Memória popular

Todos têm uma história com Chávez: venezuelanos celebram 31º aniversário da rebelião 4F

Em 1992, grupo de militares se rebelou contra governo neoliberal; chavistas recordam histórias e lutas daquele período

Caracas (Venezuela) |
Milhares de venezuelanos foram às ruas e relembraram um dos marcos do movimento chavista - PSUV

Dona Miriam Vásquez se levantou mais cedo do que o comum neste sábado, 4 de fevereiro. Às 5h30 da manhã, já estava passando o café e preparando as arepas, prato típico do desjejum de qualquer venezuelano. "Acordei contente, feliz e ansiosa", confessa ao Brasil de Fato. Sim, dona Miriam ainda fica ansiosa antes de todo "4F", como ela carinhosamente se refere à ocasião. Mesmo depois de já ter vivido 31 deles desde 1992, quando a data passou a ser considerada um marco político na história da Venezuela, a chavista de 72 anos de idade fez questão de ir às ruas de Caracas hoje, ao lado de milhares de pessoas, para celebrar o aniversário do levante militar comandado pelo tenente-coronel que se tornaria presidente, Hugo Chávez.

"Naquele 4 de fevereiro de 1992, quando as movimentações começaram, eu e meu marido fomos às ruas para participar e tentar ajudar de alguma maneira. Havia um sentimento misto de medo, porque não sabíamos como aquilo terminaria, mas também de esperança, porque alguém tinha que enfrentar aquela situação de crise que vivíamos", explica.

As movimentações às quais Miriam se refere faziam parte da operação conduzida por um grupo de jovens militares de esquerda reunidos no Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200) que decidiu se sublevar contra o governo do então presidente Carlos Andrés Pérez. À época, um forte clima de descontentamento e agitação social tomava conta do país, que ainda sentia as consequências da repressão aos protestos populares de 1989, durante o episódio que passou para a história como Caracazo.

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As políticas de corte neoliberal adotadas pelo governo de Pérez na tentativa de conter a crise econômica e a inflação daquele momento enfrentaram forte rechaço de grande parte da população, o que contribuiu para fortalecer as ideias insurrecionais do MBR-200 dentro das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, quando estes militares se alçaram contra o governo no dia 4 de fevereiro em cidades como Valencia, Maracaibo, Maracay e Caracas, foram respaldados por setores populares descontentes com a situação do país.

"Nós sabíamos que seria algo bom para Venezuela, porque havia um clamor por mudança, precisávamos sair daquela situação", afirma Miriam, que diz se lembrar perfeitamente de quando viu Chávez pela primeira vez, pela televisão, mais tarde naquele mesmo dia.

A aparição televisiva do então coronel ocorreu horas depois do levante, quando este já havia fracassado. Apesar de os rebeldes terem tomado o poder em algumas regiões, forças leais ao governo conseguiram derrotá-los na capital. Já detido, Chávez teve a oportunidade de falar à imprensa, em mensagem transmitida em rede nacional.

"Companheiros, lamentavelmente, por agora, os objetivos que propusemos não foram alcançados na cidade capital. [...] Já é tempo de evitar mais derramamento de sangue, já é tempo de refletir e virão novas situações e o país deve rumar definitivamente a um destino melhor."


Miriam Vásquez, de 72 anos, se juntou à marcha em Caracas / Lucas Estanislau

Foi com essas palavras que o futuro presidente - até então um militar desconhecido - surgiu no cenário político venezuelano e se converteu, da noite para o dia, em uma figura extremamente popular. É por isso que essa mensagem de Chávez se converteu, ao longo dos anos, nesse tipo de evento histórico que todos que o presenciaram se lembram de onde estavam e o que estavam fazendo quando ele ocorreu.

Yenni Rodríguez tinha 18 anos quando assistiu o então coronel assumir o movimento militar pela TV. Filha de militantes do Partido Comunista da Venezuela (PCV), ela se lembra que em sua casa o levante foi celebrado e considerado uma oportunidade para canalizar as lutas populares daquele momento.

“Pensamos que era um movimento que poderia seguir a luta contra a opressão capitalista, burguesa e imperialista e, naquele momento, sabíamos que Chávez seria um líder que poderia representar os interesses da nossa classe”, diz ao Brasil de Fato.

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Outros, apesar do sentimento de esperança, cogitaram um desfecho mais pessimista para o militar rebelde preso. Ao Brasil de Fato, Zélia Duarte conta que chegou a pensar que matariam Chávez após o fracasso da rebelião. 

“Eu estava na minha casa, cozinhando, quando vi aquela mensagem. Pensei que iam matá-lo, porque ninguém poderia assumir aquilo com tanta coragem e seguir vivo. Foi naquele dia que decidi ser chavista”, diz Zélia de 69 anos de idade, moradora da paróquia de Santa Teresa.

Da prisão à Presidência

Na prisão, Chávez se tornou uma das principais lideranças de esquerda no país e seu movimento, que se assumiria o nome de Movimento Quinta República (MVR), passou a ganhar cada vez mais seguidores.

Miriam Vásquez conta como se engajou na militância. Trabalhando em uma gráfica na capital naquele período, ela e outros companheiros chavistas conseguiram organizar um centro clandestino de impressões que funcionava na sede da empresa após o expediente. Ali imprimiam cartazes, adesivos e cartilhas para a campanha de libertação de Chávez e outros materiais de agitação política do movimento.

"A polícia, certa vez, descobriu nossas atividades, invadiu a gráfica, apreendeu os materiais e levou dois companheiros presos. Havia uma perseguição contra nosso movimento", conta.

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Chávez só seria solto dois anos depois, em 1994, por uma anistia concedida pelo ex-presidente Rafael Caldera que enfrentava forte pressão popular pela libertação dos rebeldes do "4F". Fora da prisão, o ex-militar assumiu de vez a liderança do MVR, o transformando no partido político que o levaria à Presidência nas eleições de 1998.

Enquanto caminha ao lado de centenas de pessoas pelas ruas da Zona Rental, zona oeste de Caracas, em direção ao Passeio dos Próceres, destino final da marcha, Miriam confessa ao Brasil de Fato que não está em suas melhores condições de saúde, mas que fez questão de comparecer.

"Eu tive um infarto há dois meses. Meus vizinhos não queriam me deixar vir, mas eu não aceitei porque se ficasse em casa em um dia como hoje eu ficaria muito triste. Isso me nutre, me enche de alegria", diz.

Edição: Glauco Faria