Verdade e justiça

Perícia que confirma envenenamento de Neruda reforça tese de assassinato pela ditadura

Vencedor do Nobel de Literatura morreu 12 dias depois do golpe contra Allende no Chile

|

Ouça o áudio:

Neruda, na direita, recebendo o Prêmio Nobel de Literatura - Pressens Bild / AFP

Os resultados da exumação do corpo do poeta chileno Pablo Neruda, realizada por legistas europeus e canadenses a pedido da família, apresentaram como resultado a existência de substâncias químicas na ossada do escritor que comprovariam que sua morte foi causada por envenenamento.

O célebre escritor, vencedor do Nobel de Literatura, morreu no dia 23 de setembro de 1973. Na ocasião, as autoridades sanitárias chilenas afirmaram que a causa da morte teria sido o agravamento de um câncer de próstata que ele sofria há dois anos, condição que era de conhecimento público.

Porém, essas autoridades eram aquelas que assumiram seus cargos dias antes, depois do golpe de Estado que aconteceu no dia 11 de setembro daquele mesmo ano, derrubando o governo democraticamente eleitor de Salvador Allende e instalando a ditadura do general Augusto Pinochet, que duraria 17 anos [até 1990].

Como morreu Neruda

Até 2011, essa coincidência de datas era o único argumento que sustentava as teorias de que Neruda poderia ter sido assassinado por agentes da ditadura de Pinochet. Tudo mudou quando o ex-assessor pessoal do poeta, Manuel Araya, deu um depoimento ao juiz Mario Carroza, em junho de 2011, dando detalhes sobre seus últimos dias.

Segundo essa versão, no dia 11 de setembro de 1973, Neruda estava em sua casa no balneário de El Quisco, a cerca de 80 quilômetros de Santiago [litoral central do Chile]. Ao saber que o golpe contra Allende havia sido consumado, ele entrou em contato com um amigo na Embaixada do México, com o qual preparou uma viagem cujo objetivo era denunciar o golpe de Estado para a imprensa internacional assim que pisasse em terras estrangeiras.

Porém, o plano incluía dois dias de internação na Clínica Santa Maria para realizar exames de rotina. O poeta realmente sofria com um câncer na próstata desde 1971, mas seu quadro vinha sendo monitorado há anos pelos médicos.

Tanto é assim que Neruda realizou esse mesmo procedimento em seu regresso ao Chile, em 1971, um ano depois de receber o Nobel de Literatura. O poeta realizou uma bateria de exames em Paris, para continuar o tratamento em sua terra natal, em um retorno que também tinha missão política, que era justamente o de apoiar o governo do socialista Salvador Allende, em aliança com o Partido Comunista, do qual ele era militante.

Porém, a estadia de Neruda na Clínica Santa Maria acabou sendo um passo em falso, segundo o testemunho de Araya, que foi preso pela polícia de Pinochet horas depois da internação do seu chefe. A esposa de Neruda na época, Matilde Urrutia, tampouco pôde vê-lo em seus últimos momentos. No dia seguinte, os médicos da clínica disseram que ele sofreu uma piora repentina e irreversível em um quadro febril, o que levou ao falecimento.

Investigações e disputa judicial

A versão de Araya convenceu o juiz Carroza a reabrir a investigação sobre a morte de Neruda. Apesar de essas novas diligências contarem com o apoio da família [representada pelo advogado Rodolfo Reyes [sobrinho de Neruda], somente em 2016 houve o consentimento da Fundação Neruda para a exumação dos restos mortais do escritor.

Vale explicar, portanto, que a Fundação Neruda é administrada pelos irmãos Aida e Agustín Figueroa [este último ligado ao partido pinochetista UDI], que adquiriram os direitos de gestão sobre as casas e as obras do poeta em acordo a viúva Matilde Urrutia em 1983, quando ela estava exilada na Espanha.

A família de Neruda reclama que a fundação que leva o nome do escritor tem sido um entrave para as investigações. Por sua parte, a Fundação Neruda alega que tem colaborado com a maioria dos os pedidos da Justiça, e que tenta somente “garantir que as investigações busquem a verdade sem manchar a imagem e o legado” do escritor chileno.

Elo com Pinochet e com morte de Jango
Apesar de a revelação da perícia é um avanço nas investigações do caso, ainda falta um último elemento para determinar se esse envenenamento constatado no recente estudo foi provocado por agentes da ditadura de Augusto Pinochet.

A solução para esse mistério pode estar em outro caso emblemático da época, o do químico Eugenio Berríos, ex-funcionário da Dina (Departamento Nacional de Inteligência), que liderava um projeto de produção em larga escala de um químico que foi usado não só pelos agentes de repressão do Chile como de outros países que participaram da Operação Condor, incluindo o Brasil.

As investigações do caso de Berríos, também lideradas pelo juiz Carroza, tentam determinar se as substâncias desenvolvidas por ele teriam sido usadas não somente para o assassinato de Neruda como também no do ex-presidente chileno Eduardo Frei Montalva (1964-1970) e do ex-presidente brasileiro João Goulart (1961-1964).

Caso as amostras do químico encontrado na ossada de Neruda mostrarem que se trata das mesmas substâncias desenvolvidas por Berríos, a Justiça teria o elo que faltava para comprovar a ligação entre o ditador Pinochet e o assassinato do poeta.

Vale lembrar, ademais, que o Caso Berríos não busca descobrir a ligação do químico com as ditaduras sul-americanas dos Anos 70 e 80, situação totalmente comprovada e documentada, e sim as circunstâncias em que o químico foi assassinado, em 1995, em um balneário no Uruguai, o que a Justiça considera que pode ter sido uma ação de queima de arquivo.