Conflito

Luta anticolonial: Brahim Ghali é reeleito presidente da República Árabe Saaraui Democrática

Com 69% dos votos no 16º Congresso da Frente Polisário, Ghali assume novo mandato de três anos, agora em meio à guerra

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Brahim Ghali assume um terceiro mandato como secretário-geral da Frente Polisário e presidente da República Árabe Saaraui Democrática - AFP

O atual presidente da República Árabe Saaraui Democrática (RASD) e secretário-geral da Frente Polisário, Brahim Ghali, foi reeleito para ocupar ambos cargos por um novo mandato de três anos com 69% de apoio. Após três dias de extensão, o 16º Congresso aprovou os balanços da última gestão, definiu reformas à Lei Fundamental Saaraui e escolheu a nova direção com 27 membros. Ghali obteve 1.253 votos contra o seu oponente, Bachir Mustafá Sayed, que obteve 563 votos.

O Congresso contou com 2 mil delegados, mas somente 1870 votos foram registrados. De acordo com a Lei Fundamental Saaraui, espécie de estatuto da Frente Polisário, para ser eleito em primeiro turno é necessário obter 2/3 dos votos válidos, alcançandos por Ghali.

"Diante da falta de vontade de Marrocos de negociar, estamos decididos a continuar a luta armada", disse Brahim Gali ao ser reeleito. Gali, com 73 anos, é veterano de guerra e um dos fundadores da Frente Polisário. 

Ghali, nascido em Smara em 19 de Agosto de 1949, foi eleito pela primeira vez secretário-geral da Frente Polisario em 2016, num Congresso extraordinário, após a morte de Mohamed Abdelaziz, quem permaneceu quase 40 anos no comando da organização política. 

Antes de ser chefe da Frente Polisário e da RASD, Brahim Ghali foi ministro dos territórios ocupados de 1998 a 1999 e representante da Frente Polisário na Espanha de 1999 a 2008. Agora ele terá as próximas semanas para anunciar quem será seu primeiro-ministro, que deverá designar um novo gabinete de governo. 

Este foi o primeiro Congresso realizado após o fim do cessar-fogo de mais de 30 anos. Em novembro de 2020, Marrocos voltou a bombardear o povo saaraui na região conhecida como "fenda de Guerguerat", que conecta o deserto do Saara ao Oceano Atlântico, reacendendo a guerra.

:: Saara Ocidental: o que está em jogo na guerra que recomeça após 30 anos na África ::

Diante da retomada do conflito armado e com as dificuldades no abastecimento dos acampamentos de refugiados, devido à crise da covid-19 e da guerra na Ucrânia, Ghali pediu unidade e coesão ao povo saaraui. "A Frente Polisário é propriedade de cada um dos saarauis estejam aonde estiverem, porque a Frente é a alma do povo saaraui", disse.


As organizações que compõem a Frente Polisário elegeram 2 mil delegados para participar do 16º Congresso entre 13 e 20 de janeiro, no acampamento de Dajla, Argélia / Michele de Mello / Brasil de Fato

Dupla traição

Na declaração final do Congresso, a Frente Polisário condena a mudança de postura do governo espanhol e sugere que o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, "invista na reparação da injustiça, pondo fim à trágica provação do povo saaraui pela qual o Estado espanhol é responsável".

A Espanha, que manteve o Saara Ocidental como colônia até 1975, ainda é considerada a potência administradora do conflito armado entre saarauis e marroquinos. Com a ascensão do governo do Partido Socialista Operário, sob o mandato de Sánchez, a expectativa era de que o governo espanhol pudesse ser mais favorável ao lado saaraui, no entanto Sánchez rompeu com a neutralidade e alinhou-se com o reino do Marrocos.

Os marroquinos são o principal sócio comercial da Espanha fora da União Europeia, concentrando 45% das exportações espanholas ao continente africano.


Todos os participantes do Congresso da Frente Polisário deveriam passar por um forte esquema de segurança antes de ingressar aos espaços de debate / Michele de Mello / Brasil de Fato

Para Brahim Gali, esta foi a segunda traição da Espanha, que ao perder a guerra de independência na década de 1970, assinou um acordo com Marrocos e Mauritânia "cedendo" o direito sobre o território do Saara Ocidental. 

"Nós não nos intrometemos nos assuntos internos da Espanha (...) [O Estado espanhol] deve retificar e alinhar-se à legalidade internacional e com a responsabilidade histórica, moral e legal com a causa saaraui", disse o líder da Frente Polisário. 

Já em outubro de 1975, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) sentenciou que não havia lastro legal para a anexação do Saara Ocidental pelo Marrocos e pela Mauritânia, que haviam promovido a ação na Corte de Haia.

Diante da derrota nos tribunais, o rei Hassan II, de Marrocos, iniciou a Marcha Verde sobre o Saara Ocidental, enviando 350 mil civis e militares para invadir e colonizar o território saaraui.


Expulsos de seu território desde 1975, os saarauis dependem de ajuda humanitária para viver nos acampamentos de refugiados levantados na região da cidade de Tindouf, Argélia / Michele de Mello / Brasil de Fato

Novos ataques

O 16º Congresso da Frente Polisário aconteceu dos dias 13 a 20 de janeiro, em Dajla, um dos cinco acampamentos de refugiados saarauis instalados na cidade de Tindouf, Argélia, sob o lema "intensificar a luta armada para expulsar o invasor e culminar a soberania". 

A política aprovada se fez valer no mesmo dia do encerramento do Congresso. Na última sexta-feira (20), o Exército Popular de Libertação Saaraui (EPLS) informou que bombardeou as forças marroquinas na região de Al Mahbas, no Saara Ocidental. 

A Frente Popular de Libertação de Saguía el Hamra e Rio do Ouro (Polisário) foi criada em 1973, inspirada no Movimento de Países não Alinhados (MNOAL). O objetivo foi unificar movimentos e partidos políticos saarauis em um único instrumento político em torno da luta pela independência da Espanha.

Ao proclamar a República Árabe Saaraui Democrática, em 27 de fevereiro de 1976, a Frente instalou um governo no exílio na cidade de Tindouf, na Argélia próxima à fronteira com a Mauritânia e o Saara Ocidental.


Cerca de 1/3 dos delegados do 16º Congresso da Frente Polisário eram militares do Exército de Libertação Saaraui / Michele de Mello / Brasil de Fato

Já no discurso de abertura do 16º Congresso, realizado na última semana, o presidente da RASD, Brahim Ghali, deixou claro que a prioridade para o próximo é reforçar o Exército, reiterando que os saarauis estão comprometidos com a paz, mas a guerra lhes foi imposta.

"A função prioritária é fortalecer o Exército Popular de Libertação Saaraui, dar-lhe os recursos humanos e materiais necessários. A potência ocupante usa as armas mais avançadas do mundo para atacar civis saarauis e os países vizinhos", declarou ainda no dia 13 de janeiro, fazendo referência à cooperação entre Marrocos e Israel em matéria de defesa e inteligência, com o software israelense de espionagem Pegasus

:: Artigo | Pegasus: Espionagem cibernética, NSO e o governo israelense ::

Além disso, o reino do Marrocos construiu, com assessoria de Tel Aviv, um muro de 2,7 mil km, com bases a cada 2km, vigiado por mais de 150 mil soldados marroquinos. Há cerca de 10 milhões de minas em toda a construção para repelir qualquer aproximação da fronteira. Anualmente há saarauis mortos e mutilados pela explosão de minas marroquinas dentro da zona do território liberado.

Enquanto o Marrocos recebe apoio tácito dos Estados Unidos, França e Israel, a República Saarauai tem respaldo militar da Argélia, África do Sul e Irã.

No último sábado (21), a subsecretária de Estado dos EUA para Organizações Internacionais, Michele Sison, visitou pela primeira vez a Argélia e o Marrocos. Em comunicado, o Departamento de Estado dos EUA declarou que um dos objetivos da viagem de Sison é trabalhar para incluir as duas nações no Conselho de Direitos Humanos da ONU e, para isso, deixou claro o apoio de Washington à Missão de Paz das Nações Unidas para atender o povo saarauí (MINUSRO). Os Estados Unidos declararam que defendem a proposta de Marrocos para a resolução do conflito saaraui.

Edição: Thales Schmidt