Pernambuco

ENTREVISTA

"Religiões afro-brasileiras são alvos preferenciais do ódio racial", afirma advogada

Para a advogada e pesquisadora Maíra Vida, é essencial promover a compreensão e fraternidade entre diferentes religiões

Brasil de Fato | Recife (PE) |
O racismo religioso é um conjunto de práticas violentas que expressam a discriminação e o ódio pelas religiões de matriz africana - Juliana Gonçalves/ Arquivo Brasil de Fato

O dia 21 de janeiro é em todo o Brasil o Dia de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi escolhida em homenagem à Ialorixá mãe Gilda, que foi vítima de intolerância religiosa no final de 1999 e em referência ao Dia Mundial da Religião. Essa data é uma oportunidade crucial para refletir sobre a situação da liberdade religiosa no país e discutir formas de promover a compreensão entre pessoas de diferentes religiões.

Sobre esse assunto, a gente conversou com a advogada, professora e pesquisadora em Direitos Humanos, Maíra Vida. Assista:

Brasil de Fato Pernambuco:  A lei nº 11635/2007 instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A comemoração, na data de 21 de janeiro, lembra o enfrentamento do preconceito e visa estimular, na sociedade, a valorização da diversidade religiosa. Qual o papel do estado brasileiro em relação ao direito à liberdade religiosa?

Maíra Vida: Essa legislação enuncia a necessidade do Estado se posicionar como Estado Democrático de Direito, que na sua constituição escolhe o modelo de laicidade para poder se relacionar com a sociedade e se relacionar com o fenômeno religioso. Então, datas como essas são marcadores necessários de tentativa de transformação do imaginário social, que tem se sedimentado numa forma única e mais homogênea de pensar a religião, religiosidade e expressões de fé bastante focadas nos cristianismos.

Então, religiões afro-brasileiras e religiões de matriz africana são alvos preferenciais do ódio racial. Lamentavelmente, configuram nas estatísticas os grupos sociais mais aviltados na sua dignidade e com violação de direitos humanos diversos, sob o falso fundamento da defesa da fé. Então, é importante a gente pontuar que o Estado precisa criar mecanismos de sensibilização para que esse imaginário social possa ser transformado, para que isso se reflita em condutas e comportamentos. 

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Então, é importante que datas de memória, não são datas festivas, não são datas comemorativas, mas datas que posicionam as lutas libertárias que envolvem também a da afirmação de identidades religiosas de matriz africana e afro-brasileiras estão dentro do que é a compreensão e escopo e finalidade de um Estado democrático de direito e é dever de todas as instâncias desse Estado: municipais, estaduais e federais também em uma concertação intersetorial e multifacetada.

O Estado também não dá conta de criar uma rede ou uma frente de resistência ao ódio religioso e aos racismos, porque nós estamos falando de alicerces, códigos de linguagem, códigos de organização social. Mas é o Estado, sem sombra de dúvidas, através do poder e soberania que o povo empresta para si, que deve estimular e incentivar uma mudança de práticas que naturalmente têm sido naturalizadas ao longo da história e que, por conta dessa naturalização, acabam sendo banalizadas, como são as violências raciais e religiosos.

BdF PE:  Apesar da liberdade ao culto ser direito de todos, o Brasil ainda é um país violento e intolerante nesse sentido, principalmente com as religiões de matriz africana, que sofrem racismo religioso. Por que é importante discutir o racismo religioso como parte da estrutura racista do brasil?

Maíra Vida: O racismo é um fenômeno que exige de nós um olhar muito apurado, dada a sua sofisticação. Como ele está intrinsecamente organizando a sociedade e se relacionado inclusive com os nossos juízos de gostos, com as nossas escolhas individuais, com as nossas formas de expressão e organização do Estado e das instituições de Estado, que o racismo acaba aparecendo como sendo essa linguagem primária para se relacionar com a sociedade. Mas a sociedade também aprende a partir dessa forma de composição extremamente hierarquizada, verticalizada, excludente e violenta, que é um legado, herança do colonialismo.

Então, é muito importante compreender, portanto, que se materializa através do racismo religioso também, que é, na minha opinião, uma espécie do gênero “ódio religioso” do gênero “intolerância religiosa”, esse tipo de preconceito, de discriminação, que tem como objetivo desqualificar o livre arbítrio do outro e o seu estado de consciência, a sua manifestação de consciência, o exercício dos seus cultos, o exercício das suas liturgias, a sua compreensão filosófica sobre a existência, sobre adoração, sobre o seu estar no mundo.


Diversas lideranças religiosas denunciam o racismo religioso e omissão do Estado brasileiro / Arquivo Pessoal

Então, é importante a gente considerar esse aspecto e tratar dele, ainda que seja adjetivando como racismo religioso, sendo ele uma espécie, sim, de racismo e estando dentro desse guarda-chuva também da intolerância religiosa, para que a gente possa também lançar um olhar mais detido para o fenômeno e não um gênero generalizado. Compreender quais são as nuances que o compõem e daí também pensar quais seriam as ferramentas, quais seriam as contra ofensivas para tentar desarmá-lo também.

A liberdade religiosa é um dos direitos humanos que possuem mais direitos conexos e mais liberdades conexas e, portanto, mais garantias constitucionais. Também reivindica mais garantias constitucionais e mecanismos de defesas também e atuações, ações que sejam proativas do Estado na tentativa de coibir iniciativas que sejam atentatórias dessas expressões que, como eu mencionei, são expressões de fato existenciais e da própria dignidade humana.

BdF PE:  Como as leis e políticas destinadas a combater a intolerância religiosa impactaram os direitos e liberdades de grupos religiosos minoritários? Que medidas foram eficazes e que lacunas permanecem na abordagem desta questão?

Maíra Vida: Nós temos, desde a Lei Afonso Arinos, que é uma lei da década de 50, uma lei que foi chamada uma lei "para inglês ver", porque era muito difícil garantir o reconhecimento da prática do preconceito e do racismo, porque existia ali o reconhecimento do fenômeno. Mas ele não estava associado ao dano racial, que é um dano que é de difícil mesmo configuração no sentido do que o sistema de justiça brasileiro tradicionalmente convenciona como sendo provas cabais, como sendo materialidade.

Então tem um rigor que é um rigor branco centrado, que dificulta mesmo o reconhecimento das violências raciais e religiosas dentro do plano jurisdicional e, portanto, vai dificultar a responsabilização, vai dificultar a reparação. E tem também o fato de que as ideologias também que são fundantes, também são estruturantes do Brasil, como a democracia racial, por exemplo, e a da miscigenação. Cria uma certa blindagem cognitiva para não só legisladores, mas também para julgadores na hora de implementar e de executar a legislação também existente, de reconhecer a possibilidade de que um indivíduo negro possa ser reprodutor de racismo, ainda que ele não se beneficie em absoluto daquilo, ainda que ele seja engrenagem e vítima do sistema racista.

Então a legislação existe para poder traçar essa lógica de reposicionamento individual e coletivo para proteção. E ela, de certo modo, sim, desestimula práticas odiosas, porque elas possuem dentro do seu bojo uma combinação, seja de multa, seja de restrição de liberdade. Todas elas envolvem, em alguma medida, uma punição. E elas podem ser utilizadas também como uma finalidade educativa, como são, por exemplo, as legislações que envolvem a inserção obrigatória nos currículos educacionais do estudo da história da África e da história afro-ameríndia.

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BdF PE: Que papel a educação, a mídia e outras formas de comunicação desempenham na formação de atitudes em relação à diversidade e à tolerância religiosa? Como esses elementos podem ser aproveitados para promover compreensão e respeito mútuos entre pessoas de diferentes religiões?

Maíra Vida:  A disputa das mídias negras, inclusive de comunicação com comunicadores negros, é de desconstruir uma lógica de colonização. Então, como nós somos representados? Como nós estamos sendo apresentadas, apresentades, apresentados e representados nessa mídia? É decisivo porque esses são elementos de sentido. São elementos que vão dialogar com crenças. É bom dialogar com sistemas de crenças e isso pode gerar a consolidação de ideologias supremacistas. Exclusivistas. E brancocêntricas.

Pensando também em uma experiência democrática que seja mais completa e inteira para todas as pessoas, sem discriminar antes como marcadores decisivos da sua exclusão, da sua e do seu não reconhecimento comum como indivíduos, da sua dignidade e da sua cidadania. E estou sempre repetindo essas palavras porque são elementos que estão muito imbricados.

Quando nós falamos de liberdade religiosa ou de ódio religioso, nós estamos falando de direitos humanos fundamentais. Nós estamos falando sobre quem é o homem universal, para quem foram pensados os direitos originariamente e como pessoas negras que estiveram escanteados à luz destes referenciais, que são os referenciais primários, destinatários de proteção do Estado, podem fazer essa disputa. Então, a mídia é essencial para que a gente possa conseguir avançar para um outro projeto de país.

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BdF PE: Quais recursos legais estão disponíveis para indivíduos e grupos que foram afetados pela intolerância religiosa? Que medidas podem ser tomadas para fortalecer a resposta legal à intolerância religiosa no futuro?

Maíra Vida: Nós temos recursos constitucionais, nós temos legislações, como eu mencionei, especializadas, que indicam, que garantem a criminalização.Nós estamos posicionando a violência racial e religiosa como crime, tal qual é reconhecidamente crime. Então existe a previsão de um trâmite na esfera penal para responsabilização, após identificação de autoria e definição restrita da materialidade com a extensão desse dano e de reparação pelas vias cíveis. E quando eu falo cíveis, eu falo de maneira bastante genérica tudo o que não é penal, porque nós temos repercussões de violência racial e religiosa no campo trabalhista, no campo tributário.

Nós temos em diversas outras áreas, não apenas no cível, pensando a dimensão meramente patrimonial ou até mesmo de lesão física e tudo mais. Nós temos danos que são de natureza coletiva. É difícil você especificar qual foi o indivíduo ou a coletividade, porque é difuso. Então existem muitos mecanismos sim, leves, legais. E existem também outros mecanismos que são extrajudiciais, que são os mecanismos de denúncia. Mas a denúncia muitas vezes também encontra a guarda freio do desestímulo, que é a impunidade ou que é a falta de relação de confiança e política jurídica com os agentes que estão ali gerenciando as políticas públicas. E de equidade racial. De equidade religiosa. Preparatórias.

Então é pensar que desde o Disque 100 de denúncia para violações de direitos humanos e até a existência de Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, na Bahia, A única Secretaria de Igualdade Racial do Estado brasileiro. Isso é um absurdo. Com o histórico que nós temos, só existem dois centros de referência de combate ao racismo no país, o localizado na capital Salvador. Embora seja estadual, vinculado à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e Povos Tradicionais daqui do Estado da Bahia, e o da Paraíba, que é um centro de referência também de enfrentamento ao racismo.

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Edição: Vanessa Gonzaga