, um salário mínimo. E a venda do material seria um acréscimo ao trabalho que ele está exercendo, porque o nosso instrumento de mostrar serviços são cooperativas que são baseadas na Lei 5.764 de 1971. Catadores são donos da cooperativa, todos são sócios, não é um processo igual ao CLT, em que você é um empregado e que você tem um direito, o direito similar ao CLT, todo mundo é dono, então se todo mundo ganha, se é bom todo mundo vai ganhar, se é ruim todo mundo vai perder. Por isso que o poder público tinha que entrar já garantindo um salário mínimo pra cada catador nesse país, pra incentivar eles a trabalhar, e também sair da informalidade, que o catador é autônomo, que eles também precisam ter dignidade. 


Segundo o Panorama de Resíduos Sólidos no Brasil 2022, cada brasileiro produz cerca de 381 kg de lixo por ano / Foto: Alexandro Cardoso

BdFRS - Nos conte um pouco como funciona o CentCoop em Brasília, quantas pessoas trabalham, e como é trabalhar nesse sistema de cooperativa? 

Aline - Eu entrei na CentCoop, em 2012, fui convidada a concorrer na eleição das cooperativas como diretora secretária geral, que é o cargo de vice-presidente, e em 2015 eu fui eleita a primeira presidenta mulher da central. Ela já tem 15 anos, e eu estou no terceiro e último mandato.

A nossa gestão foi uma gestão participativa, muitas catadoras participaram da minha gestão, pra poder se prepararem para ocupar espaço. As cooperativas são refúgio das mulheres catadoras que têm essa transição de autônomo para cooperativado, operário, porque elas acolhem,. É uma alternativa da pessoa ter mais dignidade para trabalhar. Não é porque saiu do patamar de catador autônomo, que foi pra cooperativa, que vai mudar da noite pro dia, não é. É uma luta que passa a ser de várias mãos, de várias pessoas. Tem mais força do que sozinho na rua. 

Toda a cooperativa tem custo, custo com advogado, com contador, com o profissional que vai fazer a parte administrativa. Ela tem custo, e isso assusta os catadores que passam a conhecer essa realidade, então eles optam por trabalhar só. Infelizmente a lei no nosso país é direcionada às pessoas jurídicas, não tem lei que vai incluir um catador como pessoa física. Então os catadores precisam entender isso, que para eles serem incluídos em várias políticas públicas, eles precisam ingressar em uma pessoa jurídica, que é uma cooperativa ou uma associação. 

 

E aí aqui na Centcoop, é uma central que congrega 21 cooperativas no Distrito Federal. Brasília tem hoje aproximadamente 40 cooperativas, três centrais de cooperativas e a nossa é a maior. Tem mil catadores cooperados a essas cooperativas. 

Em 2020 a Centcoop passou a praticar a comercialização conjunta. A comercialização conjunta é quando essas 21 cooperativas juntam seus produtos recuperado da coleta, e eles aceitam vender de forma coletiva. Então o cooperativismo, a unicidade, ela não parte só de pessoas, ela parte por produto também, para assim a Centcoop beneficiar esse material, conseguir volume, e negociar com preço melhor junto à indústria. Porque o nosso sonho é acessar a indústria, porque é ela que oferece o melhor preço para a cadeia abaixo. 

Quando esse preço vem descendo, descendo, chega até o catador, o produto já não tem valor. Se a gente conseguir acessar a indústria direto, a gente vai conseguir esse preço bom, e essa é uma das funções da Centcoop, que é agregar valor nos produtos.  

Hoje aqui a gente tem 10 pessoas que prestam serviços CLT, além dos cinco diretores que foram eleitos.

BdFRS - A gente não pode deixar de falar sobre os vários ataques que tu sofreste após a entrega da faixa. Uma parcela da sociedade se sentiu muito incomodada em ver uma mulher negra, uma catadora, e uma catadora que estudou, que tem conhecimento, que viaja para outros lugares do mundo para buscar experiências e para melhorar o trabalho da sua categoria.

Aline - Eles iriam atacar de qualquer forma, se fosse eu, ou se fosse o Ivan representando as pessoas com dificuldade de locomoção, ou se fosse o professor, como já são bem atacados os professores, desrespeitados no nosso país, ou se fosse o cacique Raoní, ou se fosse o Flávio, ou a Jacimara, ou se fosse uma simples criança que é o Francisco, que também ficou recuado em casa com medo da repressão. Independentemente de quem colocasse aquela faixa, ele ia se tornar alvo, por quê? Porque o alvo na verdade não se trata nem de mim e nem do presidente Lula, se trata da democracia. Tudo que está ligado, que fortalece a democracia, vai se tornar alvo para pessoas que estão contra a democracia. 

Eu tive a sorte de ter uma equipe ao meu lado naquele momento, que tomou conta das minhas redes sociais, que não deixou eu ver os comentários, que me primou de tudo pra não afetar o meu psicológico. Porque acho que as pessoas não têm noção disso, que os comentários que elas jogam nas redes sociais afetam muito a saúde mental das pessoas. Então antes de jogar qualquer comentário agressivo nas redes sociais, que elas pensassem que podem estar contribuindo para um futuro suicídio. 

O alvo na verdade não se trata nem de mim e nem do presidente Lula, se trata da democracia. Tudo que está ligado, que fortalece a democracia, vai se tornar alvo para pessoas que estão contra a democracia

Foi muito triste saber que teve essa repercussão, de que acharam até que eu não era catadora, que eu não era nem brasileira, tinha uns comentários que falavam que eu era de outro país, que eu era rica. Para mim as pessoas que fizeram isso comigo foi por falta de conhecimento, porque elas não me conheciam e queriam atacar outra coisa e não a mim. 

Eu fui alimentada por outro movimento, eu fui alimentada pelo movimento das pessoas que me parabenizaram, que falaram que se sentem representadas, que chorou no ato da posse, e que me para na rua pra tirar foto, desde criancinha até idoso. Eu choro quando eu vejo a movimentação, é muito emocionante. Como eu chorei naquela rampa eu choro ao tirar foto com eles. E sempre com esse sorriso, porque a gente precisa ser feliz, a gente precisa levar alegria para as pessoas, mesmo que a gente esteja triste por dentro. A gente precisa alcançar essa felicidade, a gente precisa esquecer um pouco das tragédias, para conseguir evoluir e mostrar para os nossos filhos que há esperança no fim do túnel.

Os ataques me fortaleceram mais ainda como pessoa, porque como as pessoas não conhecem a metodologia do cooperativismo, você representa várias pessoas que pensam diferente, e que você tem que saber lidar com isso. Eu estou nisso há 12 anos, como que eu iria me deixar afetar por um simples comentário na rede social de pessoas que pensam diferente de mim?

Veja a entrevista completa no vídeo


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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko