Rio Grande do Sul

VIDA DAS MULHERES

Rio Grande do Sul registrou 106 feminicídios em 2022 e 262 tentativas 

Em 10 anos, esse foi o segundo com número elevado de vítimas, ficando atrás de 2018, quando foram registrados 116 

Brasil de Fato | Porto Alegre |
De acordo com a Lupa Feminista desde o início deste ano sete feminicídios foram identificados - Fernando Frazão/ Agência Brasil

O Rio Grande do Sul registrou em 2022 106 casos de feminicídios e 262 tentativas, assim como 50.787 casos de violência contra as mulheres, entre ameaça, lesão corporal e estupro, de acordo o Observatório Estadual da Secretaria Estadual de Segurança Pública do RS (SSP-RS).

É o segundo maior registro nos últimos 10 anos, ficando atrás de 2018, quando 116 mulheres foram vítimas de feminicídio. Em comparação com 2021, houve aumento de 10,4%. Desde o início deste ano, sete feminicídios já foram noticiados pela imprensa. 

Os dados da violência contra as mulheres são preocupantes e se refletem em diversas áreas. De acordo com a estatística do Tribuna de Justiça do Rio Grande do Sul, em 2022 foram concedidas 136.400 medidas protetivas, em 2021 foram 102.120. Já em relação a prisões efetuadas por violência doméstica foram 4.142 (27,63% das prisões totais) em 2022 e em 2021, 3.727 (25% das prisões totais). Atualmente, foram solicitadas 28.462 medidas protetivas pela Polícia Civil e autorizadas pela Justiça. 

Também se refletem no Sistema de Saúde. De acordo com a Secretária Estadual de Saúde foram notificados 5.572 casos de violência contra mulher praticados pelo parceiro, em 2022. 66,74% dessas notificações são de violência física. Conforme ressalta a pasta, o banco de dados ainda não está homologado e os dados são parciais.

“É importante salientar que os casos do banco da saúde dependem da procura dessa mulher do atendimento de saúde. E também embora a notificação seja compulsória muitos profissionais não a realizam. Por isso é esperado que os dados sejam diferentes dos da Segurança Pública. Nós capacitamos as equipes de saúde para que possam notificar os casos atendidos, e estamos trabalhando para que outra secretaria também notifique os casos atendidos, no momento estamos alinhados com a Secretaria da Educação para que ocorra os registros das violências que são detectadas no ambiente escolar”, destaca a SES. 

De acordo com o Mapa dos Feminicídios 2022, lançado pela Polícia Civil em janeiro deste ano, 37,7% dos feminicídios ocorreram com uso de arma branca e 35,8% com uso de arma de fogo. 92,4% dos feminicídios foram cometidos por companheiro ou ex-companheiro. Em 72 dos casos a residência foi o local do crime. Ainda segundo o levantamento, 89 das 106 vítimas eram mães. E 43 tinham filhos com o autor do feminicídio. 


Foto: Reprodução Mapa dos Feminicídios 2022

“O feminicídio é a mais grave forma de violência contra as mulheres”

Em 2012, ano que a SSPR começou a divulgar os casos de feminicídios, o estado registrou 101 mortes. Nos dois anos seguintes os registros sofreram uma queda, voltando a subir em 2015, ano, que de acordo com a psicóloga, mestre em Psicologia, coordenadora da Lupa Feminista contra o Feminicídio, Thaís Pereira Siqueira, as políticas para as mulheres no estado começam a ser desarticuladas. 

A gente se torna repetitiva em nossas falas, porém nós vimos nos últimos os anos o aumento significativo dos feminicídios no país como um todo

“Isso não é uma coincidência, esses números refletem a falta de orçamento e falta de políticas públicas de prevenção e proteção que atuem articuladas, dentro de todas as diretrizes e marcos legais que foram construídos no país. Orçamento zerado, falta de campanhas e ações de prevenção, desarticulação e sucateamento dos serviços de proteção. Onde há uma falha nessa rede, tudo falha”, afirma, destacando que outros elementos como cultura patriarcal, conservadorismo exacerbado, discurso de desvalorização das mulheres, flexibilização do porte de armas. 


Foto: Reprodução Dossiê

Ao analisar os números dos últimos quatro anos, a psicóloga disse não se surpreender que os anos com maiores índices de feminicídio tenham ocorrido em ano de eleição presidencial. Em 2023, em apenas 7 dias foram registrados sete feminicídios no estado.  

“O feminicídio é a mais grave forma de violência contra as mulheres. O aumento dos feminicídios demonstra a gravidade da violência como um todo, violências que estão interligadas. A mulher ainda é vista como propriedade, objeto dos homens. Tanto que a maioria dos feminicídios ocorre no momento de término dos relacionamentos.”

Thais pontua que as mulheres levam anos para conseguir denunciar. Segundo descreve, existe um ciclo de violência, naturalização da violência em muitos casos, sentimentos de vergonha, medo e culpa envolvidos. “Por isso a importância das redes institucionais fortalecidas e preparadas para acolher as mulheres, sem julgamentos. A gente precisa entender porque as mulheres não denunciam, sem julgar. Denunciar para a polícia e solicitar a medida protetiva é fundamental, mas não pode ser a única ação possível”, reforça. 

“A gente se torna repetitiva em nossas falas, porém nós vimos nos últimos anos o aumento significativo dos feminicídios no país como um todo. A relação entre inexistência de orçamento e aumento de feminicídios está explícita nos números, que na verdade, são vidas das mulheres que foram ceifadas.”

Para ela, as campanhas devem ser intensas e ter continuidade, assim como a existência de uma rede que de fato funcione. Thais reforça que o trabalho que vinha sendo construído foi interrompido. “Sem continuidade não é possível uma mudança cultural profunda de fato, pois isso leva anos.”

A Campanha Levante Feminista contra o Feminicídio fez uma carta aberta ao governador Eduardo Leite, durante o período eleitoral, manifestando o seu apoio diante do contexto no estado e elencando diversas medidas para reduzir a violência contra as mulheres e os feminicídios. De acordo com Thais, Leite se mostrou aberto ao diálogo. 

“Esperamos, enquanto campanha e militantes pela vida das mulheres, que o governo possa trabalhar para efetivamente enfrentar todos os tipos de violência contra as mulheres e prevenir feminicídios, pois nós continuaremos cobrando.”


Foto: Reprodução Mapa dos Feminicídios 2022

“O governo precisa levar a sério a violência contra as mulheres”

Professora da UniRitter e conselheira diretora da Themis, Carmen Campos destaca que o feminicídio é recorrência de outros processos de violência, ele vem a ser o último ato dessa relação de violência que estabeleceu já há bastante tempo. 

Para ela, os casos registrados em 2022 demandariam uma investigação, mas em sua avaliação dois pontos poderiam explicar o aumento dos casos registrados. Por um lado, um melhor registro de casos de feminicídio por parte da polícia. “Casos que possivelmente antes não fossem registrados como feminicídio, passam a ser registrados como tal. Isso do ponto de vista da estatística, a correção desse registro é um fator positivo.”

Outro ponto que também explica, analisa a professora, é a ausência de políticas de prevenção à violência doméstica familiar. “O feminicídio ser a última etapa dessa violência, demonstra que a prevenção anterior tem falhado. Não adianta eu dizer para as mulheres: registrem casos de violência, se não há por parte do poder público uma política que possa sustentar as consequências de um registro de violência.”

Como consequência, ela cita como exemplo que se uma mulher que está sofrendo violência vai em uma delegacia de polícia, ela pode não só necessitar de uma medida protetiva, pode necessitar de coisas muito mais estruturais. “Ela depende financeiramente do marido, ou o marido contribui com uma parte significativa do sustento familiar, se ela tem filhos, como que ela vai se sustentar e sustentar a seus filhos? Ela pode precisar sair de casa, se ela está desempregada ou tem um trabalho que não a sustente e ela quer melhorar de vida, com quem que ela vai deixar as crianças?”

Algumas mulheres estão muito fragilizadas, precisariam de um serviço de atenção terapêutica. A gente não pode olhar a violência contra as mulheres, ou a política de prevenção a violência contra as mulheres, como se fossem apenas as políticas especificamente destinadas a isso

Em sua análise há uma deficiência por parte do Estado de olhar o feminicídio como o último estágio de uma violência e que requer por parte desse mesmo Estado políticas estruturais, que se relacionam com trabalho, saúde, escola. Ela pontua que há pouca rede de apoio, de assistência às mulheres. “Algumas mulheres estão muito fragilizadas, precisariam de um serviço de atenção terapêutica. A gente não pode olhar a violência contra as mulheres, ou a política de prevenção à violência contra as mulheres, como se fossem apenas as políticas especificamente destinadas a isso, como por exemplo o centro de referência, uma casa abrigo, a casa da mulher brasileira. Essas políticas são importantes, mas elas são insuficientes para as demandas concretas das mulheres”, expõe. 

“A gente se quer tem uma secretaria que coordene essas políticas no estado. Agora temos no governo federal, um ministério específico para tratar disso. Com quem aqui no estado do RS, a ministra de política para as mulheres vai falar? Vai ser com o governador? Não temos uma estrutura capaz de fazer essa costura interna, e requerer pra além da polícia, que hajam políticas específicas para as mulheres poderem sair de uma relação violenta”, reforça. Carmen enfatiza a necessidade do governo do estado levar a sério a violência contra as mulheres.

“Nós precisamos criar uma secretaria de políticas para as mulheres para que possa fazer essa ponte com o Ministério das Mulheres, receber recursos inclusive, e fazer essa transversalidade. O mesmo para os municípios, é importante que se tenha secretarias com status de secretaria mesmo, com orçamento, e com essa possibilidade de fazer essa costura institucional dentro do próprio governo do estado, e dentro do próprio município”, finaliza. 


Foto: Reprodução Mapa dos Feminicídios 2022

“A violência contra as mulheres é um problema nacional e multidimensional”

Dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Estado, a defensora pública Liseane Hartmann pontua que as agressões às mulheres e os feminicídios (na forma tentada ou consumada) possuem diferentes causas. Para ela, a violência contra as mulheres é um problema nacional e multidimensional. “Somos um povo conservador e machista, salientando-se que as desigualdades de gênero se alicerçam na existência de uma histórica e cultural hierarquia entre homens e mulheres, com primazia do masculino. Além disso, não se pode olvidar que o gaúcho possui uma cultura beligerante que, desde os primórdios da fundação do estado, defende as fronteiras do território a partir das revoluções que por aqui aconteceram”, afirma. 

Ela recorda que o isolamento social, em razão da pandemia da covid-19, fez aumentar os delitos cometidos dentro de casa, como agressões, abusos sexuais e feminicídios. “Isso teria ocorrido por causa de uma maior proximidade entre vítimas e agressores, além de uma maior dificuldade de realizar denúncias, considerando a dificuldade de sair da residência. Houve aumento da divulgação de atos/situações que caracterizam violência doméstica, além de facilitação e ampliação dos acessos para que a vítima e outras pessoas possam realizar a denúncia, como, por exemplo, a Delegacia Online da Mulher e a ampliação da atuação da Patrulha Maria da Penha no Estado”, expõe. 

A defensora aponta que das 106 vítimas de feminicídios em 2022, 80% não possuíam medida protetiva vigente, e metade delas sequer havia feito o registro de ocorrência contra o agressor. "Observa-se, assim, a existência de subnotificação como aspecto a ser considerado na elaboração e execução de políticas públicas e ações que norteiam a atuação do Estado no combate à violência contra a mulher.”


"A desigualdade de gênero é a base onde todas as formas de violência e privação contra mulheres estruturam-se e perpetuam-se", afirma defensora / Foto: Jorge Leão

Liseane salienta que a tipificação do crime de feminicídio (ato de matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino por envolver ou violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher) ocorreu apenas em 2015, de modo que, a partir de então, foi possível obter dados mais fidedignos a respeito das mortes de mulheres.
    
A defensora também destaca que o agravamento da crise econômica, o aumento do desemprego e da vulnerabilidade acabam ocasionando conflitos nos relacionamentos, aumento da tensão, influenciando também no aspecto psicológico, circunstâncias que possivelmente estão relacionadas ao aumento da violência.

O aumento de casos de violência contra as mulheres acaba repercutindo no aumento da procura pelos serviços prestados pela Instituição. No ano de 2022, a entidade realizou 10.648 atendimentos a vítimas de violência doméstica e familiar em todo o Rio Grande do Sul. “A violência contra a mulher é expressão do patriarcado e tem como origem a construção desigual do lugar das mulheres e dos homens nas mais diversas sociedades. A desigualdade de gênero é a base onde todas as formas de violência e privação contra mulheres estruturam-se e perpetuam-se.”

Liseane frisa que a Lei Maria da Penha é um importante avanço no que se refere à proteção da mulher, cujo objetivo principal é coibir atos de violência doméstica contra a mulher e prever punição adequada ao ofensor. Contudo, assim como apontado por Thais e Carmen, são necessárias políticas públicas que proporcionem às mulheres a segurança necessária para que possam realizar as denúncias e tenham o devido acolhimento após o registro da ocorrência, podendo contar com uma rede de apoio que compreenda atendimento psicológico, assistencial e jurídico. 

“Além disso, as mulheres precisam contar, se necessário, com casas para abrigamento que lhes proporcionem ambiente seguro para permanecer com seus filhos até que encontrem outro local para morar. Também precisamos pensar em proporcionar trabalho e profissionalização para que as mulheres possam alcançar independência financeira, de modo a fortalecê-la para que consiga romper o ciclo de violência.”

A violência contra a mulher é expressão do patriarcado e tem como origem a construção desigual do lugar das mulheres e dos homens nas mais diversas sociedades

Liseane aponta que o papel da Defensoria Pública é ouvir, orientar, incentivar e auxiliar as mulheres a realizar a denúncia, buscando medidas para que se mantenham afastadas do ofensor, contribuindo, assim, para a redução dos casos de violência. 

Além de acompanhar os processos que tramitam nas Varas Especializadas de Violência Doméstica, solicitando e fiscalizando o cumprimento de medidas protetivas de urgência, a Instituição realiza o ajuizamento de ações de divórcio, dissolução de união estável, alimentos, guarda e indenizatórias, dentre outras. Bem como encaminha mulheres para Casas de Abrigamento, quando necessário. Oferece ainda trabalho extrajudicial, com projetos e palestras em educação em direitos que incentivam a reflexão com o agressor, a fim de evitar a reiteração de atos de violência. 


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Edição: Katia Marko